Aspectos Gerais Acerca da Liberdade Provisória e Progressão de Regime nos Crimes Hediondos de Acordo com a Nova Lei 11.464, de 2007
A Lei dos Crimes Hediondos tem um histórico perturbado, pois desde seu nascedouro já sustenta debates, chegando a sustentar, de acordo com algumas posições, sobre a inconstitucionalidade de toda a lei. Mas, neste ensaio trataremos acerca e somente da liberdade provisória e a progressão de regime nos denominados crimes hediondos, que passou por significável alteração, recentemente, com o advento da Lei nº 11.464, de 2007. Ficaremos adstrito a uma breve e superficial análise dogmática, não se aprofundando sobre o mesmo ou tratando aspectos criminológicos, sociológicos etc.
Da Liberdade Provisória
A Constituição Federal de 1988 não se mostrou indiferente à questão da liberdade provisória, ao contrario, erigiu-a à condição de um dos direitos fundamentais da pessoa humana, estabelecendo no inc. LXVI do art. 5.º que “ninguém será levado a prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
A liberdade provisória pode ser entendida como a liberdade concedida ao indiciado ou acusado preso, que, por não necessitar ficar segregado, provisoriamente, deve ser liberado, sob determinadas condições.
Com o advento da Lei 8.072/1990, em sua redação original, a fiança e a liberdade provisória foram expressamente proibidas, em relação aos crimes hediondos e equiparados.
No tocante a fiança não se via e vê nenhum empecilho quanto a sua vedação, já que a CF/88 veda a fiança nos Crimes Hediondos (art. 5.º, XLIII, CF/88), não podendo, deste modo, falar-se em inconstitucionalidade.
A problemática residia no tocante a constitucionalidade/inconstitucionalidade da proibição da liberdade provisória nos crimes denominados hediondos e assemelhados (art. 2.º, II, da Lei 8.072/90). Assim, boa parte da doutrina e alguns julgados, sustentavam a inconstitucionalidade do referido inciso que vedava a liberdade provisória, por ferir o principio fundamental da pessoa humana, dos direitos fundamentais correlacionados ao devido processo legal, da presunção de inocência e da liberdade provisória e alegando que o legislador ordinário extrapolará os limites da CF/88, ou seja, se a CF/88 estabeleceu que os crimes hediondos e assemelhados são apenas inafiançáveis, não pode o legislador ordinário ampliar aquela restrição constitucional, dizendo-os também insuscetíveis de liberdade provisória(1).
Agora, por força da nova lei (Lei nº 11.464, de 2007), esta problemática cai por terra, já que o legislador preceitua que: “art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II – fiança”, ou seja, foi eliminada a proibição da liberdade provisória, cabendo, doravante, liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados. Sendo uma norma processual com reflexos penais e benéfica, ela retroage, para alcançar fatos ocorridos antes dela.
Nesse sentido, humanitário e democrático, entendemos que a liberdade provisória somente pode ceder lugar para a aplicação da custodia provisória quando ocorrer qualquer das hipóteses elencadas no art. 312 do Código de Processo Penal. Agora isto ficou claro, pois pode (quando o juiz entender que for o caso) ser posto o acusado em liberdade durante o andamento do processo. Cremos que quem esta preparado para separar o joio do trigo é o juiz, e somente este, que deve agir com razoabilidade e prudência, analisando o caso concreto, sobre a necessidade ou não da custodia provisória (fundamentando, objetivamente as decisões) e não o legislador com seus critérios abstratos.
Da Progressão de Regime
A progressão de regime tem em vista a finalidade da pena, da integração ou reinserção social. O nosso Código adotou o sistema progressivo de cumprimento da pena, que permite ao acusado ou condenado, através de seu mérito e de cumprimento de uma parte da pena, obter o direito de passar a uma forma mais branda de cumprimento de pena. Assim o art. 33, §2.º, afirma que: Art. 33, §2.º. As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado.” no mesmo sentido descreve o art. 112 da Lei de execução penal (Lei n. 7.210/84), dispõe que: “Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com transferência para o regime menos rigoroso, a ser determinado pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento...”. Os requisitos para a concessão do beneficio de progressão de regime serão objetivos, ou seja, expressamente constantes da lei, e subjetivos, ou seja, aspectos relativos ao mérito do condenado (comprovado pelo diretor do estabelecimento), os quais indicam provável adaptação do condenado ao regime menos rigoroso.
A lei de crimes hediondos, em sua redação original, proibia expressamente a progressão de regime para os crimes hediondos e assemelhados, devendo o acusado ou condenado cumprir a pena integralmente em regime fechado (art. 2.º, § 1.º), ou seja, o legislador visou impedir que criminosos violentos se beneficiassem da progressão do regime prisional.
Ocorre que, uma boa parte da doutrina se manifestou pela inconstitucionalidade do artigo em comento sustentando a violação da garantia da individualização da pena, do princípio da igualdade, da humanidade das penas, da ressocialização que se lastreia no valor da dignidade do ser humano, fundamental em um Estado Democrático de Direito, além de apresentar um retrocesso ao processo da ciência, especialmente no campo do Direito Penal, da Criminologia, da Antropologia e da Sociologia(2). Embora havia decisões em contrario sustentando a não violação do sistema progressivo, posto que a Constituição Federal conferiu ao legislador ordinário a prerrogativa de fixar, para os crimes hediondos e equiparados o cumprimento da pena em regime fechado(3).
Em 1992, com a ratificação pelo Brasil, do Pacto Internacional de Direito Civis e Políticos, surgiu entendimentos de que o referido pacto teria revogado o art. 2.º, §1.º, da Lei 8072/90, pois constituía tratamento cruel a um condenado submetê-lo, integralmente, durante o cumprimento da sanção, a regime mais gravoso, excluindo a possibilidade de, pelo mérito, demonstrar que faz jus à progressão prisional(4).
A grande problemática adveio com a Lei de tortura (Lei n. 9.455/97), que passou a permitir a progressão de regime nos crimes de tortura ( art. 1.º, § 7.º). De acordo com a lei, apenas o inicio será cumprido em regime fechado, a conclusão, a contrario sensu, é que a lei não proíbe a progressão de regime. Nesse sentido surgiu interpretações que este dispositivo revogou o § 1.º, do art. 2.º, da Lei n. 8.072/90(5). Mas o entendimento predominante foi em sentido contrario(6).
Algumas posições se voltaram no sentido de que com a lei de tortura, reconheceu a aplicabilidade do direito de progressão, autorizando a interpretação extensiva, para estendê-la as demais infrações definidas como crimes hediondos e assemelhados(7), e mais, “não há razão lógica que justifique a aplicação do regime progressivo aos condenados por tortura e que negue, ao mesmo tempo, igual sistema prisional aos condenados por crimes hediondos ou trafico ilícito de entorpecentes. Nem sob o ponto de vista do princípio da lesividade, nem sob o ângulo político-criminal, há possibilidade de considerar-se a tortura um fato delituoso menos grave em confronto com os crimes já referidos”(8).
Em sentido diverso, se posicionaram no sentido de que o preceituado na lei de tortura não se aplica aos demais crimes hediondos e equiparados, ou seja, a progressão de regime só é admitida nos crimes de tortura, não se estendendo ao trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos(9).
Contudo, pondo fim a esta discussão, o STF editou a súmula 698 preceituando que “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura.”(10).
De um modo geral, entretanto, até o ano de 2004, seguiu-se a férrea posição do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que era constitucional o § 1.º do artigo 2.º da Lei 8.072/1990, não permitindo progressão de regime aos crimes hediondos e a estes assemelhados.
Este quadro veio se alterando e em 2005 o STF concedeu varias liminares para afastar o óbice legal proibitivo da progressão de regime nos crimes hediondos(11). E finalmente o STF julgou o HC 82.959/SP, em 23/02/2006, declarando inconstitucional a vedação prevista no §1.º do artigo 2.º da Lei n.º 8.072/90.
Ocorre que surgiram varias manifestações. Entre elas, que alguns juízes e tribunais não acataram a decisão do STF, alegando que a referida decisão só era aplicado para aquele caso do HC 82.959, ou seja, não se estendia para os demais casos (não era erga omnes). E que o Senado Federal deve suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (inc. X, art. 52 da CF).
Diante de um momento de extrema tensão, adveio a lume a lei 11.464, de 2007, dando nova redação legal e permitindo a progressão de regime nos crimes hediondos e equiparados.
Por força da nova redação dada ao mesmo §1.º, a pena será cumprida inicialmente em regime fechado. Cabendo a progressão.
A progressão, de acordo com a nova lei, tem um tempo diferenciado de cumprimento da pena, a saber: para a progressão de regime, exige-se, nos crimes hediondos e equiparados, o cumprimento de 2/5 da pena (40%), se o acusado ou condenado for primário, e de 3/5 (60%), se reincidente. Antes, a única regra geral sobre o assunto era o art. 112 da LEP – que fala em 1/6 de cumprimento da pena. Essa regra continua vigente e válida para todas as situações de progressão de regime, ressalvados os crimes hediondos e equiparados, que se acham, agora, regidos por lei especial (principio da especialidade). No que diz respeito à tortura, isso já estava assegurado pela Lei 9.455, de 1997. Assim, a Súmula 698 do STF, no entanto, proibia a progressão em relação aos demais crimes hediondos. Ela, agora, diante da nova lei, perde sua eficácia.
Urge notar que a possibilidade da concessão da liberdade provisória para os crimes hediondos e equiparados terá efetivamente uma grande repercussão quanto aos crimes de tráfico de drogas, pois tal dispositivo colide frontalmente com o art. 44 da Lei 11.343/2006, que veda a liberdade provisória para os crimes previstos em seu art. 33 caput e §1.º, e 34 a 37. Entendemos que mesmo para os crimes previstos no art. 33 caput e §1.º, e 34 a 37, em tese é admissível a liberdade provisória, devendo se analisar cada caso concreto, diante do disposto no art. 312 do CPP.
Concluindo, foram significantes as alterações acerca do tema, admitindo a liberdade provisória e a progressão de regime nos crimes hediondos e equiparados. Entretanto, para que alcancemos o ápice de um Direito Penal Humanitário e Democrático muito se tem a fazer ainda, mas estamos caminhando, mesmo que a passos curtos.
Referências Bibliográficas
ANGELO, Suzi D’; ANGELO, Elcio D’. O advogado, o promotor de justiça e o juiz no tribunal do júri “sob enfoque da Constituição de 1988”. São Paulo: Edijur, 2005.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3.
DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 6. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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JOPPERT, Alexandre Couto. Constitucionalidade do regime integralmente fechado para crimes hediondos e tráfico de entorpecentes. Revista Jurídica Consulex. Porto Alegre, ano IX, n.º 205, p. 35, jul. 2005.
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MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. III. p. 506.
TELLES, Ney Moura. A Lei 9.455/97 revogou o art. 2.º da Lei dos Crimes Hediondos. Revista Jurídica Consulex, Porto Alegre, ano I, n. 5, p. 24, maio 1997.
Notas:
(1) A Favor: FRANCO, Crimes Hediondos, 1999, p. 506; LEAL, Crimes Hediondos, 1996, p. 109; TOURINHO FILHO, Processo Penal, 1999, p. 506; TJ/MS, HC n.º 2006.021478-6, 2.ª Turma, Rel. João Carlos Brandes Garcia, j. 24.01.07, publ. 06.02.07; Contra: MONTEIRO, Crimes Hediondos, 2002, p. 138.
(2) FRANCO, 1999, p. 140; DELMANTO, 2002, p. 70; ANGELO e ANGELO, 2005, p. 244.
(3) JOPPERT, 2005, p. 35; BITENCOURT, 2004, p. 484; CAPEZ, 2003, 336-337; NUCCI, 2003, p. 216; MIRABETE, 1997, p. 261; STF RT 691/300.
(4) Ap. 98.03.12408-0. 3.ª Reg. – 5.ª T. TRF. Rel. André Nabarrete. DJ 10/08/1998. DP 20/10/1998.
(5) TELLES, 1997, p. 24.
(6) HC 7669. 6.º Turma. STJ. Rel. Fernando Gonçalves. DJ 01/.10/1998; DP 13/10/1998.RT 758/629; RT 760/617.
(7) BITENCOURT, 2004, p. 484- 486; RT 760/684; RT 758/619; RT 759/656; RT 759/535; RT 763/690.
(8) FRANCO, 1997, p. 2.
(9) NUCCI, 2003, p. 217; MONTEIRO, 2002, p. 153-154;
(10) Nesse sentido: RT 759/702; RT 766/702; RT 758/629; RT 760/617.
(11) HC 85.270; HC 85.374; HC 84.122.
Fonte: PRUDENTE, Neemias Moretti. Aspectos Gerais Acerca da Liberdade Provisória e Progressão de Regime nos Crimes Hediondos de Acordo com a Nova Lei 11.464, de 2007. Lex Editora S.A., São Paulo, 10 maio 2007. Seção artigos. Disponível em: http://www.lex.com.br/noticias/artigos/Default.asp?artigo_id=388&m=1. Acesso em: 14 set. 2007.
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