sexta-feira, 27 de março de 2009

Prisão por dívida tende a se tornar coisa do passado

O STF e o STJ já se posicionaram contra a prisão do depositário infiel. Especialistas divergem quanto ao impacto da decisão.

Desde o primeiro ano de curso, os estudantes de Direito aprendem que, no Brasil, prisão civil só ocorre em dois casos: de depositário infiel ou por não pagamento de pensão alimentícia. Mas decisões recentes dos tribunais superiores devem fazer com que esse ensinamento seja modificado. Em dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) posicionou-se contra a prisão civil do depositário infiel. Na semana passada, foi a vez do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manifestar a mesma opinião.

Os tribunais não ficam obrigados a seguir esses posicionamentos, já que não houve ainda a edição de uma súmula vinculante. Na prática, contudo, ao analisar decisões recentes, já é possível observar que a prisão de depositário infiel no Brasil tende a virar coisa do passado.

Depositário infiel é aquele que recebe a incumbência contratual ou judicial de zelar por um bem, mas não cumpre a sua obrigação e deixa de entregá-lo em juízo ou de devolvê-lo ao proprietário, quando requisitado, e nem apresenta o equivalente em dinheiro. Uma terceira hipótese de depositário infiel, admitida por analogia, é daquele que deixava de pagar e de devolver o bem em contratos de alienação fiduciária (quando a propriedade do bem fica com o financiador até que o devedor termine de pagar por ele).

A procuradora do estado Márcia Carla Ribeiro, professora de Direito Empresarial da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), não vê com bons olhos a nova interpretação das regras. “Pessoalmente, eu não gosto de medidas que enfraquecem quem tem o direito em benefício de quem deve, no sentido de ter um dever jurídico. É uma forma de impunidade”, afirma. Segundo Márcia, a prisão civil do depositário infiel é uma forma de coerção e garantia para aquele que tem um bem depositado nas mãos de outro. “O instituto do depósito fica prejudicado”, diz. Para a procuradora, as decisões do STF e STJ devem trazer impacto econômico. “Agora, no máximo, o proprietário poderá entrar com ação de indenização contra o depositário. Vai impactar nos contratos. As taxas de crédito vão encarecer nos casos de depósito contratual. Nos casos de depósito judicial, o bem vai acabar ficando parado em uma sala, em vez de ficar em mãos de particular”, diz.

O jurista Francisco Rezek, autor de pelo menos uma dezena de publicações sobre Direito Internacional Público, tem uma opinião diferente. Para ele, o conceito de “prisão por dívida do depositário infiel” foi desvirtuado no Brasil. “O legislador ordinário no Brasil inventou mil maneiras de equiparar ao depositário infiel o devedor fiduciário em garantia, o que compra em prestação na loja e um dia se vê sem dinheiro para continuar pagando as prestações e sem o bem para devolver”, opina.

O advogado, Alfredo Assis Gonçalves Neto, professor aposentado de Direito Comercial da UFPR, também é favorável à decisão dos tribunais superiores. “Instituições financeiras maquiavam empréstimos com contornos de depósito de bem fungível (que pode ser trocado por outro da mesma espécie), sob ameaça de prisão”, explica. Para Assis Gonçalves Neto, apenas a prisão pelo não pagamento de pensão alimentícia deve ser admitida. “Por questões humanitárias”, diz.

Polêmica

A prisão do depositário infiel sempre foi polêmica entre os juristas e razão de divergências nos tribunais. A questão é que a Constituição Federal traz a possibilidade de prisão de depositário infiel, mas tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário rechaçavam a prisão por dívidas, com exceção aos casos de não pagamento de pensão alimentícia. O problema estaria resolvido se tais tratados se enquadrassem na Emenda Constitucional 45/2004, que prevê que tais normas internacionais ganhem status constitucional se passarem pelo mesmo trâmite de aprovação de emendas constitucionais.

A discussão era qual status dar aos tratados que não se enquadravam neste caso, como o Pacto de São José da Costa Rica de 1969, ratificado pelo Brasil em 1992, que prevê a proibição da prisão por dívidas, com exceção do inadimplemento da obrigação alimentar. A opção dos tribunais superiores, então, foi considerar tal norma supralegal, ou seja, acima da legislação ordinária do país, mas abaixo do texto constitucional.

Os tribunais superiores entenderam ainda que a previsão da Constituição Federal de prisão civil para depositário infiel é facultativa e carente de lei ordinária que defina rito processual e prazos. Desse modo, a base legal para sustentar a prisão civil de depositário fiel cai, já que as leis que operacionalizariam essa medida coercitiva estariam abaixo do tratado internacional que a proíbe. A Súmula 619 do STF, que previa que “a prisão do depositário infiel poderia ser decretada no próprio processo em que se constitui o encargo, independentemente de propositura de ação de depósito”, foi revogada.

Gazeta do Povo.

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