1. O enigma da esfinge
No prefácio ao livro Organização Criminosa(1), recentemente lançado, afirmei que desde o título até a última das conclusões, a investigação de um assunto atualíssimo e de extraordinário relevo social e humano expõe, em toda a sua extensão, o enigma da esfinge que aparece sob o título de organização criminosa. A copiosa literatura e os projetos legislativos em busca de uma definição penalmente típica para esse qualificado concurso de pessoas demonstra o volume das tentativas e dos fracassos. A delinquência astuciosa, disciplinada, corruptora e violenta, que compõe a alma e o corpo da organização criminosa e o vigor recorrente de sua existência, é o enigma com o qual a esfinge desafia muitos viajantes do sistema penal que não conseguem resolvê-lo(2).
2. A busca de um tipo penal autônomo
É notório o fracasso das tentativas para tipificar taxativamente um fato social que se assemelha a um caleidoscópio pela mutação contínua na composição de seus membros, na estratégia de ação, nos processos de corrupção e de intimidação, além de outros componentes. Lembra Zaffaroni que o organized crime, como tentativa de categorização, é um fenômeno do século XX e pouco vale que os autores se percam em descobrir seus supostos precedentes históricos, mesmo remotos, inclusive no domínio de uma concepção popular(3). Embora reconhecendo não haver dúvida acerca da existência de associações ilícitas, sociedades para delinquir e quadrilhas ou bandos, o mestre argentino adverte contra a pretensão de levar o “mito mafioso” para um tipo legal de crime. E as razões apresentadas são irrefutáveis. Reduzir um fato social mutante e dinâmico a uma fórmula abstrata de palavras “implica na interferência totalmente arbitrária na economia de mercado que pode conduzir a efeitos econômicos catastróficos: concentração econômica, eliminação da pequena e média empresa, corrupção nas corporações por concentração da atividade ilegal, protecionismo despropositado, alterações irracionais de alguns bens e serviços com consequente aumento da atividade ilegal em razão da absurda rentabilidade”(4). Essa conclusão resulta da experiência cotidiana que mostra a existência de empresas legais que não raro podem cometer ilegalidades, a exemplo das infrações tributárias ou de ilícitos contra o Sistema Financeiro Nacional.
A procura de um tipo penal autônomo para a organização criminosa, largamente discutido na doutrina de outros países, ganhou especiais abordagens em obras jurídicas entre nós, com o advento da Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, que surgiu com o propósito de regular a utilização de meios operacionais para prevenir e reprimir “ações praticadas por organizações criminosas”. O diploma, porém, não diz o que se deve entender por organização criminosa. Essa “clamorosa omissão” foi objeto de dura objeção da doutrina(5).
Pitombo compartilha dessa crítica ao comentar a aplicação do art. 1º da Lei nº 9.034/95, com a alteração da Lei nº 10.217/01. E deplora a legislação recente sobre a matéria, “elaborada sob o ritmo da eterna emergência”(6). Porém, a rejeição mais contundente e demolidora é exposta por Silva Franco: “Definir uma figura criminosa, nos termos do art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal, tem duas acepções. Pela primeira, quer dizer explicitar com marcos precisos os contornos de um tipo para que não se confunda com outro, nem sirva de parâmetro para situações fáticas avizinhadas. Já definir, na segunda acepção, significa estruturar com clareza as figuras criminosas para que possam ser, com facilidade, compreendidas por seus destinatários. Se o legislador, desavisado ou malicioso, emprega, na construção típica, termos indefinidos para a descrição do comportamento humano, corre-se o sério risco de estabelecer a insegurança do cidadão e transferir-se ao juiz a incumbência do legislador, com a possibilidade de que a arbitrariedade judicial possa campear à solta, sem rei nem roque.”(7)
À mesma conclusão chegam penalistas estrangeiros, como Cervini: “Sólo um injusto típico muy concreto y específico puede funcionar como garantía y fundamento de la ilicitud. En tal camino, el conocimiento del objeto de tutela conducirá necesariamente a delimitar el ámbito del mandato prohibitivo. Por ello también, toda reflexión sobre tipificación en materia de ilícitos económico-financieros organizados debe pasar, primero de todo, por una reflexión seria sobre la metodología de abordaje y apreciación de los mecanismos involucrados en esos subsistemas.”(8)
3. A confusão provocada pelo legislador
O legislador contribuiu, sensivelmente, para impedir a elaboração de um tipo penal autônomo de organização criminosa. Realmente, o texto original do art. 1º era o seguinte: “Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.” O propósito do legislador foi o de regular possibilidades e limites de “meios de prova” e “procedimentos investigatórios”, vale dizer, de assunto do processo penal, embora incidentalmente tenha abordado outras matérias: redução especial de pena; vedação da liberdade provisória; prazo de instrução e condição para apelar e execução da pena de prisão.
Percebendo que a cominação do art. 288 do Código Penal é muito branda em consideração ao alarme social provocado pelas ações astuciosas, fraudulentas ou terroristas das societas sceleris, procedeu-se à neocriminalização. Como “solução” de emergência procurou-se distinguir a hipótese do art. 288 do Código Penal de outra mais grave. Surgiu então — para confundir e não para explicar(9) — a nova redação do art. 1º, determinada pela Lei nº 10.217/01: “Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações criminosas de qualquer tipo.”(10) Estava aparentemente criada uma nova entidade típica para demonstrar o impossível: que o legislador não está em mora com os fatos.
4. A deficiência crônica na redação dos tipos penais
Em nosso país — que não tem a prática da lei delegada como ocorre, por exemplo, em Portugal(11) — são graves as consequências decorrentes da má elaboração de normas incriminadoras, em prejuízo da segurança jurídica e dos direitos individuais. A legislação penal das últimas décadas, orientada pelo discurso político do crime e alimentada pela mídia sensacionalista, com as pautas da criminalidade violenta e astuciosa, é herdeira do malsinado espólio legiferante dos anos 60, relativamente aos crimes econômicos e tributários. A propósito, a releitura de mestres de prestígio como Pimentel(12), Fragoso(13), e Chaves(14).
5. A organização criminosa é espécie do concurso de pessoas
A organização criminosa como forma qualificada do concurso de pessoas tem a sua gênese com a redação do art. 45, I do Código Penal, conforme sua redação original: “A pena é ainda agravada em relação ao agente que: I – promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes.” A mesma redação foi mantida no art. 62, I da nova Parte Geral, com uma única exceção: no caput foi substituída a palavra “é” por “será”.
Uma das conclusões definitivas da tese de Pitombo assenta na exigência dogmática de considerar a organização criminosa no quadro do concurso de pessoas, repudiando a solução artificiosa de se manter o tipo do art. 288 do Código Penal. Entende ser preferível abandonar as transmutações da bicentenária “associação de malfeitores” como tipos da Parte Especial “para se levar à sério o tipo do concurso de pessoas”(15). E propõe a inserção de mais dois parágrafos ao art. 29 do Código Penal, assim redigidos: “§ 3º. Se mais de três pessoas se associarem em organização, cuja atividade seja a prática de crimes, a pena será aumentada de um sexto a dois terços. § 4º O juiz estabelecerá a quantidade de aumento de pena em razão da atividade criminosa ter sido realizada mediante o emprego de violência, grave ameaça ou poder econômico.”(16)
Em meu entendimento, tal proposta atende ao primado do direito penal da culpa e constitui solução de lógica jurídica porque grande parte dos projetos interessados na formatação da fattispecie associativa remetem-se ao Código de Napoleão (1810). O art. 265 e seguintes inspiraram os estatutos italianos vigentes no período anterior à unificação e posteriormente, como o Código Zanardelli, de 1889 (arts. 248/251), o Codice Penale em vigor (art. 416) e os diplomas de outros países, a exemplo da Alemanha, Argentina e Chile(17).
Além disso, essa orientação está em perfeita harmonia com uma das alternativas propostas no XVI Congresso da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Naquele evento (Budapeste, 1999), foram sugeridos três caminhos para o legislador nacional regular a matéria de punição: a)através de uma causa de aumento da pena; b) uma dupla sanção: por pertencer à associação e ter cometido o crime em benefício ou por meio dela; c) condenação pelas duas infrações porém com a aplicação de uma só pena(18).
6. Características e métodos de ação da organização criminosa
Para a aplicação do § 3º acima referido, o magistrado identificará a existência da associação criminosa em face de determinadas circunstâncias reveladas no caso concreto. Das conclusões do já mencionado XVI Congresso Internacional de Direito Penal, podem ser extraídas as seguintes: a) características: divisão de trabalho e a dispersão da responsabilidade individual no seio da organização; alternatividade de agentes; o segredo; a confusão entre as atividades lícitas e as ilícitas; a capacidade de neutralizar os esforços de aplicação da lei por meio da intimidação e da corrupção; mecanismos especiais para a transferência de lucros; b) métodos de ação e características diversas: como ilustração pode-se referir a intimidação, a violência, o terrorismo, a corrupção, o corporativismo, a aparência de legalidade formal das atividades, a integração real ou aparente dos associados à comunidade e o impacto nacional ou internacional(19).
Pelas sumárias indicações acima, percebe-se que as possibilidades infinitas de características, métodos e meios de ação das associações de malfeitores tornam impossível a redação de um tipo penal fechado que sirva de modelo para cobrir todos os elementos constitutivos da máscara das societas sceleris. Esse projeto é inviável até mesmo com o recurso a um tipo penal aberto, porque a organização criminosa é um meio utilizado para assegurar o bom êxito da empreitada ilícita e a obtenção de dividendos financeiros, políticos ou de outra natureza. Demarcar em um modelo de fattispecie astratta os elementos configuradores da quadrilha ou bando seria o mesmo que (tentar) definir a infindável variedade de meios para a prática de um homicídio!
Tem absoluta razão o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Adhemar Ferreira Maciel, ao observar que a organização criminosa não é um tipo legal de ilícito e ao ponderar que o seu reconhecimento nos casos concretos deve ser deixado para a doutrina e a jurisprudência(20).
7. O abuso de poder na imputação de quadrilha ou bando
Em página antológica da literatura de Direito e Processo Penal, o mestre Fragoso observa que a denúncia “não pode ser um ato de prepotência. A lei a reveste de formalidades indispensáveis; tem ela como pressupostos essenciais elementos que garantem e asseguram o direito de liberdade do cidadão. É necessário que ela descreva um fato que em tese constitui infração penal; é indispensável que se funde em justa causa para o processo, exigindo nosso antigo direito que apresentasse o corpo de delito ou o fundamento de fato de uma acusação pública. Por isso João Mendes ensinava que é ela também uma exposição demonstrativa, ‘porque deve descrever o corpo de delito e dar as razões de convicção’”(21).
Lamentavelmente, os excessos praticados nas denúncias nos processos políticos durante o regime militar estão agora se repetindo. E, paradoxalmente, na vigência do Estado Democrático de Direito jurado pelo primeiro artigo da Constituição. Tem sido frequente a mania de promotores de Justiça e procuradores da República em agregar o tipo do art. 288 do Código Penal ao lado da imputação de certos ilícitos de autoria coletiva, sem indicar os pressupostos de fato que caracterizem a societas sceleris. Nos crimes societários e, em particular, nas hipóteses típicas da Lei nº 7.492/86 e da Lei nº 8.137/90, o acusador parte do pressuposto de que o número de quatro ou mais pessoas (diretores, gerentes etc.), por si mesmo, é suficiente para a caracterização de um grave delito contra a paz pública. Como é notório, o impacto social provocado nos últimos anos pela criminalidade organizada nos grandes centros urbanos envolvendo o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins, a atuação dos grupos de extermínio e as chacinas, além de outros eventos similares de violência e terror, provocam o sentimento coletivo de insegurança que é debitado também a cidadãos que jamais realizaram o tipo da quadrilha ou bando, mas sofrem todos os danos materiais e morais da imputação excessiva(22). Esse abuso no poder de denunciar pode ser neutralizado quando o tipo do art. 288 do Código Penal for revogado e deixar de ser um dos protagonistas essenciais para o marketing acusatório produzido e incensado nas relações melindrosas entre muitos agentes do Ministério Público e ativistas do jornalismo de sensação.
8. Conclusão
Tenho a convicção de que Antônio Sérgio Pitombo decifrou o enigma ao responder que a organização criminosa nada mais é que um concurso de pessoas qualificado pelo número mínimo de quatro sujeitos culpáveis, com maior ou menor poder de ação violenta ou astuciosa e que desenvolvem, em caráter estável e permanente, atividades com o fim de cometer crimes.
Quanto aos métodos e os meios para identificar e reprimir essas atividades — que tanto estimulam os especialistas da investigação e seduzem os meios de comunicação — são assuntos para o amplo universo da prova nos limites assinalados pelo sistema processual de um Estado Democrático de Direito.
Notas
(1) Organização Criminosa – Nova Perspectiva do Tipo Legal, São Paulo: RT, 2009, de Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo.
(2) dotti, René Ariel. Prefácio, ob. cit., p. 9/10.
(3) zaffaroni, Eugenio Raúl. “‘Crime organizado: uma categorização frustrada”, em Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, vol. 1, p. 46.
(4) “Crime organizado: Uma categoria frustrada”, cit., p. 63.
(5) Por todos, Gomes, Luiz Flávio e Cervini, Raúl. Crime Organizado – Enfoques Criminológico, Jurídico (Lei 9.034/95) e Político Criminal, São Paulo: RT, 1995, p. 67.
(6) Ob. cit., p. 100.
(7) silva franco, Alberto. “1. Organização criminosa. Nota de doutrina”, em Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial.7ª ed., coordenação de Alberto Silva Franco e Rui Stoco, São Paulo: RT, 2001, vol. 1, p. 576.
(8) “Los filtros sistémicos del crimen organizado en materia económica y financiera”, em El Crimen Organizado – Desafíos y Perspectivas en el Marco de la Globalización, coordenação de Guillermo J. Yacobucci, Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2005, p. 435.
(9) A expressão “eu vim para confundir, não para explicar”, era um dos equipamentos verbais de humor utilizado por Chacrinha (José Abelardo Barbosa de Medeiros, 1916-1988) imortal comunicador da televisão brasileira e incomparável animador de auditório.
(10) As modificações de palavras estão grafadas em negrito.
(11) A Lei nº 35, de 15.09.1994, concedeu ao governo a autorização legislativa para revisão do Código Penal, aprovado pelo Dec.-lei nº 400, de 23.09.1982.
(12) pimentel, Manoel Pedro. Direito Penal Econômico, São Paulo: RT, 1973, p. 37/38.
(13) fragoso. Heleno Cláudio. “O novo Direito Penal Econômico e Tributário”, em Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, nº 12, de 1966, p. 63/64.
(14) chaves, Raul. “Advocacia e Reforma Penal”, tese nº 9, em Anais da VI Conferência Nacional da OAB: Salvador, 1976, p. 109.
(15) Organização Criminosa, cit., p. 204.
(16) Idem, p. 178. A adoção legislativa desse critério implica em revogar o art. 288 do CP e dispositivos penais e processuais da legislação especial, conforme esclarece o autor (p. 179).
(17) almeida ferro, Ana Luiza. Crime Organizado e Organizações Criminosas Mundiais, Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 103.
(18) International Review of Penal Law nº 70, Toulouse (France): Editions Érès, 1999, p. 900.
(19) International Review of Penal Law, cit., p. 895 e s.
(20) “Observações sobre a lei de repressão ao crime organizado”, em Revista do IBCCrim, nº 12, out.-dez. de 1995, p. 97.
(21) fragoso, Heleno Cláudio. “Ilegalidade e abuso de poder na denúncia e na prisão preventiva”, em Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, nº 13, abr.-jun. de 1966, p. 72.
(22) dotti, René Ariel. “Um bando de denúncias por quadrilha”, em Revista do IBCCrim, nº 174, maio de 2007, p. 6 e s.
René Ariel Dotti
Advogado; professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná; corredator dos projetos que se converteram nas Leis nº 7.209/84 e 7.210/84 (nova Parte Geral do CP e Lei de Execução Penal); ex-membro de Comissões de Juristas do Ministério da Justiça para reforma do sistema criminal (1979-2000). Medalha do Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007).
DOTTI, René Ariel. A organização criminosa é uma forma qualificada do concurso de pessoas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 6-7, maio 2009.
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