terça-feira, 1 de abril de 2008

Crack é a pedra no meio do caminho

Droga divide agentes, pode abortar princípios da reforma psiquiátrica e põe em risco política de redução de danos.


O técnico em dependência química José Antônio Schardong e a psicóloga Janaína Trierweiler têm um sonho – a criação de uma rede de proteção para os usuários de crack em Curitiba e região metropolitana. “Falta uma iniciativa que aglutine os agentes do setor. Quem sabe a Secretaria Municipal Antidrogas consiga isso”, sugere Janaína. Ela se refere aos médicos que atuam nos poucos hospitais que ainda oferecem tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), profissionais dos Centros de Atendimento Psicossocial Álcool-Drogas (CapsAD), organizações não-governamentais, clínicas, órgãos de segurança e educadores.

A reivindicação da dupla – que em parceria com o médico Higino Bodziak está à frente do Comunidade Terapêutica Dia (CTDia) – não é da boca para fora. Nos últimos cinco anos, com o avanço no número de usuários de pedra, aumentaram também os problemas dos que trabalham na prevenção e tratamento de dependentes químicos. Estima-se, por exemplo, que cerca de 400 leitos foram extintos na Grande Curitiba – a exemplo do Hospital Pinheiros, em São José dos Pinhais, e do Nossa Senhora da Glória, na capital.

Além do mais, não há um espaço apropriado para crianças e adolescentes em processo de desintoxicação – obrigando-os à convivência nada recomendável com adultos na mesma situação. Sem falar no fetiche da sociedade pela repressão, em detrimento das campanhas e ações sociais. Uma organização de agentes, como defende o corpo técnico do CTDia, poderia facilitar a atuação de quem lida com filas de espera que chegam a 1,5 mil usuários e vê a situação descendo a ladeira.

Não é tarefa fácil. Psiquiatras, técnicos, ongueiros e terapeutas do setor não falam a mesma língua. Um dos pomos-da-discórdia é o próprio modelo adotado pelo Ministério da Saúde, pautado na Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216), de 6 de abril de 2001. Na contramão das internações, tratamentos agressivos e isolamento dos dependentes químicos, a reforma adotou medidas terapêuticas mais brandas e humanas. Em vez de longas jornadas em hospitais, foram criadas unidades em que os usuários voltam para casa todos os dias e políticas de redução de danos. Até aí ninguém discorda. São reivindicações nascidas na década de 80, quando a luta antimanicomial ganhou corpo. A crítica é à incapacidade desse modelo em deter os estragos causados por uma droga como o crack, predadora por natureza.

Raro encontrar um profissional de saúde que aceite ser identificado ao dar sua declaração sobre o assunto, temendo comprometer sua própria atuação. Garantido o anonimato, começa o tiroteio: o modelo CapsAd, com cerca de 1,4 mil vagas em Curitiba, é aplaudido, mas diz-se que não se revela capaz de deter o usuário depois das 18 horas, quando volta para casa e está sujeito novamente à ação dos traficantes e a seus próprios demônios. Como o crack é uma droga noturna e solitária, salve-se quem puder.

Sem falar nas dificuldades inerentes à própria pedra, cuja dependência é rápida, lança o usuário no mundo da violência e na ruína física. Quando chega ao extremo – a fase de 20 pedras madrugada adentro – só resta ao dependente rastejar por uma das 530 minguadas vagas do SUS na região, distribuídas entre a Clínica Hélio Rotenberg, em Curitiba; Hospital San Julian, em Piraquara; e Hospital Adauto Botelho, em Pinhais.

A psicóloga Cristiane Venitikidis, coordenadora de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, rebate a crítica com a própria Lei 10.216, lembrando que a reforma psiquiátrica entende a recaída como uma etapa do processo de tratamento. E que o usuário precisa ter o desejo de se recuperar, aceitando a terapia. “Não é colocando o dependente num ambiente artificial, longe de todos, que ele vai abandonar a droga”, defende.

Os detratores do modelo, no entanto, batem o pé. Hospital-dia, clínica-dia e Caps, dizem, funcionam em estágios primários de drogadição, mas são incapazes de impedir o pior quando o usuário já está para lá de Marrakesh. “Quando há necessidade de fazer desintoxiação de um jovem, não se sabe onde. Tem quem fique três meses à espera de uma vaga. A política da desospitalização é malvada”, diz o frade carmelita calçado Francisco Manoel de Oliveira, o frei Chico – criador e diretor da Casa do Servo Sofredor, onde vivem 60 dependentes químicos. “O crack necrosa o rim. A urina fica com um cheiro horrível. Inibe o apetite. Deixa o cara cadavérico. As recaídas constantes fazem com que a família fique doente junto. É devastador. A internação é necessária, seguida de terapia”, acrescenta o advogado Nasser Salmen, ex-dependente e hoje consultor para assuntos de drogadição.

Mesmo entre os que abraçaram as idéias da reforma, como o CTDia, impera um certo desconforto. “O crack chegou numa velocidade tão grande que quebrou todos os paradigmas. Cerca de 90% dos que nos procuram são usuários de pedra. E a pedra, quando vem, é para ficar. Como aplicar política de redução de danos num caso como esse?”, questiona Schardong, que administra 60 vagas em regime “semi”, em coro com outros agentes do setor.

Às falas

De 2001 a 2005, o uso de crack passou de 0,5% para 1,1%, de acordo com pesquisas do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. Embora crescente, parece um dado inofensivo. Caso se leve em conta o uso combinado com a maconha e a cocaína, a situação muda de figura. A cannabis, sozinha, responde por 8,8% dos usuários. A possibilidade de que seu uso seja transferido para o crack é assustadora. O mesmo se diga da cocaína.

Para o psiquiatra Dagoberto Requião, diretor-geral do Hospital Nossa Senhora da Luz, onde metade das 60 vagas do hospital-dia são utilizadas por usuários de crack, os agentes de saúde não estão preparados para a cruzada imposta por essa droga. “A pedra é inexpressiva nas pesquisas, mas cresce de maneira impressionante. E tem quem chegue nos Caps e hospitais-dia dizendo que usa cocaína, mas usa crack”, argumenta, em nome do que parece ser uma opinião de consenso: a pedra pede uma política pública mais agressiva. “Os traficantes conhecem muito bem seu público-alvo. Nós é que não nos organizamos tão bem quanto eles.”



Fonte: Gazeta do Povo Online, 01/04/2008.

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