“Com a declaração de que não haverá nenhuma distinção de natureza racial, social, religiosa ou política, o Projeto contempla o princípio da isonomia, comum à nossa tradição jurídica”
(Item 23 da Exposição de Motivos da LEP)
Há alguns meses, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por votação unânime, em paradigmática decisão, deferiu ordem de habeas corpus em favor de uma sentenciada estrangeira, garantindo-lhe o direito à progressão ao regime prisional semiaberto ou ao livramento condicional.
Conforme constou da ementa oficial do julgado: “Processual penal. Execução penal. Habeas corpus. Estrangeiro não-residente no país. Progressão de regime prisional. Possibilidade. 1. Tanto a execução penal do nacional quanto a do estrangeiro submetem-se aos cânones constitucionais da isonomia e da individualização da pena. 2. Não se admite, após a nova ordem constitucional inaugurada em 1988, a remissão a julgados que se reportam a comandos com ela incompatíveis. 3. A disciplina do trabalho no Estatuto do Estrangeiro não se presta a afastar o co-respectivo direito-dever do condenado no seio da execução penal. 4. Ordem concedida” (HC 103.373-SP, 6ª Turma - STJ, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura - j. 26.08.08, DJe 22.09.08).
Muito além do brilhantismo dos judiciosos argumentos deduzidos no voto condutor do aresto, essa decisão colegiada figura como verdadeiro divisor de águas no tocante a tema tão conturbado na jurisprudência pátria. O teor do julgado pode significar uma mudança significativa do prisma sob o qual as Cortes brasileiras, a partir de agora, enfrentarão a questão dos direitos dos sentenciados estrangeiros no âmbito da execução penal(1).
O precedente representa inegável avanço para a consolidação do entendimento jurisprudencial mais condizente com os valores democráticos de um Estado Constitucional de Direito, sendo pertinentes algumas observações acerca da decisão para se aprimorar as discussões jurídicas sobre a matéria.
Em primeiro lugar, a posição dos Tribunais brasileiros com relação ao assunto nunca foi tranquila. Ao contrário, salvo raras e felizes exceções(2), o pensamento dos Julgadores, desde há muito, pende para a negação aos forasteiros dos direitos/benefícios relativos à execução penal, tais como, progressão de regime de cumprimento de pena, livramento condicional, saídas temporárias, entre outros(3).
Os argumentos invocados pelos que advogam essa tese podem ser assim resumidos: i) pendência de processo de expulsão, ou até mesmo expulsão decretadacontra o estrangeiro que ainda cumpre reprimenda penal; ii) aplicação, por analogia, do dispositivo do Estatuto do Estrangeiro que veda a concessão de sursis àqueles que estão no país em caráter temporário; iii) possibilidade iminente de fuga do estrangeiro que não possui vínculos com o país e iv) proibição, na legislação específica (Lei 6.815/80), de obtenção de emprego formal pelo estrangeiro, o que levaria à impossibilidade de se cumprir uma das condições do regime mais brando ou do livramento(4).
Diante de tal quadro, a ministra relatora, até mesmo antevendo o caráter inovador da decisão, após indicar os julgados em sentido contrário, acentua com bastante precisão: “Contudo, julgo ser necessária maior reflexão acerca da compatibilidade, ou não, da progressão de regime e do livramento condicional com a situação de estrangeiro a quem nem ao menos foi determinada a expulsão, como é o caso dos autos.” E completa, com peculiar senso crítico: “o que se tem assistido é a perpetuação de jurisprudência anterior à Constituição de 1988, a qual não condiz com os objetivos, fundamentos ou princípios estabelecidos pela nova ordem constitucional.”
Logo de início fica fácil perceber a preocupação do acórdão com a compatibilização entre o exercício da hermenêutica jurídica com os valores constitucionais vigentes. O julgador não pode dar as costas à evolução do pensamento jurídico e da própria sociedade sob pena de perpetuar, no mais das vezes, posições equivocadas ou incondizentes com a melhor aplicação do direito.
Afinal, o caráter mutável da jurisprudência é um dos seus mais importantes vetores, de modo que, neste particular, andou bem a Turma Julgadora. Trata-se, a rigor, de decisão colegiada que enfoca a questão sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana, servindo como verdadeiro holofote a iluminar o entendimento pretoriano.
Sobre os demais fundamentos do julgado em lume, o acórdão inicia fazendo uma análise interessante sobre o alcance do princípio constitucional da isonomia a todos os estrangeiros(5), independentemente de serem, ou não, “residentes no país”. Claro, pois o prevalecente neste caso é a proteção à dignidade da pessoa humana em sentido lato, ou seja, de todos os indivíduos que tiverem algum tipo de contato com a ordem jurídica brasileira.
Após destacar a promoção do bem de todos — sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação — como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, o voto condutor deixa pontuado, com bastante propriedade, que “a despeito de, em uma primeira leitura, o artigo 5º da Constituição Federal não se referir ao estrangeiro não-domiciliado, a dimensão jurídica ora em foco diz mais com Direitos Humanos do que propriamente com aqueles tidos por fundamentais”.
Segue o referido acórdão: “Dessa forma, apesar de o estrangeiro sem domicílio no país encontrar-se em uma relação especial de sujeição aos Direitos Fundamentais, subordinado a um estatuto que lhe restringe alguns direitos, tal não pode implicar a negação de seus Direitos Humanos, protegidos nacional e internacionalmente”. E conclui: “Acredito que o princípio da igualdade deve ser observado com o fim de assegurar ao estrangeiro uma forma digna de cumprimento de pena e assegurando-se-lhe todas as garantias, pois, como visto, sua condição jurídica não o desqualifica como sujeito de direitos.”
Assim, desde logo, a decisão já deixa antever a tônica de se garantir ao estrangeiro, independentemente que esteja apenas em trânsito ou sem vínculos mais estreitos com o país, a efetiva igualdade quanto ao tratamento dispensado para os nacionais(6).
Cumpre lembrar que, até para se garantir o princípio da legalidade — um dos pilares de um Estado de Direito —, nenhum dos Diplomas Legais aplicáveis à hipótese (Código Penal, Estatuto do Estrangeiro e Lei de Execuções Penais) restringem os direitos prisionais dos estrangeiros que cumprem pena no Brasil. Mais uma vez, é gritante a incidência do princípio da igualdade.
A decisão continua perfilando sólidos argumentos para rechaçar os precedentes antigos em descompasso com a atual ordem constitucional. A questão da expulsão do estrangeiro infrator foi muito bem analisada à luz da conclusão óbvia de que, além do seu caráter administrativo — atrelado a critérios de conveniência e oportunidade do Poder Executivo —, “a matéria não se afastou em absoluto do terreno penal condicionando-se, no mais das vezes, ao cumprimento total da pena”.
Até porque, a se privilegiar a corrente dissonante neste aspecto, acarretar-se-ia odiosa e inconstitucional obrigatoriedade de cumprimento da pena integral no regime mais rigoroso naquelas hipóteses, em razão, unicamente, da condição de estrangeiro do sentenciado. Consoante destacado no voto, “pensar o contrário violaria o princípio da individualização da pena, que tem como corolário o sistema progressivo de cumprimento da reprimenda”. Como se vê, nada mais lógico, nada mais consentâneo com o sistema de garantias penais vigente no país(7).
Além do irreprochável raciocínio do acórdão cabe dizer que, no nosso entender, mesmo com a existência de processo para expulsão em andamento — ou decreto proferido —, ainda assim plenamente cabível o cumprimento da pena em regime menos brando ou a concessão do livramento condicional. Sim, pois nos dizeres do extinto TACRIM-SP, “A existência dessa sindicância nada diz de modo a impedir, por parte do condenado, de beneficiar-se com o livramento condicional. (...) Cumprirá o réu a sua pena, isto é, vencendo o último estágio, que é, justamente, o livramento condicional. Se, no curso deste, ou após descontada a pena, sobrevier decreto de expulsão, o estrangeiro sofrerá as consequências do ato administrativo expulsório. Mas impedir que, como preso e condenado pela Justiça nacional, seja impedido de cumprir o último estágio da pena em condições mais amenas, por ser estrangeiro, resvala em discriminação”(8)(RT 553/372).
De outro lado, no que atina com a propalada ameaça de fuga do condenado estrangeiro do distrito da culpa após a concessão dos mencionados benefícios da execução, tal argumento nem de longe se sustenta, ao contrário, desmorona-se tal como castelo de cartas ao vento após mínima análise dos postulados processuais-penais.
Cuida-se de odiosa e inaceitável presunção, sem qualquer base empírica, calcada em elementos concretos constantes de cada caso analisado. O sentenciado não pode sofrer os ônus da absurda ilação já que, desde 1967, não existe nenhuma modalidade de prisão obrigatória em nosso ordenamento jurídico. Há que haver análise das circunstâncias de cada caso, sendo ilegal a invocação abstrata do “risco de fuga do país”.
Já no tocante à alegada proibição de obtenção, pelo estrangeiro, de trabalho formal, a linha de pensamento do acórdão em questão põe uma pá de cal em quaisquer dúvidas a respeito da invalidade desse argumento: “o labor é condição de dignidade humana, além de ter finalidade educativa e produtiva, visando a readaptação ao meio social (artigo 28 da LEP). Assim, a decisão que concede a progressão de regime ou o livramento condicional ao estrangeiro não encontra, a meu juízo, óbice ontológico na necessidade de obtenção de ocupação honesta.”
Para tanto, a decisão colaciona precedente do próprio STJ, da relatoria da ministra Laurita Vaz, que pode ser considerado uma daquelas felizes exceções ao senso comum sobre o assunto presente na jurisprudência. Ao interpretar o aludido dispositivo, após reconhecer o viés discriminatório de se negar o livramento condicional com base, apenas, na vedação de trabalho no mercado formal, conclui o julgado: “A lei penal não exige que o condenado estrangeiro tenha uma promessa efetiva de emprego, com carteira registrada, mas sim que tenha condição de exercer qualquer trabalho honesto e lícito para prover sua subsistência e de sua família, ainda que na informalidade da qual sobrevive expressiva parte da população brasileira” (REsp. 662.567, 5ª T., DJ 26.09.05).
Quanto à proibição do sursis ao apenado alienígena (artigo 1º do Dec.-lei 4.865/42) como fundamento de negação aos benefícios da execução, basta pontuar que não se pode fazer analogia in malam partem em Direito Penal. São institutos distintos, com natureza jurídica diferentes, não sendo, pois, aplicável à espécie.
Em resumo, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça representa — não obstante o respeito às opiniões em contrário — uma fagulha de esperança, um alento, para que se firme, na jurisprudência, a posição mais harmônica com o espírito da Execução Penal moderna com relação ao condenado estrangeiro.
Notas
(1) Tanto isso é verdade que, ainda mais recentemente, o mesmo STJ, só que agora pela 5ª Turma, concedeu parcialmente ordem de habeas corpus, invocando o mencionado precedente: “Estrangeira em situação irregular. Inexistência de processo de expulsão em andamento. Possibilidade de progressão de regime, in casu. (...) Ordem parcialmente concedida, apenas para determinar a apreciação do pedido de progressão nos termos do art. 112 da LEP” (HC 111.024-SP, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 20.11.08, DJe 15.12.08).
(2) Entre tais decisões, destacam-se: TJSP, Ag. em Execução 182.365.3/5, 3ª Câm., rel. Oliveira Ribeiro, j. 19.06.95 (RT 724/627), TRF da 3ª Reg., Apel. 97.03.071969-4, 5ª T., rel. Suzana Camargo, DJ 29.09.98.
(3) Apenas a título de exemplo, citem-se, no STF: HC 56.311, rel. Moreira Alves, j. 15.8.78 (RTJ 90/790), HC 63.593, rel. Djaci Falcão (RT 117/611); HC 68.723, rel. Paulo Brossard, 2ª T., j. 20.08.91. No STJ, HC 18.747, rel. Vicente Leal, 6ª T., j. 07.02.02.
(4) Na realidade, o resumo dos argumentos dos tribunais para se negar tal direito aos estrangeiros — resumo este também citado no acórdão em comento — vem trazido pelo procurador regional da República no Rio de Janeiro Artur de Brito Gueiros Souza numa das mais completas obras sobre o assunto: Presos Estrangeiros no Brasil – Aspectos Jurídicos e Criminológicos, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p. 206.
(5) “Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes do País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade ...”
(6) No mesmo sentido aponta recentíssimo precedente da 6ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo o qual “a expressão estrangeiros no país não visa a excluir o estrangeiro em trânsito, mas apenas deixa claro que o tratamento isonômico se garante em todo o território nacional. Garantem-se ao sentenciado estrangeiro, portanto, todos os benefícios executórios previstos em lei, inclusive, a progressão de regime carcerário” (Ag. em Exec. n.º 990.08.101767-9, rel. Ericson Maranho, j. 08.01.09, pendente de publicação).
(7) Não por acaso, Alberto Zacharias Toron já pontificava, há quase dez anos, que: “Revela-se inadmissível que o estrangeiro, pela só condição da sua origem nacional, seja excluído dos benefícios prisionais em razão de um decreto de expulsão que atina com critérios de conveniência e oportunidade estranhos à avaliação criminológica que é decisiva para se diminuir o rigor carcerário. Se é inconveniente a permanência do estrangeiro condenado nas ruas, que se efetive sua expulsão, mas daí a exigir o cumprimento integral da pena em regime fechado chega a ser cruel, verdadeiramente hediondo” (“O condenado estrangeiro e a progressão do regime prisional”, Boletim do IBCCRIM, São Paulo, v. 7, nº 81, p. 11-12, ago. 1999).
(8) Ainda acerca da expulsão, válido reproduzir as palavras de Arthur de Brito Gueiros Souza, segundo as quais “não parece, dessa maneira, correto, devolver para o braço punitivo — Direito Penal e Direito de Execução Penal —, via cassação do direito secular à progressão de regime, problemas concernentes ao ato de expulsão. (...) afigura-se profundamente injusto que um fator externo ao desempenho da pena de um cidadão estrangeiro possa ditar a sua sorte, afetando negativamente o acesso ao regime semiaberto ou aberto” (ob. cit., p. 230).
Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Advogado criminalista em São Paulo.
LOUVEIRA, Leopoldo Stefano Leone. Possibilidade de progressão de regime e concessão de livramento condicional ao sentenciado estrangeiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 6-7, mar. 2009.
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