quinta-feira, 18 de junho de 2009

Embriaguez ao volante. bafômetro, princípio da legalidade, nemo tenetur se detegere e falta de justa causa para a ação penal. denúncia rejeitada

Marcos Zilli

Juiz de Direito


Justiça Estadual de São Paulo

15ª Vara Criminal da Capital

Processo n. 050.09.020604-5 (referência 433/09)

(...)

Eis, em síntese, o relatório.

Passo, em seguida, a fundamentar.

A tese acusatória, com fulcro na norma de extensão prevista pelo parágrafo único do artigo 306 da Lei 9.503/97, imputa à acusada a prática do delito de embriaguez ao volante. Para tanto, toma por base o resultado obtido no teste do etilômetro, vulgarmente conhecido por bafômetro, o qual detectou uma concentração de 0,77mg/l nos pulmões daquela. Não há, portanto, o exame de sangue cuja alusão, note-se, foi expressamente referida pelo tipo penal.

Pela legislação anterior, a condição de alcoolizado poderia ser demonstrada por todos os meios de prova admitidos em direito, dentre os quais o exame clínico ou mesmo a prova testemunhal. Ocorre que a alteração legislativa ao incorporar, no próprio tipo penal, o quantum de álcool presente no sangue, tornou inviável a equivalência por ato emanado do Poder Executivo.

De um lado, porque o próprio tipo penal circunscreve os limites de sua incidência ao incorporar, como elementar, um parâmetro de concentração por litro de sangue. Por uma decorrência lógica do princípio da reserva legal e de sua taxatividade, tal especificidade não poderia ser ampliada por atos provenientes de outras esferas de Poder. E, nesse aspecto, a ideia de norma penal em branco não auxilia no deslinde da questão, até mesmo porque o tipo penal em apreço é, nesse específico ponto, fechado.

Não se nega tenha o legislador estabelecido a possibilidade de equivalência entre os distintos testes de alcoolemia — parágrafo único do art. 306. No entanto, ao assim proceder, delegou competência legislativa penal e processual penal ao Poder Executivo, o que é vedado pela sistemática constitucional brasileira.

Com efeito, ao enrijecer o próprio tipo penal inserindo na norma penal incriminadora o grau de concentração de álcool por litro de sangue, o legislador limitou qualquer procedimento de ampliação típica. Mas, ainda que se admitisse uma extensão, tal somente poderia ser realizada por quem detém legitimidade constitucional para tanto, em decorrência natural do princípio da reserva legal. Dito de outra forma, o legislador não poderia conceder à Administração a absoluta liberdade para estabelecer quais as hipóteses e circunstâncias em que o tipo penal fechado poderia ser ampliado.

E é justamente nesse ponto que a hipótese tratada nos autos não se equipara totalmente à da norma penal em branco. Nesta, o legislador faz uso de expressões que exigem uma complementação, tarefa que pode ser empreendida pela mesma fonte normativa ou não, desde que respeitada a estrutura constitucional imposta pela divisão de Poderes. É a lição de Zaffaroni e Pierangeli(1):

“O Congresso Nacional não pode legislar em matérias próprias do Executivo ou das legislaturas estaduais e municipais. Em tais hipóteses o Congresso Nacional não rompe a divisão dos poderes que a Constituição estabelece, mas, ao contrário, deixa em branco a lei penal para respeitar a divisão dos poderes.

(...)

O Poder que completa a lei em branco deve ter o cuidado de respeitar a natureza das coisas porque, do contrário, através de tal recurso pode ser mascarada uma delegação de competências legislativas penais.”

Ocorre que o tipo penal em questão, na delimitação da concentração caracterizadora do estado de embriaguez é fechado. E eventual ampliação — que por si só seria discutível — somente poderia ser feita pelo próprio legislador não sendo admissível a delegação de competência para outras esferas de Poder tal como a verificada. Mas não é só.

Com efeito, ao delimitar a grandeza da concentração o legislador também circunscreveu o meio de prova admissível. Ou seja, é o exame de sangue o meio eleito para a comprovação da figura penal típica. A adoção de outros meios de prova para fins penais, o que constitui matéria eminentemente processual, não poderia ser delegada à Administração, sob pena de violação da regra prevista pelo artigo 22, inciso I da CR. Afinal, cabe privativamente ao Poder Legislativo Federal legislar sobre direito processual. Obviamente, não estaria o Poder Executivo impedido de estabelecer os meios probatórios destinados à comprovação das infrações administrativas. No entanto, quando estes mesmos meios de prova foram rigidamente fixados pelo legislador para fins penais, não cabe ao Executivo ampliá-los sob pena de invasão da esfera de outro Poder.

Por outro lado, o caso tratado nos autos também envolve a problemática do direito de não produzir prova contra si mesmo e que é representado pelo brocardo nemo te­ne­tur se detegere. Como se sabe, cuida-se de direito que se harmoniza com o modelo processual acusatório, o qual impõe à acusação o ônus probatório. Logo, não pode o acusado ser compelido a prestar colaboração à formação do material probatório, até mesmo porque, há muito foi superada a postura de considerá-lo como simples objeto de prova. É ele verdadeiro sujeito processual.

De qualquer modo, galgado ao plano dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, a garantia supõe a liberdade moral do acusado para decidir, conscientemente, se coopera ou não com os órgãos encarregados da persecução. No entanto, ainda que alçado ao plano dos direitos fundamentais, a sua operacionalização deve se harmonizar com outros valores, interesses e direitos igualmente fundamentais. Nesse sentido, lúcido é o magistério de Maria Eli­za­beth Queijo(2), para quem “os limites do nemo tenetur se detegere são imanentes, implícitos e decorrem da necessidade de coexistência com outros valores que, igualmente, são protegidos pelo ordenamento em sede constitucional”. Se assim não fosse, a garantia assumiria contornos absolutos impedindo, por consequência, o exercício legítimo do poder-dever punitivo estatal. É o que pontua a autora: “Se não admitisse qualquer limitação ao nemo tenetur se detegere, seria ele um direito absoluto e, conseqüentemente, em diversas situações, o interesse público na persecução penal restaria completamente aniquilado, comprometendo a paz social e a segurança pública, bens diretamente relacionados ao interesse na persecução penal, que seriam sacrificados, conduzindo a situações indesejáveis socialmente e que causariam repulsa”.(3)

As limitações, ainda que admitidas, não podem ser exageradas a ponto de inviabilizarem a própria garantia, comprometendo o próprio resguardo da dignidade humana. É o que observa, uma vez mais, Elizabeth Queijo: “As limitações são, pois, inevitáveis, mas não deverão conduzir ao extremo sacrifício do direito fundamental restringindo-o, tornando-o irreconhecível ou desnaturado. A essência do nemo tenetur se detegere deverá ser preservada, mantidos os seus atributos mínimos. Nessa ótica, não se poderá, à evidência, aniquilar esse princípio, sacrificando-o extremamente a ponto de compelir o acusado a colaborar ativamente em provas como a reconstituição do fato, o exame grafotécnico e o eti­lômetro.”

Daí a necessidade do recurso à ponderação em que se sobressai o princípio da proporcionalidade. Trata-se, como observa Suzana Toledo Barros(4), de importante critério de avaliação quanto à legalidade da restrição dos direitos fundamentais, sobretudo quando presente uma situação conflituosa. Por essa perspectiva, embora o legislador esteja autorizado a fixar limites, estes sempre estarão sujeitos ao controle judicial quanto à pertinência, à adequação e à necessidade da medida(5).

No caso em apreço, a obrigatoriedade de cooperação dos acusados resulta clara em face do disposto no artigo 277 do Código de Trânsito que sujeita o condutor, suspeito de embriaguez, à aplicação de sanções administrativas e penais na hipótese de recusa à submissão dos exames clínicos. A toda evidência, não se trata de solução que procure harmonizar os interesses em conflito. Isso porque a simples ameaça de punição desconsidera por completo aquele direito. Por outro lado, a sanção penal prevista para o crime tipificado pelo artigo 306 é compatível com a suspensão condicional do processo sendo um forte indicativo de sua relativa reprovabilidade. Diante de tal cenário, a restrição ao direito fundamental, na dimensão desenhada pelo legislador, configura medida por demais onerosa quando posta em consideração a perspectiva de solução do conflito penal por vias heterodoxas.

Não obstante, tratando-se o etilômetro de prova que necessita de colaboração do acusado, ainda que sem intervenção corporal, o consentimento é medida imperiosa, devendo, para tanto, ser precedido da advertência quanto ao nemo tenetur se de­te­gere. Afinal, a ciência prévia constitui importante fator para que a manifestação de vontade possa ser reputada livre e consciente. É, note-se, a conclusão de Elizabeth Queijo(6).

Pois bem. No caso tratado nos autos, a acusada recusou-se, inicialmente, a submeter-se ao teste. Foi então advertida das consequências jurídicas e, dessa forma, acabou sucumbindo às pressões. Não foi, portanto, cientificada da dimensão do direito que a amparava o que, obviamente, comprometeu não só o consentimento, mas também a própria prova obtida.

Logo, a imprestabilidade do exame realizado, seja pela violação do princípio da legalidade penal, seja pela impossibilidade de delegação de competência legislativa processual penal ou mesmo pela limitação desproporcional do nemo tenetur se detegere, afasta a justa causa para o oferecimento da ação penal.

Como é assente, o exercício do direito à ação está jungido ao atendimento de certas condições. Trata-se de uma filtragem preliminar voltada a impedir o ajuizamento de ações desprovidas do mínimo de sustentabilidade. Daí a alusão à “possibilidade jurídica do pedido”, ao “interesse de agir” e à “legitimidade ad causam” Mas, a par destas, estruturadas pela tradicional processualística, inicialmente a doutrina penal e, mais recentemente, o próprio legislador, consagraram o que se convencionou denominar de “justa causa”.

(...)

Pois bem. Independentemente da polêmica doutrinária que gravita em torno da inserção da justa causa no campo das condições da ação, fato é que o exercício da ação penal de natureza condenatória exige mais do que as condições que inicialmente foram desenhadas para o processo civil. É que a imputação descrita e narrada pela denúncia ou queixa deve conter o mínimo de sustentabilidade. É a medida dada pelo juízo de probabilidade. Ou seja, há que se constatar um lastro probatório suficiente de modo que a acusação não se torne temerária, sobretudo em razão das graves conseqüências jurídicas e sociais provocadas àquele que se vê formalmente acusado.

Dessa forma, uma vez afastada a legalidade do exame a que foi compulsoriamente submetida a acusada, resta imprestável o resultado por ele apurado o que torna a acusação desprovida de lastro probatório mínimo que possa lhe conferir sustentabilidade. A rejeição é, nesse cenário, medida que se impõe.

Decido.

Com supedâneo no exposto, reconhecendo a ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, inciso IIII, do Código de Processo Penal, rejeito, liminarmente, a denúncia.

Após o trânsito em julgado, expeça-se guia de levantamento da fiança recolhida, arquivando-se, na sequência, os autos.

P.R.I.C.

São Paulo, 16 de abril de 2009.

Notas

(1) Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 452.

(2) O Direito de Não Produzir Prova Contra Si Mesmo: O Princípio Nemo Tenetur se Detegere e suas Decorrências no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 355.

(3) Op. cit., p. 356.

(4) O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 2ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

(5) MENDES, Gilmar Ferreira. “A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 23, p. 469-475, dez. 1994.

(6) Op. cit., p. 365.

Marcos Zilli
Juiz de Direito

Boletim IBCCRIM nº 199 - Junho / 2009

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