sexta-feira, 26 de junho de 2009

Artigo: Em meio ao caos, quem é cidadão? um olhar criminológico sobre o choque de ordem e a escola de chicago

Tendo em vista a ausência nos currículos da maioria das universidades e também por não ser cobrada nos principais concursos públicos, a criminologia vem sendo ignorada ou, quando muito, considerada uma ciência meramente auxiliar do direito penal, tornando cada vez mais míope o olhar do operador do direito, que ao analisar, interpretar e criticar apenas a lei e o judiciário, esquece que o fenômeno da criminalidade e de seu controle pode ser muito mais amplo.

No início do presente ano, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro deu início a um conjunto de medidas que foram denominadas como “Choque de Ordem”, tendo por finalidade restaurar a ordem pública através de intervenções rigorosas sobre um conjunto de ilegalidades e condutas irregulares que vinham sendo toleradas pelas gestões passadas, inclusive com a criação de uma secretaria especial de ordem pública.

Somado a isto, volta-se a discussão a respeito da remoção de favelas e a construção de muros em torno destas comunidades consideradas de risco. Ainda que o fundamento oficial de tais medidas seja o bem estar da população e do meio ambiente, pois tais medidas evitariam o avanço destas construções irregulares sobre reservas ambientais, sem dúvida que estas intervenções urbanísticas possuem um forte cunho político criminal de identificação, delimitação e controle sobre as camadas menos favorecidas, principal alvo do nosso sistema penal.

Para melhor entendermos estas ações vale lembrar que de 1915 a 1940 solidificou-se nos Estados Unidos aquela que seria o principal berço da atual sociologia americana, a primeira Escola de Chicago, que foi fundada em 1891 sob os auspícios do milionário americano John D. Rock­feller. Nela, sob a batuta de Robert Park, Er­nest Burgess e Roderick McKenzie criou-se a Teoria Ecológica, a qual tinha como principal objeto de estudo a cidade como um ente vivo, que influenciava e era influenciada por aqueles que a habitavam.

Segundo Wagner Cinelli, sendo a ecologia um “ramo da biologia que lida com as relações dos organismos entre si e também entre eles e o meio ambiente físico esta perspectiva ecológica vai considerar que o comportamento humano é modelado pelas condições sociais presentes nos meios físicos e social”(1).

Esta teoria, ao se distanciar da escola clássica que defendia o livre arbítrio e o positivismo lombrosiano, contribui com dois grandes estudos para com a criminologia a fim de demonstrar os efeitos criminógenos presentes nas grandes cidades.

O primeiro é sobre a desorganização social face à grande mobilidade decorrente das incessantes mudanças nas vidas dos citadinos, no que diz respeito à residência, trabalho, classe social, impossibilitando, assim, a criação de qualquer laço de identidade entre os semelhantes, enfraquecendo os mecanismos tradicionais de controle, como a família, a religião e as demais relações sociais de solidariedade que inibem a prática de infrações penais(2).

A outra grande contribuição, principalmente com políticas criminais, foram os estudos estatísticos identificadores das chamadas áreas de delinquência, as quais estariam relacionadas à degradação física e moral daqueles que nelas residem ou trabalham.

Com isto, as principais medidas de prevenção do delito, segundo esta escola, recairiam sobre a própria estrutura urbana da cidade, pois como esta se relaciona e influencia no comportamento dos indivíduos, sua “limpeza” seria capaz de contribuir propiciando um ambiente de ordem. Porém, com este raciocínio, passamos para um determinismo ecológico, onde o sujeito é determinado não pela sua biologia, mas pelas influências externas do ambiente onde vive, fazendo com que os indivíduos sejam suspeitos não mais pela sua aparência, mas pelo grupo social que se encontra.

Estas medidas que visam alterar o aspecto urbano com fins pre­ven­cionistas não é novidade. Aqui mesmo no Brasil, no século XIX, várias políticas foram adotadas com o objetivo de manter a ordem através do controle de determinadas condutas, principalmente aquelas relacionadas a negros escravos, fugidos ou libertos. De 1831 em diante, o principal papel da polícia no Rio de Janeiro era preventivo, dispersando o juntamento de escravos, evitando gritarias e garantindo que os botequins fechassem às 22 hs.

Com o atual maniqueísmo que vincula a ordem ao que é belo e ao inimigo aquilo que é feio e sujo, natural a presente transição da higienização sanitária e racial para uma de natureza estética que visa varrer a “sujeira” para debaixo de um tapete simbólico mantendo um ar de austeridade contra a desordem e a imoralidade.

Segundo os próprios dados cedidos pela prefeitura, a referida política, que teve como alvo veículos irregulares, moradores de rua e ambulantes, ao final de 1 mês obteve 156.002 veículos multados e 5.509 rebocados; dentre os moradores de rua, 682 menores e 2.158 adultos recolhidos e, dentre as mercadorias, foram apreendidos 10.001 Kg de produtos perecíveis e mais 122.667 produtos não perecíveis, incluindo barracas de praia e bens recicláveis.

O próprio prefeito definiu o choque de ordem como uma “política de limpeza que visa devolver aos cidadãos os espaços públicos ocupados ilegalmente por mendigos e meninos de rua, removendo estes indivíduos e apreendendo as mercadorias de ambulantes...”

Ora, se tal política visa devolver os espaços públicos aos cidadãos, isto quer dizer que os moradores de rua não são considerados cidadãos?

Reforçando esta tendência moralizadora, no dia 19 de abril o secretário especial de ordem pública distribuiu na orla da Zona Sul a cartilha da civilidade, a qual define as “regras de bom comportamento em sociedade”, considerando os 7 pecados capitais: parar o carro em faixa de pedestre ou atravessar o sinal vermelho, andar com seu cão sem coleira e não colher suas fezes, andar de bicicleta fora da ciclovia e sem capacete, jogar lixo na rua, comprar produtos piratas, estacionar sobre a calçada e o mais impressionante, dar dinheiro para meninos de rua.

Seria cômico se não fosse real. Milhares desta cartilha foram impressas com dinheiro público apenas para divulgar a ideologia de um governo voltado para a uma classe de indivíduos que tem carro, residem onde tem ciclovia e não suportam mais a desconfortável presença de meninos de rua.

A própria consideração de se murar ou remover favelas em muito se identifica com políticas do passado, como se deu entre 1968 e 1975 quando mais de 100 comunidades foram destruídas na cidade e mais de 150.000 pessoas removidas à custa de força policial e com a destruição de vários bens particulares.

Medidas repressivas que violam direitos constitucionais, que impõe regras de condutas sem alternativas dignas de sobrevivência disponíveis e o tratamento desigual do indivíduo apenas por não ter acesso à sociedade de consumo, agridem o atual modelo democrático ao maquiar cosmeticamente uma realidade que incomoda a classe dominante intensificando, ainda mais, a atual segregação social.

Conforme concluiu Jock Young “a cidade é excludente e inquietante em virtude dos modelos de dominação, da falta de reconhecimento ou respeito social, e também, pois freqüentemente as duas coisas estão entrelaçadas, porque apresenta paisagens de injustiça; de desequilíbrio e desigualdade”(3).

Notas

(1) FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço Urbano e Criminalidade: Lições da Escola de Chicago. São Paulo: IBCCRIM, 2002.

(2) HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência numa Cidade do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

(3) Young, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.


Luciano Filizola da Silva

Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes e professor da graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá.


SILVA, Luciano Filizola da. Em meio ao caos, quem é cidadão? Um olhar criminológico sobre o choque de ordem e a Escola de Chicago. Boletim IBCCRIM: São Paulo, ano 17, n. 199, p. 15-16, junho 2009.

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