Antes da discussão dos bens jurídicos tutelados ou merecedores de tutela pelo direito penal informático, é necessário termos em mente alguns conceitos básicos, como os de bem jurídico, de delitos, de lesividade, e outros, pois serão eles, associados aos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, que darão legitimidade à intervenção penal nesta nova era de pretensões jurídicas até então desconhecidas pelo Direito brasileiro.
Os bens são valores essenciais à manutenção da convivência harmônica e pacífica dos homens em sociedade. Estão atrelados ao critério de utilidade. Têm a sua relevância identificada pelo Estado que opta pela tutela jurídica desses bens, transformando-os em bens jurídicos.
Há evidente diferença — fundamento do princípio da fragmentariedade — entre tutelar um bem da vida e incluí-lo no seleto rol dos bens jurídico-penais. Para ser legítima a tutela penal, é necessário que o bem seja “digno” dessa proteção, e que sua lesão ou ameaça efetivamente mereça uma sanção penal. A imprescindibilidade da tutela penal deve ser observada tendo em vista a proporcionalidade entre a relevância do bem jurídico protegido e as consequências sociais marginalizantes e estigmatizadoras, inexistentes nos outros ramos do Direito.
A partir destas premissas pode-se afirmar que a missão do Direito Penal no Estado Democrático e Social de Direito é a proteção dos bens jurídicos mais importantes contra condutas inconciliáveis com as condições de uma convivência pacífica, livre e materialmente segura dos cidadãos.
Quanto aos delitos, temos três possíveis conceitos, a saber, o formal, que é a simples existência da lei que define determinada conduta como crime; o material, que se resume à lesão ou ameaça a um bem penalmente relevante, e o analítico, que faz a estratificação do delito em fato típico, ilícito e culpável.
Hoje, o conceito adotado por nosso Código Penal é o analítico, mas os conceitos formal e material não foram abandonados, ao contrário, vigoram em nosso ordenamento jurídico atual como princípios constitucionais-penais, o da reserva legal e o princípio da lesividade, respectivamente, ao passo que, hoje, todo e qualquer processo de criminalização a eles deve respeito e obediência.
Esses valores são mutáveis e variáveis de acordo com o momento e com o grupo social que se estuda. Aqui, em determinado momento, foi necessário que o Estado punisse o adultério, hoje já não se verifica tal necessidade, e assim como os bens jurídicos deixam de ter relevância penal, novas relações se apresentam como merecedoras de tutela.
É o que vem acontecendo nos contatos sociais via internet, e vários outros que tiveram suas ameaças potencializadas na parcela da sociedade que avançou tecnologicamente, parcela esta que chamamos de “Sociedade da Informação”, por outros denominada “pós-moderna”, ou “Sociedade de Risco”(1).
Alguns fatores como a intensificação dos relacionamentos via internet, a produção em série de computadores, a popularização do comércio eletrônico (e-commerce) e o aumento das transações bancárias, estão diretamente ligados ao aumento de ocorrências de crimes conhecidos, mas que foram praticados pela internet, ao surgimento de novos valores e logicamente à novas condutas ilícitas.
Inicialmente, houve apenas um incremento aos riscos já conhecidos, em razão das inovações tecnológicas nas mãos dos criminosos. Crimes como o estelionato, o furto, a extorsão, passam a ser cometidos à distância, via internet, e o bem jurídico, nesses casos, vai variar de acordo com o resultado produzido ou pretendido. São os chamados delitos informáticos mistos ou impróprios.
Sobre estas práticas, afirmou o professor Vicente Greco Filho, com o brilhantismo que lhe é peculiar, que não importa se instrumento utilizado é a informática, a internet ou uma “peixeira”, os bens jurídicos são os mesmos, já protegidos pelo Direito Penal(2).
O problema reside na limitação dos tipos penais existentes. Violações de correspondência, intimidade, privacidade, sigilo de informações pessoais, já possuem resguardo constitucional, mas penalmente estão sem efetividade, em razão da generalidade das tipificações existentes. Em que pese o esforço hermenêutico diariamente realizado pelos tribunais, não se pode ignorar o princípio da reserva legal, que como já vimos, é imprescindível.
A arte de enganar, utilizada nessas fraudes eletrônicas, também denominada “Engenharia Social”, se for utilizada para obter vantagem indevida em prejuízo de outrem, já está tipificada no art. 171 do Código Penal, em defesa do patrimônio.
Mas, e a violação do domicílio, da intimidade, da privacidade? E a quebra de sigilo bancário? São bens jurídicos que estão sendo lesionados, mas não há como punir essas condutas por analogia às condutas tradicionais já tipificadas. E na prática vêm sendo consideradas como atos preparatórios de outros crimes.
Quanto aos novos valores que surgiram, em que pese os fortes argumentos de oposição, vem ganhando espaço a tese do professor Augusto Rossini, que propõe a tutela específica de um novo bem jurídico, a “segurança informática”, que se refere à integridade, disponibilidade, confidencialidade das informações no ciberespaço, nos denominados delitos informáticos puros ou próprios(3).
Sem questionar a capacidade do Estado em garantir a “segurança informática”, vimos como maior problema desta ideia, a imaterialidade e supraindividualidade do bem jurídico que se pretende tutelar, pois, como vimos, a lesão ao bem é um dos elementos legitimadores e limitadores do poder punitivo, e nesses casos, é muito difícil, senão impossível de ser verificado.
Mas, na verdade, este é o problema de todos os bens relacionados aos chamados direitos de 3ª geração, como o meio ambiente, a ordem econômica etc., bens jurídicos que, apesar das críticas, já possuem seus respectivos sistemas de proteção.
Para esse problema da imaterialidade, a doutrina estrangeira já apresentou algumas soluções, como a utilização da imputação objetiva e a criação de crimes de perigo abstrato, de duvidosa constitucionalidade para alguns. Interessante, porém, é a ideia alemã onde os bens imateriais transindividuais, servem de escudo para os individuais, são “bens jurídicos intermediários espiritualizados”. A saúde pública, v.g., seria a segurança para as saúdes individuais, e se aquela fosse lesionada, esta seria ameaçada, logo, o princípio da lesividade estaria obedecido. Ideia que se completa com a Teoria dos “delitos acumulativos”, afirmando que, de fato, a lesividade de uma conduta isolada seria insignificante, mas se permitir que ela ocorra impunemente, a reiteração por um grande número de pessoas causaria uma lesão irreparável ao bem jurídico(4).
Estamos diante de um novo objeto de estudo, talvez até de um novo bem jurídico merecedor de tutela penal, se identificarmos sua relevância e individualidade. O tema é atual e iminente tendo em vista a notícia das várias propostas de modificação do Código Penal tendentes a tipificar delitos cibernéticos, como o projeto de Lei nº 89 de 2003 da Câmara dos Deputados, e os de nº 76 de 2000 e nº 137 de 2000 de iniciativa do Senado, que hoje encontram-se consolidados no Substitutivo de iniciativa do senador Eduardo Azeredo já aprovados pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática – CCTCI.
Resta-nos continuar as incursões doutrinárias estrangeiras, onde tais delitos já possuem uma roupagem penal, para buscar a melhor forma de adaptar essas pretensões modernas ao nosso já vigente ordenamento jurídico, e suas peculiaridades políticas, constitucionais e culturais.
Notas
(1) Cf., entre outros, BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo – Hacia Una Nueva Modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez, Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998; SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal – Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. São Paulo: RT, 2000. DIÉZ RIPOLLÉS, José Luis. A Racionalidade das Leis Penais – Teoria e Prática. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2005.
(2) GRECO FILHO, Vicente. “Algumas observações sobre o direito penal e a internet”. Boletim IBCCrim. Ano 8, nº 95, out. 2000.
(3) ROSSINI, Augusto Eduardo de Souza. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória jurídica, 2004.
(4) Cf., entre outros, MATA Y MARTÍN, Ricardo M. Bienes Jurídicos Intermedios y Delitos de Peligro, Granada: Comares, 1997, p. 23 e ss.; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual – Interesses Difusos. São Paulo: RT, 2003. p. 64 e ss.
Auriney Uchôa de Brito
Mestrando em Direito na Sociedade da Informação/FMU, especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade Coimbra, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho, especializando em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito e advogado criminalista.
BRITO, Auriney Uchôa de. O bem jurídico-penal dos delitos informáticos. Boletim IBCCRIM: São Paulo, ano 17, n. 199, p. 14-15, junho 2009.
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