terça-feira, 24 de março de 2009

Drogas: mesma rota, novos ventos

A reunião da Comissão de Drogas Narcóticas da ONU, que aconteceu entre os dias 11 e 12 de março em Viena, Áustria, e onde estiveram presentes 52 governos para avaliar a política internacional de drogas vigente nos últimos 10 anos, evidenciou uma forte divisão entre os países que a integram e deixou claro que obter um consenso neste fórum já não será mais um trâmite fácil como foi no passado.

Em meio às tensões que duraram dois dias esteve o termo "redução de danos", que finalmente foi excluído da Declaração Política, apesar do intenso lobby realizado pelos representantes de governo e organizações européias e latinoamericanas.

Entretanto, uma nota assinada por 26 países entre os quais se encontram Alemanha, Austrália, Bolítiva, Espanha, Bulgária e Suiça, e que foi anexada à Declaração Política, registra que os governos interpretarão o trecho "serviços de apoio relacionados" - que está incluido na Declaração - como "redução de danos", expressão que foi veementemente rechaçada por Colômbia, Cuba, Rússia e Estados Unidos.

Esta foi uma maneira de não bloquear a Declaração Política e, assim, resgatar um enfoque de saúde para o tema de drogas, que em alguns países já inclui tratamento médico para usuários de drogas, distribuição de seringas entre os dependentes para evitar a propagação do HIV e substituição dos opiácios por medicamentos controlados, entre outros.

Em sua intervenção, o embaixador Rüdiger Lüdeking, chefe da delegação alemã que liderou a "dissidência", esclareceu que o termo "redução de danos" compreende a prevenção, o tratamento e a reabilitação, como parte de uma estratégia ampla para redução da demanda de drogas, destinado ao enfrentamento das consequências do abuso das drogas.

Para Martin Jelsma, coordenador do programa de Drogas e Democracia do "Transnational Institute" e que presenciou os debates, esta nota representa um precedente importante de desacordo em um organismo acostumado a buscar consensos sem muita oposição.

"A expressão de insatisfação deste grupo de 25 países e as reações que isso provocou nos outros membros, gerou um momento de muita tensão e deixou claro que já existem países que não estão simplesmente dispostos a seguir a corrente ou a se calarem para permitir o consenso, mas estão preparados para debater (...) isto é algo que não acontecia em reuniões anteriores", afirmou.

Rubem César Fernandes, diretor do Viva Rio e membro da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, e que também esteve nas reuniões, afirmou que a Declaração Política foi como um "canto de cisne, um sinal melancólico do fim de uma história. As mudanças já estão ocorrendo, ainda que de modo disperso, ao redor do mundo, mas além dos salões vienenses. Isto é verdade, inclusive, nos Estados Unidos. A nomeação de um novo czar antidrogas oriundo de Seattle, cidade famosa por suas posturas liberais, aponta nesta direção”.

A diretora do Global Drug Policy Fund, do Open Society Institut, Kasia Malinowska, acrescentou que "o consenso em Viena parece ser incrivelmente importante para a imagem da Comissão de Narcóticos e para o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime... Bom, claramente esta era está chegando ao seu fim.”

"Mais do mesmo"

Além deste aspecto, a Declaração Política não representa uma maior mudança na política de drogas que se manteve vigente nos últimos 10 anos. Pelo contrário, com ela a ONU revalidou sua postura proibicionista, renovando o sonho de um "mundo sem drogas". A declaração estipula uma data para este sonho: no ano de 2019, as nações deverão ter "eliminado ou reduzido significativamente" os cultivos ilícitos das plantas de papoula, coca e maconha.

Tudo isto apesar de toda a intensa argumentação de entidades como a Comissão Européia que, durante o desenvolvimento dos debates, apresentou um relatório questionando a validade da política de drogas atual, com dados como o de que as drogas se tornaram 10% a 30% mais baratas.

Segundo o relatório, a proibição tem gerado unicamente o deslocamento dos traficantes para lugares com pouca presença estatal, assim como o uso compartilhado de seringas entre os usuários. "A situação mundial das drogas parece estar mais ou menos no mesmo estado que estava em 1988. Há poucas evidências de que os controles podem reduzir totalmente a produção global (...) para o tráfico. Os controles sobre a produção e o tráfico só redistribuiram as atividades. A repressão contra os mercados locais fracassou na maioria dos países", diz o documento.

A este respeito, Rüdiger Lüdeking agregou durante sua intervenção que o mundo deveria admitir que as metas e objetivos estabelecidos para os 10 anos não se cumpriram. "O consumo de drogas ilícitas e substâncias psicotrópicas não se reduziram substancialmente. Inclusive, em muitos lugares do mundo, aumentou consideravelmente. O mesmo se aplica para o cultivo e a distribuição de drogas ilícitas que não baixaram globalmente apesar de todos os esforços", concluindo que "mais do mesmo não é suficiente".

Tampouco se materializaram na Declaração Política os aplausos que recebeu o presidente da Bolívia, Evo Morales, por sua intenção em explicar didaticamente a natureza do uso medicinal da folha de coca. "Isto é uma folha de coca. Isto não é cocaina. É parte de uma parcela da nossa cultura. Não é uma droga narcótica e não é possível que esteja em uma lista de drogas narcóticas", garantiu Morales ao mascar uma das folhas. A petição formal de excluir a folha de coca da lista de narcóticos fará seu curso formal na ONU.

Inclusive, o chefe do Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime (UNODC), Antonio Maria Costa reconheceu no início da reunião o fracasso da política de drogas no que diz respeito ao crime organizado e seus efeitos nas sociedades. Costa disse que o consumo diminuiu mas afirmou que os cartéis estavam utilizando seu enorme lucro para minar a democracia em vários países. Entretanto, Costa atribuiu não à política de drogas em si, mas à incapacidade de muitos países em implementar na prática as convenções da ONU sobre drogas.

O pano de fundo

Então, por que a Comissão de Drogas Narcóticas da ONU insistiu em sua política proibicionista? Na opinião de um diplomata envolvido nas negociações, que pediu para não ser identificado, para muitos países a política de drogas é um mecanismo de controle social. "Dentro da comissão existem três grupos: um que quer manter o marco da luta contra os narcóticos como está, pois a política de drogas permite a estes governos ter o controle social sobre os grupos da sociedade considerados 'problemáticos', tais como jovens, populações marginalizadas, desempregados ou insatisfeitos. Nestes casos, a política de drogas é uma política de governo (...) que a usa para disciplinar minorias, como os negros ou os hispânicos, entre outros."

O segundo grupo, afirmou o diplomata, está alinhado com alguns países europeus que querem tratar as drogas como assunto de saúde pública, considerando que as atuais drogas ilícitas são tão prejudiciais quanto o álcool e o tabaco, oferecendo ao consumidor assistência médica e não punição judicial.

"O terceiro grupo é constituido por países latino-americanos, com algumas exceções como a Colômbia, que querem implementar políticas de saúde para lidar com o tema drogas, como no caso do Brasil, mas que não têm assumido uma postura muito visível na comissão da ONU", pontuou o diplomata.

Na opnião de Malinowska, a razão pela qual a comissão continua defendendo sua política é que "alguns países com voz se recusam a admitir que um mundo livre de drogas é uma fantasia e porque estes mesmos governos estão dispostos a ignorar a evidência científica e a priorizar uma interpretação moralista e ideológica ao invés de levar em conta as lições apreendidas."

Ao comentar o alcance da Declaração, o diretor da Human Rights Watch, Joseph Amon, disse no comunicado que "dada a vasta violação dos direitos humanos ao redor do mundo como resultado direto da ilegalidade das drogas, os direitos humanos devem estar no coração da política de drogas das Nações Unidas. Mas a declaração política faz pouca referência às obrigações legais dos estados membros perante os tratados internacionais de direitos humanos, e não insiste a respeito dos direitos humanos na política de drogas", avaliou.

Sem dúvida é consenso das organizações não governamentais ligadas ao tema de que a Declaração Política foi uma decepção. No entanto, restam aspectos relevantes como a nota dos 26 países "dissidentes" e a maior participação da sociedade civil através de uma atividade mais vigorosa das ONGs.

"Reuniões anteriores não se comparam com o nível de participação das ONGs que estiveram presentes e que assumiram a liderança nos temas de direitos humanos e Aids, por exemplo. Participaram em muitas reuniões não oficiais que tiveram impacto. Entretanto, ainda é muito limitada sua participação direta na ONU, já que na plenária da reunião, que durou dois dias, só houve cinco minutos para a apresentação de um representante de todas as ONGs", comentou Jelsma.

O espaço reduzido para a participação em plenária das ONGs contrastou com a mobilidade de seus representantes nos corredores e nos eventos paralelos. Assim evidenciou Malinowska, que reconheceu que o trabalho das ONGs foi visível e representou a sociedade civil, um componente que não se fizera sentir nas reuniões anteriores e que parece haver obtido um assento na CDN.


Comunidade Segura.

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