Depois, alternou a militância política com a social e agora preside no Senado a Banca da mulher, um órgão transversal com a idéia de dar relevância às iniciativas que surgem em defesa dos direitos das mulheres.
Mesmo fazendo parte do governo e sendo amiga da presidente Cristina Kirchner – e uma de suas principais colaboradoras em termos intelectuais - Perceval teve a tarefa de ler no Senado o relatório da Anistia Internacional que deu conta – usando dados da imprensa devido à falta de informações oficiais - de um dado trágico do país: a cada três dias uma mulher é assassinada por alguém próximo a ela na Argentina.
O relatório da Anistia Internacional afirmou que, de acordo com um monitoramento parcial da mídia impressa e online realizado no país, “pelo menos 120 mulheres morreram na Argentina em 2008 nas mãos de seus companheiros, ex companheiros ou familiares”.
A Anistia denunciou também que “somente na Cidade Autônoma de Buenos Aires, a linha telefônica de auxílio à violência familiar recebeu 5.665 chamadas nos primeiros seis meses de 2008”.
Segundo a organização, “estes números comprovam a falta de ação do governo para proteger as mulheres frente à violência e ajudar as sobreviventes”.
O Comunidade Segura conversou com Marita Perceval sobre a nova lei argentina e sobre uma profunda mudança cultural que deve ser produzida em todas as instâncias do Estado. Mas ela é otimista: está convencida de que a lei marcará positivamente a história das mulheres em seu país.
Qual é o contexto em que a Argentina começa a legislar em torno da violência contra a mulher?
No nível mundial, este ano o secretário da ONU colocou na agenda como prioridade a eliminação de todas as formas de violência contra as mulheres, que foi definida pelo sistema das Nações Unidas como “a epidemia social do século XXI”.
Tem sua base nas relações desiguais e nas condições de assimetria entre as condições que têm homens e mulheres em diferentes sociedades, com distintas ênfases, mas com uma extensão global que indica que as mulheres continuam sendo vítimas de discriminação, inequidade e, portanto, de desigualdade.
Por que a senhora decidiu liderar este espaço na Argentina e defender a aprovação do projeto que acaba de ser sancionado?
A situação na Argentina não pode ser comparada com as outras realidades da região, mas temos uma situação de vulnerabilidade estatal, por uma fragmentação na abordagem das políticas públicas para prevenir e erradicar e as violências contra as mulheres.
Nós avançamos aqui a partir das conclusões de Belém do Pará em diferentes legislações pontuais, mas, com a lei brasileira Maria da Penha, pudemos visualizar plenamente, ou melhor, tirar da obscuridade que o Estado mesmo reproduzia, outras formas de violência que não se reduziam à violência doméstica ou intrafamiliar.
Nos anos 80 foi um avanço dizer que "o privado é público" e que as violências cotidianas contra as mulheres nos espaços privados deviam ser tipificadas como delitos. Depois disso, não houve avanços no sentido de dar visibilidade, em reconhecer múltiplas formas de violências em diferentes âmbitos.
Como quais, por exemplo, segundo indica a nova legislação?
As de cunho laboral, as que se produzem no âmbito midiático, no institucional, em diferentes espaços sociais nos quais diferentes tipos de violência – não só física, mas a psicológica, a moral, a sexual, a violência sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres - eram cotidianamente silenciadas e, em muitos casos, eram indiferentes às políticas públicas.
Cmo começou o trabalho em torno da atualização da lei na Argentina?
Na Argentina, a Anistia Internacional apresentou um relatório através da Banca da mulher, a qual presido. Se trata de um espaço de acompanhamento das diferentes normas discutidas no Senado que contenham e garantam uma perspectiva de gênero e que permitam que as várias iniciativas deste tipo encontrem nos senadores de todos os partidos políticos um compromisso real.
O que dizia o relatório?
A Anistia Internacional apenas informou o que já se sabia, mas não era reconhecido publicamente: que a cada três dias uma mulher é assassinada na Argentina por um homem com quem manteve algum tipo de relacionamento. Isto é, seu marido, companheiro ou ex companheiro. Estes números não foram obtidos de registros oficiais porque no existem registros. Estes dados foram obtidos dos meios de comunicação.
Como foi o processo até a sanção do projeto?
Durante quatro anos tentamos incluir o tema da violência contra as mulheres na agenda do Congresso. Temos uma lei de “Violência intrafamiliar” que precisa de adequações e atualizações, mas fundamentalmente tínhamos que mudar e mostrar que são múltiplos os espaços e diferentes as modalidades em que a mulher é vítima de violência.
Acredito que esse tempo contribuiu muito não somente por termos constituído no Senado a “Bancada da mulher”, mas pelo acompanhamento dos organismos de Direitos Humanos, os movimentos de mulheres, as organizações feministas em nível local e internacional.
Como se conseguiu articular a diversidade de opiniões dentro do Congresso?
Havia diferentes projetos que abordavam diferentes aspectos. Alguns falavam da violência laboral e outros sobre a violência sexual. No meu caso, eu havia apresentado um projeto integral, como é a lei brasileira, da Venezuela, da Espanha, ou como avançaram as mulheres do Chile. Então, fomo trabalhando sobre esse projeto de abordagem integral enriquecendo-o com aspectos dos outros projetos.
Que avanços esta lei trará?
Primeiro, vai definir do estamos falando quando nos referimos a violências contra as mulheres, cumprindo estritamente a definição de Belém do Pará. Em segundo lugar, reconhecer os diferentes tipos de violência e suas modalidades. Alguns setores conservadores, já conhecidos e que cada vez que se fala de direitos das mulheres pensam que se trata de aborto, colocaram obstáculos para a aprovação desta lei.
A senhora acredita que os as províncias avançarão na sua aplicação? Ou será, como tantas leis, que são consideradas modelos mas não são implementadas?
Existe algo fundamental nesta lei nacional que compromete as províncias, não é uma lei a qual devem aderir individualmente. Funcionará como as leis ambientais, que estabelecem pressupostos básicos, ou mínimos, que devem ser respeitados.
Nesse caso, se estabelecem princípios que guiam as políticas públicas e os procedimentos como estandartes básicos para o desenho e o desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres. Desta forma, todas as jurisdições provinciais devem, junto ao Estado e aos três poderes, adequar-se aos critérios e princípios da lei.
O que a lei estabelece como base de trabalho?
Primeiro, que não podem ser aplicadas o que eu chamo de “políticas programeiras”, ou seja, que um ou outro município ou cidade, na melhor das intenções, aplique um programa que funcione, mas que seja baseado em conceitos diferentes, como programas isolados. São gotas de água em um oceano; não existe transversalidade, consistência nem articulação.
Outro exemplo de dispersão são as Delegacias da Mulher da província de Buenos Aires que têm um protocolo de atendimento que é diferente do aplicado na capital argentina. A lei busca justamente criar a necessidade e a obrigação de elaborar protocolos em todas as áreas do Estado.
Gostaria de destacar que não é apenas uma sugestão, é uma lei que vale em todo o território argentino. E isto implica que, além dos protocolos, cada área do Estado vinculada, por exemplo, à saúde, à Justiça ou à segurança, deve ter a orientação necessária e a capacitação para que seus funcionários atuem corretamente.
A senhora afirmou que não existem registros sobre a violência contra as mulheres. A lei vai ajudar nesse sentido?
A nova lei estabelece a criação de um registro único de vítimas de violência. Isto quer dizer que se for identificada em algum órgão de Saúde ou em alguma escola uma vítima de violência, esse dado deve ser enviado para o Registro Único Nacional de Vítimas de Violência. O que falta na Argentina e no que estamos trabalhando em nível mundial é compreender quais são as condições e situações que disparam a espiral de violência. Acredito que a lei servirá, além disso, para por em evidência que são as relações assimétricas de poder que fundamentam as violências. No nosso país, as mulheres têm 520% mais probabilidade de ser vítimas de uma arma de fogo mantida dentro de casa do que os homens.
O que vai melhorar com a aplicação da lei?
Con protocolos unificados, estatísticas únicas, orientação coerente para a prevenção, atenção e contenção, a lei vai fazer com que o Estado, junto con as organizações sociais trabalhem de uma forma harmônica e também gerará uma forma de trabalho eficiente e eficaz.
Teremos que capacitar mulheres e homens no conceito de Diretos Humanos para que o cinismo com que às vezes uma mulher vítima de violência é atendida em um órgão público não se propague. Será necesaria uma capacitação consistente por parte do Estado, que tem a obrigação de velar pelo pleno cumprimento dos Direitos Humanos.
A senhora acha que aumentará o número de denúncias?
Aí existe um ponto importante. Mesmo quando a vítima não faça uma denúncia formal, os agentes do Estado que tratam de casos de violência têm a obrigação de denunciar o ato de violência. Existe outro conceito que se afirma com esta lei e que é importante: o direito à autonomia econômica das mulheres.
Que implicações terá o reconhecimento deste direito?
Implica no direito das mulheres de serem independentes econômicamente, de terem acesso ao crédito, e que, ainda que não esteja inserida no mundo profissional, haja uma formação para a empregabilidade desta mulher e garantias de sua inclusão no mercado de trabalho. E, se for trabalhadora, garantir condições dignas de trabalho. O resguardo de seus bens, o respeto irrestrito à sua intimidade … Enfim, acho que ainda temos muito trabalho pela frente para que esta lei faça sua parte nas mudanças da realidade violenta das mulheres na Argentina.
A íntegra da lei (em espanhol).
Comunidade Segura.
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