Muito se fala no “Direito Penal do Inimigo”, fenômeno mencionado por Günther Jakobs e que gerou livro em parceria com Cancio Meliá(1). Surpreendem, porém, os posicionamentos favoráveis e contrários à teoria que sequer discutem as bases que a ela dão sustentáculo. Também parece não haver consenso sobre o que se critica ou enaltece.
Desta forma, ao contrário do que possa parecer, o “Direito Penal do Inimigo”(2) não representa apenas e tão-somente a imposição da famigerada “lei e ordem”, de um “direito penal emergencial”. Em algum aspecto pode-se até notar traços de verdade nisso, mas como buscaremos demonstrar no decorrer do texto, a tese de Jakobs impõe conhecimento de doutrina clássica como a de Hobbes, Rousseau, Kant, Fichte e Luhmann. Só por isso, nota-se que não se pode querer dar explicações simplistas sobre o que seja o “D.P.I.”, até porque o próprio Jakobs deixa em aberto a questão sobre se se trata de um “Direito”.
Didaticamente cremos que o melhor iter para a conclusão do que venha a ser o “D.P.I.” seja iniciado da análise sobre como Jakobs vê as funções da pena e do Direito Penal. Nesse sentido, apesar das controvérsias doutrinárias, (quase) sempre são mencionadas as seguintes funções da pena: i) retribuição; e, ii) prevenção (esta subdividida em geral — positiva e negativa — e especial — positiva e negativa)(3). A prevenção geral positiva é a que se enquadra no pensamento de Jakobs. Frise-se, porém, que defender essa função não é novidade, haja vista outros já terem advogado, ainda que com algumas diferenças nos argumentos, tal função penal. Assim fizeram Carrara, Durkhein(4) e Welzel(5), por exemplo.
Para Jakobs, a concepção de prevenção geral positiva parte da ideia de que as pessoas devem ser fiéis ao Direito, indagando quais as relações delas com a sociedade e qual a relação desta com o Direito Penal. Assim, o alemão se vale, entre outras, de duas principais teorias para estruturar suas ideias de função do Direito Penal: a) a da “biologia do fenômeno social”, desenvolvida pelos biólogos Maturana e Varela; e, b) a dos sistemas sociais de Luhmann, que fez releitura da teoria antecedente(6). De fato as teorias (Maturana e Luhmann) formam a base do funcionalismo radical sistêmico de Jakobs, que importou do sociólogo Niklas Luhmann as ideias de sistema pré-definido fechado, cláusulas de contingência, mecanismos de acoplamento e consistência das decisões; e de Maturana e Varela a ideia da autopoiese dos sistemas dos seres vivos. Por isso o professor Jakobs não admite a relação entre Luhmann e o DPI, apenas entre Luhmann e o funcionalismo sistêmico.
Em apertada suma, Jakobs estrutura sua teoria na opção do indivíduo de não se submeter ao sistema normativo, decidindo por uma ruptura com o contrato social(7) de modo que, não se submetendo ao sistema, a este não pertence. A consequência é que as normas do sistema não se aplicam ao “dissidente”, aplicando-se outras. Aquele que não é fiel ao sistema, rejeitando-o por total, não é pessoa, pelo contrário, é uma “não-pessoa”, ou seja, o conceito puramente normativo de dignidade humana leva a classificar pessoas e “não-pessoas”. Estes representam um perigo aos demais, justificando-se o tratamento diferente a ele dispensado. O sistema maior seria o Direito, cuja função seria a de regular a complexidade do sistema. Por isso, o Direito precisa ser fechado, autorreferencial, por meio do qual seria mantida a identidade social. Esta pode ser levemente lesada, caso em que a identidade é mantida, ou, por outro lado, a lesão pode ser bastante significativa. Neste caso a identidade sistêmica se perderia. Só nesses casos é que alguém seria tratado por “inimigo”. Justamente neste ponto há encontro dos vieses contratualista e social-sistêmico.
Nesse sentido, pode-se dizer ainda que Jakobs estrutura suas ideias a partir das seguintes proposições: i) Direito Penal e sociedade estão num relacionamento recíproco; ii) O Direito Penal se presta à manutenção da identidade social, não para o controle social; iii) A função das penas não é a de retribuir o mal praticado por alguém, nem de impor a prevenção especial positiva ou negativa, mas apenas e tão-somente proteger a violação das normas, mantendo as expectativas sociais.
Dito isso, passamos a considerar o “D.P.I.” sob diferentes óticas. Numa interpretação puramente lingUística, poder-se-ia mesmo entendê-lo como um direito penal do autor, desconsiderando-se a culpa do agente, sendo prospectivo e não retrospectivo. Em última análise, baseado na periculosidade, não na culpabilidade. Por outro lado, na prática, outras óticas podem surgir, como a crítica-descritiva e a legitimadora(8). A primeira seria a visão de que algumas normas receberiam a pecha de antidemocráticas(9), violadoras das garantias inerentes à dignidade da pessoa humana. Já a ótica legitimadora seria a de formular teoria com pressupostos que legitimassem o “D.P.I.” a atuar na sociedade, não como algo negativo(10), mas como algo diverso de um “Direito Penal do cidadão”.
Qual dessas faria parte da tese de Jakobs? Ou haveria outra a ser considerada? Não há entendimento pacífico sobre esta questão, até porque notamos alguma falta de clareza no discurso do professor alemão. Embora cite repetidas vezes que faz mera descrição de algo que têm ocorrido no mundo, por outras vezes, aparentemente busca legitimar o “D.P.I.” no meio social, o que faz a doutrina notar certa ambiguidade na teoria(11). Como bem percebe Luís Greco, “a falta de clareza do autor provoca a falta de clareza dos oponentes”(12).
Vê-se, pois, como mencionado no início do texto, que a teoria de Jakobs não é simplista ao ponto de pregar unicamente um endurecimento penal ou a expansão do Direito Penal, na falácia de busca por maior efetividade social. Ele sustenta que o tratamento totalmente desregrado e de modo obscuro dispensado aos inimigos é pior do que estabelecer regras para o “grupo dissidente”; por outro lado não esclarece como deveria ser o tratamento “ideal” dispensado aos inimigos.
O fato é que apesar de notar alguns pontos que devem ser esclarecidos, sua teoria fora elogiada até mesmo por Roxin que, todavia, discorda da tese por adotar outra vertente do funcionalismo penal, baseada na interação entre política criminal e dogmática penal e sustentando outras finalidades da pena.
Quanto a nós, palpitam as questões: como dizer quem deixa de ser fiel ao sistema? Como aferir quem não se submete aos ditames legais sem que haja um grande subjetivismo ou ideologias (por vezes obscuras)? Ademais, quais as regras aplicáveis aos “inimigos”? Por fim, seriam essas regras “Direito”? Especialmente discordamos do alemão quanto à elaboração da teoria, seja porque nos parece puramente teórica, afastando-se das realidades sociais (metafisicamente falando), seja por permitir muito facilmente que ideologias obscuras dela se apropriem para uma “caça às bruxas” e, por fim, por se afastar do “Direito Penal da culpa” tendo viés subjetivista quanto à escolha dos inimigos, “ser”, não pelo “fazer”, o que confronta diametralmente com o Direito Penal da culpa por nós adotado na Constituição Federal e também no Código Penal. Sugerimos, ademais, que quando manifestemos nossas opiniões sobre a teoria, que reste claro qual a interpretação feita a partir dos estudos de Jakobs.
Notas
(1) JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas, 2003.
(2) Daqui em diante abreviaremos o termo, utilizando a corruptela “D.P.I.” para designar o “Direito Penal do Inimigo”.
(3) Em apertada suma, prevenção geral positiva é a reafirmação da norma; prevenção geral negativa é intimidação ante a sociedade; prevenção especial positiva é reeducação do agente; e, prevenção especial negativa é segregação, prisão.
(4) V. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 275.
(5) Teoria de la Acción Finalista. Buenos Aires: Depalma, 1951, pp. 13 a 15.
(6) Apesar de Jakobs ser firme ao dizer que não funda suas ideias principais em Luhmann, o fato é que na obra Sociedad, Norma y Persona, Madrid: Civitas, 2000, as citações ao outro alemão são constantes.
(7) Hobbes e Rousseau eram contratualistas, por isso a menção a eles no segundo parágrafo do texto.
(8) V. GRECO, Luís. “Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo”, Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VI, nº 7 - dezembro de 2005, pp. 225 e ss., onde propõe de forma pioneira, diferentes óticas sobre o tema. O autor faz tripartição conceitual: descritiva, crítica-denunciadora e legitimadora.
(9) Nesse sentido, com precisão, Luís Greco, op. cit., p. 226.
(10) Ou pejorativo, violador dos direitos e garantias inerentes à pessoa humana.
(11) Questão notada por Luís Greco, op. cit., p. 227.
(12) Op. cit., p. 229.
Marcelo Xavier de Freitas Crespo, Advogado, professor de Penal e Processo Penal na EPD, professor assistente monitor (PAE) USP, doutorando em Direito Penal (USP) e mestre em Direito Penal (USP).
CRESPO, Marcelo Xavier de Freitas. Direito penal do inimigo: sobre que estamos falando? Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 3, mar. 2009.
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