A produção de teses e dissertações na área das Ciências Humanas e Sociais registrou um crescimento notável nas três últimas décadas, resultado, sobretudo, da expansão dos programas de pós-graduação e do amadurecimento institucional da comunidade acadêmica e das disciplinas específicas em seus respectivos campos. Ainda assim, diversos temas seguem razoavelmente inexplorados, particularmente em sua dimensão histórica. A história das instituições prisionais e dos aparatos punitivos no Brasil enquadra-se nessa categoria, exceto por alguns trabalhos relevantes que, de modo esparso, têm contribuído para compor uma análise mais precisa e acurada acerca desta temática.
A monografia de Marcos Paulo Pedrosa Costa, O Caos Ressurgirá da Ordem, constitui-se em uma destas boas aquisições para o campo acadêmico. Trata-se de uma obra fundamentada por méritos intrínsecos. A diversidade das fontes coletadas e a sistematização minuciosa que o autor promoveu conferem densidade ao estudo. Desse modo, é possível antevê-la como referência para as análises históricas de instituições prisionais. Em algumas passagens iniciais, o autor se alonga em questões que podem ser consideradas laterais, dado o escopo histórico do objeto analisado. Contudo, a condução atribuída subsequentemente conferiu consistência e coerência à temática e ao conjunto de interrogações propostas como horizonte de análise. O resultado é coeso e, certamente, deverá balizar estudos subsequentes que pretendam revisitar o tema.
Ao longo do texto, o autor desenvolve pesquisa sobre o Presídio de Fernando de Noronha e delimita para análise o período entre 1830 e 1890, décadas consideradas como a “fase civil” da instituição. Resultado de um levantamento sistemático de fontes coletadas em diferentes acervos, o autor pretendia desenvolver inicialmente um estudo sobre as relações entre o preso e a instituição “família”. A questão posta inicialmente indagava sobre as possibilidades e os limites de construção, ou reconstrução, da vida familiar do encarcerado e do papel do Estado neste processo.
O tema original derivou, porém, em uma direção mais abrangente e passou a privilegiar a compreensão dos projetos imperiais para a questão prisional no imenso e fragmentado território brasileiro. Em seu argumento, o autor assinala o Presídio de Fernando de Noronha como locus central no século XIX, “repositório dos criminosos de todas as províncias do país”. Ao constituir-se como presídio central, tornou-se, ao mesmo tempo, “laboratório das ideias de reformas penitenciárias” e, como reconhece o autor, “objeto da retórica que poucas vezes conhecia a prática”.
A partir deste deslocamento no interior do próprio tema, e das limitações impostas pela defasagem entre discurso e realidade, Marcos Costa desenvolve a argumentação em duas frentes distintas e amplifica essa disjunção. Ou seja, de um lado, identifica o tratamento dado à questão prisional pelo Império brasileiro, no plano dos enunciados e da retórica com aspirações civilizatórias. E na segunda vertente do estudo, o autor privilegia a experiência específica do Presídio e desdobra a análise na interpretação das reformas e regulamentos propostos para Fernando de Noronha e a execução das rotinas ali estabelecidas.
A monografia permite, desse modo, o cotejamento acerca do papel que a instituição desempenhou na articulação do sistema prisional do Império, ao estabelecer o contraponto entre a propositura dos projetos e as práticas efetivamente estabelecidas. Ao detalhar o modo como as relações se constituíram internamente, o estudo se adensa e oferece ao leitor diversas perspectivas de compreensão e análise, além de deixar entrever caminhos para novas abordagens.
Um exemplo destas possibilidades encontra-se na interpretação dos dados relativos à composição da população carcerária. No século XIX, o presídio esteve subordinado ao Ministério da Guerra até 1877 e subsequentemente ao Ministério da Justiça. Em 1894, deixou de receber sentenciados civis, mas funcionou como presídio estadual até 1910. A partir de 1938, os presos políticos do período são destinados a Fernando de Noronha. Ao delimitar como objeto de sua pesquisa o período de 1830 a 1890, Marcos Costa pôde se valer dos relatórios ministeriais, fonte que permitiu ao autor identificar a procedência da população ali encarcerada.
O caráter nacional do presídio, por exemplo, revela-se bastante assimétrico. Os dados coletados nos relatórios ministeriais de 1873 e 1877 confirmam a representatividade dessa procedência: os presos ali encarcerados eram provenientes de quinze províncias distintas. Porém, muito acentuadamente a participação de Pernambuco difere do restante do território. Em 1873, dos 1.163 presos, 557, ou 47,8% do total, era procedente daquela província. Quatro anos depois, em 1877, a população carcerária havia se elevado para 1.260 presos, e a participação de Pernambuco elevou-se percentualmente acima desse crescimento absoluto, com 681 presos ou 54% do total.
A proximidade da Província propiciou, além de um contingente maior de detentos, a experiência sistemática no “esforço de moralização” dos sentenciados. Nesse sentido, a presença feminina, proibida até 1830, passa a ser estimulada, com o objetivo de constituição de novos núcleos familiares, inclusive com a introdução de mulheres solteiras infratoras, na década de 1860. Além dos “desvios morais”, a presença dos núcleos familiares no interior do presídio contribuía para a manutenção do próprio espaço físico. As despesas de locomoção deviam ser custeadas pelos sentenciados e seus familiares, mas a pobreza, a miséria, a escassez de recursos próprios, com frequência abria espaço para a ação dos presidentes da província pernambucana que financiavam as viagens de navio para esposas que pretendiam “partilhar o desterro” com os respectivos maridos.
A constituição dos núcleos familiares tornava ainda mais complexa as relações internas, seja do ponto de vista da infra-estrutura de serviços, seja na perspectiva dos dispositivos correcionais. No primeiro caso, a questão educacional evidenciava as múltiplas demandas, com a exigência de espaços distintos para meninas e meninos e diferenciados também para os adultos. No segundo aspecto, a religião era considerada crucial para instaurar a moralidade, como assinala o autor: “o criminoso desviado ou desconhecedor das moralidades encontraria na religião o elo com o arrependimento e o reconhecimento da culpa. Seu encarceramento representava uma punição da sociedade a um desvio. (...) Mas, como se corrigir sem reconhecer a própria culpa?”
Além dos aspectos mencionados, o texto oferece um amplo repertório das experiências cotidianas do Presídio. A qualidade do material coligido e a forma assumida, a partir dos atributos do autor, convidam à leitura e reflexão, seja pela amplitude das informações, seja pela possibilidade de se construir uma compreensão mais apurada da experiência de Fernando de Noronha.
Maria Gabriela S.M.C. Marinho
Doutora em História Social (FFLCH-USP), pesquisadora do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (MH/FM-USP), docente da graduação e pós-graduação da Universidade São Francisco (USF)
Boletim IBCCRIM nº 199 - Junho / 2009
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