Um dos casos de não conhecimento do recurso, com a conseqüente extinção anormal das vias recursais, é aquele em que se registra a ocorrência da deserção.
Entende-se que se o réu que estava preso interpuser recurso de apelação e, antes de ser esta julgada, vier a fugir, seu apelo será considerado deserto. O Tribunal dele não tomará conhecimento”(1). Trata-se de “sanctio júris, de conteúdo processual, que o órgão judiciário impõe ao recorrente quando o réu condenado fugir depois de haver apelado (art. 595)”(2).
A Deserção ocorre apenas quando a apelação for interposta pelo réu, e não pelo Ministério Público, quando recorrer em favor do condenado. É óbvio que não se pode falar em deserção quando o réu foge após o julgamento do recurso. A deserção por fuga do recorrente preso “somente é aplicável à apelação, não podendo ser estendido aos demais recursos”(3).
Recentemente, a 6.ª Turma do STJ, decidiu pelo não acatamento do art. 595 do código digesto de rito brasileiro: “Processo Penal. Hábeas Corpus. Apelação. Fuga do Réu. Deserção. Aplicação do art. 595 do CPP. Descabimento. Afronta aos Princípios Constitucionais do Contraditório, da Ampla Defesa e do Duplo Grau de Jurisdição. Art. 5.º, Incisos LV e LVII. Ordem Concedida” (4).
No entanto, segundo o entendimento que ainda prevalece no âmbito do STF é pelo acatamento do art. 595 do CPP: “Direito Penal e Processual Penal. Homicídio Qualificado (art. 121, § 2.º, I, do Código Penal). Apelação do Réu Preso. Fuga. Deserção (art. 595 do Código de Processo Penal.)”(5).
Podemos notar, como visto acima, a divergência que os tribunais superiores tem em relação ao trato da matéria.
Feito estas breves considerações iniciais, adentraremos no cerne de questão, ou seja, se a figura da deserção, previsto no art. 595 do Código de processo penal, viola o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, Princípio este respaldado pela Constituição Federal de 1988 (art. 5.º, LV) e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecido como Pacto de São José da Costa Rica (art. 8, inc. 2, alínea h).
O princípio do Duplo Grau de Jurisdição, em breves palavras, consiste em ser reexaminado uma decisão por uma instância superior, dando maior certeza á aplicação do direto pelo re-exame da causa.
O duplo grau de jurisdição, como garantia fundamental de boa justiça, é contemplado por diversas constituições estrangeiras, e entre nós, “embora não previsto expressamente pela Constituição Federal, decorre ele do próprio sistema constitucional, que prevê a competência dos tribunais para julgar “em grau de recurso”determinadas causas”(6). Também previsto no art. 5.º, inc. LV, que preceitua que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos e ela inerentes”.
A Constituição Brasileira preceitua no § 2.º do art. 5.º que tratados internacionais de que o Brasil seja parte, passam a ser fonte de direitos individuais e coletivos.
O art. 5, § 2.º da Constituição Federal “busca afirmar que a Constituição, ao enumerar os direitos fundamentais, não teve a preocupação de ser taxativo, admitindo direitos implícitos (ou sensíveis) decorrentes da legislação infraconstitucional”(7).
Nesta linha, de acordo com o § 2.º do art. 5.º, foi ratificada pelo Brasil em 1992, o decreto 678/1992, determinando o cumprimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.
No tocante ao nosso tema, o Pacto de São José da Costa Rica, preceitua em seu art. 8.º (Garantias Judiciais): “2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente na culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, as seguintes garantias mínimas: h) Direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.”
O art. 8.2.h, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, complementando a garantia constitucional do art. 5.º, LIV, assegura de modo explícito o irrestrito e efetivo duplo grau de jurisdição no âmbito criminal”(8).
José Fernando Marreiros Sarabando faz um estudo sobre o caso da figura da deserção e argumenta que “a observância do art. 595 do CPP faz é negar o recebimento e inviabilizar o curso de uma apelação interposta a tempo e modo adequados, ao singelo argumento de que o acusado empreendeu fuga do cárcere onde se encontrava recolhido, é decisão que constitui cerceamento fatal do direito de ampla defesa, constitucionalmente assegurado e idealmente isento de restrições à sua aplicação, ademais... e propõe seja considerado revogado, pura e simplesmente, o dispositivo de n.º 595 do CPP, que trata da figura da deserção, por incompatibilidade total entre esse dispositivo e as garantias processuais ínsitas na Carta Magna, em especial o dogma da ampla defesa, que compreende o princípio do duplo grau de jurisdição”(9).
Após o advento da Constituição de 1998 e, notadamente, para o campo processual penal, após a inserção dos Diplomas Internacionais em nosso sistema jurídico, não se pode mais ler o art. 595 do CPP, pela superada perspectiva do legislador de 1941(10).
Por derradeiro, em face do Principio do Duplo Grau de Jurisdição, amparado pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção América dos Direitos Humanos, o art. 595 do CPP deve ser relida, reinterpretado e revogado. Cumpre lembrar que o Supremo Tribunal Federal esta para julgar nos próximos meses o HC 85.961/SP (rel. min. Marco Aurélio), onde será tratado a respeito da matéria.
Notas
(1) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 5.ª ed., rev., atual. e aum, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 731.
(2) MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, 2.ª ed. rev., e atual, Campinas: Millennium, 2000, vol. IV, p. 248.
(3) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado, 4.ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 918.
(4) STJ, HC n.º 35.997/SP, 6.ª Turma, rel. min. Paulo Medina, j. 11/10/2006, DJ 21/11/2005, p. 304.
(5) STF, HC n.º 82.126/PR, 1.ª Turma, rel. min. Sydney Sanches, j. 24/09/2002, DJ 19/12/2002.
(6) MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 14.ª ed., rev., e atual., São Paulo: Atlas, 2003, p. 50.
(7) MOTTA FILHO. Sylvio Clemente da; SANTOS, William Dougras Residente dos, Direito constitucional: teoria e jurisprudência e 1000 questões. 10.ª ed., rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 112.
(8) GOMES, Luis Flavio; PIOVESAN, Flavia, O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.204.
(9) SARABANDO, José Fernando Marreiros, A figura da deserção em face do principio constitucional garantidor da ampla defesa, Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 2004, v. 820, p. 431-439, fevereiro, 2004.
(10) FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord.), Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, 2. ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004., p. 930.
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