sábado, 19 de abril de 2008

Jovens no banco dos réus

No documentário "Juízo", em cartaz na Capital, a diretora Maria Augusta Ramos evidencia o desencontro entre os menores infratores e a sociedade

Juízo é o segundo filme de uma trilogia sobre a justiça da diretora Maria Augusta Ramos. Neste, ela aborda um problema cada vez mais constrangedor para a sociedade brasileira: o dos menores infratores. Ao longo do filme, vai ficando evidente, de maneira angustiante, o desencontro entre esses jovens e uma sociedade que lhes pede que estudem, trabalhem como vendedores de bala, não envergonhem seus pais, não sejam pais precoces e que, tampouco, envergonhem seus próprios filhos. O desencontro entre a demanda social e a resposta desses jovens aparece num emudecimento dos personagens ao longo de todas as cenas e, na grande maioria dos casos, no retorno ao banco dos réus.

Maria Augusta foca sua câmera no caso de seis adolescentes, mas não deixa dúvidas de que está retratando a história de milhares de jovens cujos processos preenchem prateleiras em quantidades estarrecedoras.

E não são necessárias muitas estatísticas para demonstrar isso que todo mundo percebe: os adolescentes estão cada vez mais envolvidos com transgressões à lei. Apenas como ilustração, o Juizado da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro contabilizou 40 mil processos de menores infratores.

Mas o que poderia justificar que sujeitos tão jovens estejam maciçamente entrando em confronto com a lei ?

Jacques Lacan lembrava o grande mérito de Freud ao reconhecer, no texto Totem e Tabu, que foi com a lei e com a sua contra-cara, o crime, que nasceu a civilização. Nesse ponto, há concordância de todos os antropólogos: toda organização social se funda ao redor de uma lei, da interdição primordial do incesto, lei simbólica a partir da qual o homem é jogado para fora de sua origem biológica e amarrado ao mundo da cultura, a partir do qual cada um pode se situar como sujeito de uma relação. A lei determina as regras que estabelecem o jogo Não há lei, tampouco crime, fora do campo do humano. Mario Quintana dizia, no seu Caderno H, que não há crime perfeito porque não há crime sem reconhecimento. Para haver crime, é preciso que uma sociedade reconheça esse ato como tal em referência às leis que lhe são próprias. A legitimidade dos atos de um sujeito só pode ser definida a partir do reconhecimento social que, por seu lado, está alicerçado em suas leis. A lei situa a posição de um sujeito no seu meio social e não pode ser desvinculada de sua referência sociológica. O delinqüente produz atos que para ele têm um valor simbólico, na tentativa de obter o reconhecimento como sujeito no discurso social. Procura que funde seu lugar de sujeito, uma vez que tal ato se torna significante para seu meio pelo fato de se situar fora da lei (o que paradoxalmente implica reconhecê-la).

Assim, o delinqüente tenta, ao ser preso, ao ser "agarrado" pela lei, ficar amarrado a um lugar social que o poderia reconhecer como sujeito, que enfim o legitimasse, embora a tentativa seja pelo avesso. Não deve, nos surpreender que muitos delinqüentes celebrem sua triste popularidade ao aparecerem em destaque na mídia, como o adolescente que recentemente admitiu ter matado 12 pessoas.

Sabemos que o encontro com o juiz não tem, na maioria das vezes, um efeito permanente, o infrator reincide, há um fracasso neste encontro com a lei. Mas também sabemos que, nesse encontro, o que se coloca em cena é uma estrutura real da lei: o encontro com um pai real, que castiga. Repete-se nisso a falta de reconhecimento, o que devolve o transgressor à sua posição anterior.

Trata-se do paradoxo de obrigar o discurso social, por meio da transgressão à lei, a se pronunciar novamente sobre a significação de seus atos. A impossibilidade de encontrar a legitimação na sociedade, muito freqüentemente, leva os sujeitos a constituírem grupos com suas próprias regras, num circuito fechado onde as representações sociais ficam excluídas. Seus participantes encontram nessas cápsulas grupais o reconhecimento e a legitimação que a sociedade lhes negou. Este é o caso das gangues, da máfia e do tráfico de drogas onde há leis próprias que dispensam as leis da pólis.

As dificuldades que, atualmente, os jovens enfrentam para encontrar um lugar no mundo dos adultos - o encolhimento da família, o anonimato e dispersão impostos pela vida urbana, as restrições no mercado de trabalho e o acesso aos bens de consumo (tão valorizados em nossa sociedade) - os empurram a uma posição marginalizada.

Se causa surpresa, em tantos casos, ver a pouca idade dos infratores, é por não levarmos em conta aquilo que fundamentalmente caracteriza a adolescência. Recém-saído do mundo do faz-de-conta da infância, onde sua condição de sujeito se jogava na brincadeira, no "é só de mentirinha", o adolescente precisa encontrar com urgência o reconhecimento de sua nova condição de potência sexual e criativa, o reconhecimento social de sua condição de homem ou de mulher. É esta urgência de se posicionar no mundo do "pra valer" que o impulsiona a praticar atos que lhe possam permitir reconhecer-se numa posição que o distancie da infantil. Ele precisa de provas que reconheçam seu estatuto de participante do jogo social, de um modo ou de outro, do lado da lei, ou fora dela. No passado, as sociedades ofereciam rituais de passagem que reconheciam seus jovens como homens e mulheres, oferecendo assim um lugar enunciativo não infantil que lhes permitia suportar a transição até a vida adulta. Porém, a rigidez dessas normas impunha a eles o constrangimento de suas liberdades de escolha na sua vocação, no amor, na ideologia, na moral. O adolescente atual ganhou em liberdade, mas perdeu lugar. É rapidamente lançado à posição de homem/mulher sem dispor ainda do saber necessário para assumi-lo com todas as conseqüências, e sem nada que venha a substituir a falta desse saber. O desaparecimento de referências de transição poderia implicar uma maior liberdade de escolha que permitisse uma elaboração diversificada dos caminhos de acesso à vida adulta; mas para isso, seria necessário que ficassem abertos lugares de realização futura que hoje em dia se mostram estreitos e escassos para os jovens. A sua condição adolescente se prolonga numa estranha e contraditória infância, incompatível com a transição que almejam.

A participação, cada vez maior, dos adolescentes em atos criminosos leva a sociedade a se perguntar sobre a redução da idade da maioridade penal. Neste momento a sociedade pensa em colocar os jovens a viver as conseqüências de seus atos tal qual elas valem para os adultos. Uma mensagem endereçada aos adolescentes: o jogo é mesmo pra valer, há lei.

Hannah Arendt relacionou a lei social com as regras de jogo. Quando alguém aceita as regras de um jogo, não é apenas por considerá-las válidas, ou por um espírito de submissão; se alguém aceita as regras de um jogo é pelo seu desejo de jogar; portanto, pelo seu desejo de fazer parte do jogo da vida. Sem lei, sem regra, não há jogo. Mas além de enquadrar os jovens nas regras da vida em sociedade, será que também estamos lhes oferecendo a oportunidade de jogar?


Zero Hora, 19/04/2008.

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