Modernamente, através da teoria tripartida, sabemos que o conceito analítico da infração penal se constitui de três fatores condensados, quais sejam: fato típico, ilícito e culpável, aonde os dois primeiros fatores (fato típico e ilícito) configuram o chamado injusto penal.
Assim como utilizamos a “escada ponteana” (criação de Pontes de Miranda) para analisar os negócios jurídicos no Direito Civil, aqui no Direito Penal os fatores componentes da infração penal também serão analisados de forma escalonada, uma vez que para ser ilícito o fato tem que antes ser típico e para ser culpável tem que antes ser um injusto penal, ou seja, típico e ilícito.
E é justamente na análise do terceiro fator, ou seja, o da culpabilidade que o Direito Penal vai buscar afastar ou atenuar a punição dos silvícolas, mais conhecidos como índios, pelas praticas de fatos típicos e ilícitos. A grande maioria dos doutrinadores penalistas se utiliza da inimputabilidade, através de um suposto desenvolvimento mental incompleto ou retardado para a absolvição ou abrandamento das penas dos silvícolas, enquadrando a situação no artigo 26 caput ou seu parágrafo único, do Código Penal, que dizem:
Art. 26 - “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento.”
Parágrafo Único – “A pena pode ser reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços), se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento.”
Neste sentido, autoridades consagradas e de brilhante competência no meio da doutrina penal, como Fernando Capez e Nelson Hungria trazem os silvícolas como exemplos de um ser inimputável, inimputabilidade esta proveniente de um desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Com todas as vênias devidas, não há que se concordar com este tipo de posicionamento, ainda que dominante nesta área do nosso Direito. Cria certo mal estar, proveniente de uma nítida sensação de preconceito latente, considerar que um índio tem desenvolvimento mental incompleto ou retardado simplesmente pelo fato de ser ele um índio.
Como ensina a medicina legal, o retardo no desenvolvimento mental pode se dividir em debilidade mental, imbecilidade e idiotia. O débil mental é aquele que tem distúrbios do julgamento pessoal, sendo o grau mais leve do retardo mental. O imbecil, grau intermediário da deficiência mental, é o que tem linguagem oral e leitura pouco desenvolvidas, não tendo ele capacidade de aprender a ler. Já o idiota, é aquele que não pode satisfazer sozinho nem mesmo suas necessidades mais elementares, sendo o grau mais elevado de retardamento mental.
Veja que estas pessoas, mesmo que criadas desde pequenas em um meio social dito evoluído, não conseguem se comportar exatamente nos mesmos moldes de um ser humano mentalmente são. Agora, será que um índio não conseguiria? Será que se pegássemos um bebê silvícola e o retirássemos de sua tribo no interior da Amazônia, trazendo-o para um centro urbano e criando-o como outra criança qualquer, ele não se portaria exatamente como outro ser humano são? A resposta há de ser positiva, é claro.
Ora, não é porque um índio nasceu e cresceu em um ambiente cultural totalmente diferente do ambiente do homem branco que ele há de ser considerado como um ser mentalmente retardado. O que acontece nestas hipóteses é que o índio tem um desenvolvimento cultural diferente e, em comparação com o mundo do homem branco, obtém um desenvolvimento moral (e não mental) incompleto! O diferente não necessariamente tem algo de errado. Muito perigoso este tipo de analogia, feita até os dias de hoje pela grande maioria da doutrina penalista. Neste sentido, de forma brilhante alerta o professor Paulo de Bessa Antunes, para quem abrimos aspas:
“Evidentemente que o grau de integração do indígena na sociedade nacional e o desenvolvimento mental são dois conceitos que não guardam a menor relação entre si. Para que um índio ou qualquer pessoa tenha o seu desenvolvimento mental completo não há a menor necessidade de que esteja integrado na sociedade brasileira. As diferenças culturais não podem, de forma nenhuma, servir de base para julgamentos relativos a sanidade ou ao desenvolvimento mental de qualquer pessoa. Tratar-se diferenças culturais com o retardamento mental é extremamente perigoso, pois, à semelhança do nazismo e do estalinismo, todo aquele que não estiver ‘integrado’ em um determinado padrão de organização social passa a ser tratado como retardado mental, intelectualmente pouco desenvolvido ou louco(...)” (Antunes, Paulo – Direito Ambiental, 12ª Edição, pág. 922).
Não podemos considerar que o índio tem uma insuficiência mental por se guiar pelas regras de sua cultura própria. Se assim fosse, estaríamos diminuindo a cultura indígena quase a um nada, quando somos nós os primeiros a admitir a aplicação da mesma. Veja que a Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), de autoria do homem branco, permite em seu artigo 57 a aplicação de sanções penais ou disciplinares provenientes da cultura indígena, desde que não sejam degradantes ou de morte, reconhecendo assim de forma clara a importância daquelas instituições.
Ademais, não soa lógica a aplicação do artigo 26 do Código Penal para atenuar ou exculpar a conduta do índio infrator, equiparando-o a um ser mentalmente retardado, uma vez que o próprio Estatuto do Índio trata em seu artigo 56, de forma expressa da questão, devendo este último ser aplicado em respeito ao princípio da especialidade da norma penal. Vejamos:
Art. 56 – “No caso de condenação do índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.”
Veja que o dispositivo legal determina uma análise sobre o grau de integração do silvícola e a própria Lei 6.001/73, nos incisos do seu artigo 3º, divide os silvícolas em três grupos: isolados, em vias de integração e integrados.
Sendo assim, uma vez praticado, por um índio, um fato descrito como infração penal, deverá o juiz se atentar para a questão de ser o índio isolado, em vias de integração ou integrado, para só então determinar se aplica pena ou não e, em caso afirmativo, qual o montante da mesma. Inclusive, é aqui que aparece mais uma razão para que não apliquemos o artigo 26 do Código Penal nestas situações. Isto porque o procedimento para se constatar a deficiência mental de alguém deve se dar necessariamente através de perícia médico-psiquiatra, no entanto, para a constatação do grau de integração de um índio em nossa sociedade o procedimento é outro, devendo ele se dar necessariamente através da devida perícia antropológica específica, realizada por profissional deste meio, não podendo o juiz aplicar a pena baseado apenas em impressões pessoais que porventura tenha.
Dito isto e considerando que não se deve tratar o silvícola como portador de desenvolvimento mental incompleto de acordo com o artigo 26 do Código Penal Brasileiro, entendemos que a solução deverá obedecer aos procedimentos abaixo:
Primeiramente deve-se proceder à devida perícia antropológica para se definir com qual tipo de silvícola estamos tratando. Três opções surgem: Primeiro, se for um silvícola totalmente integrado a nossa cultura, apesar de o artigo 56 do Estatuto do Índio dizer que a pena deve ser atenuada simplesmente pelo fato de ser o agente um índio, o devemos tratar como outro ser humano qualquer, aplicando-lhe a pena sem qualquer tipo de atenuante, sob pena de usar o título de índio como uma espécie de escudo exculpante ilegítimo, desvirtuando totalmente o propósito da questão. Neste sentido um antigo julgado do STF (RHC 64.476-MG, Rel. Min. Carlos Madeira).
Caso o índio esteja em vias de integração, caberá ao juiz, de posse da avaliação pericial antropológica, dosar a pena do mesmo. Quanto menos integrado, maior deve ser a atenuante, em respeito ao que consta no artigo 56 da Lei 6.001/73. Não há que se falar em aplicação do Código Penal, nem no seu artigo 26 (por tudo aqui já dito) e tampouco no artigo 21 (erro de proibição). Isto porque estes dispositivos da legislação penal prevêem limites mínimos e máximos de diminuição da pena, ao passo que a lei do indígena não dá estes limites. Sendo assim, além de ser legislação especial para o caso concreto, esta ainda é mais benéfica ao agente, devendo ser ela aplicada. A formação cultural diferenciada atenua a culpa do silvícola, devendo sua pena ser minorada pelo magistrado.
Agora, caso se constate que o índio é totalmente isolado, sem qualquer possibilidade de conhecimento das regras em sociedade do homem branco, deve ele ficar isento de pena. Mas esta isenção não deverá ocorrer pela inimputabilidade ocasionada pelo desenvolvimento mental incompleto, e sim pela total inconsciência da ilicitude do fato, geradora do erro de proibição do artigo 21 do Código Penal. E aqui, ao contrário da hipótese anterior, deve ser afastada a Lei 6.001/73 para que se aplique o Código Penal, uma vez que aquela lei prevê apenas atenuação de pena e não a sua isenção.
Neste sentido parece caminhar inclusive o legislador, que no Projeto de Lei 2.057/91, de autoria do ex-deputado e hoje senador Aloizio Mercadante, prevê em seu artigo 152 o seguinte:
Art. 152 – “Não há crime se o agente indígena pratica o fato sem consciência do caráter delituoso de sua conduta, em razão dos valores culturais do seu povo.”
Percebe-se a perfeição do texto, uma vez que se fala em ausência de crime por falta de consciência do caráter delituoso (alusão ao erro de proibição), em razão de valores culturais (e não mentais!) do seu povo. Uma pena este Projeto de Lei que vem para modernizar o Estatuto do Índio estar há tantos anos no Congresso sem a devida atenção que merece.
Terminamos lembrando que a perturbação da saúde mental não deve ser sempre presumida para os índios que praticam infrações penais. Os casos são diferentes e não devem ser confundidos. Apesar de ambos serem abarcados pelo princípio geral da inexigibilidade de conduta diversa, que conduz a exculpação penal, cada um deve ser enquadrado em sua devida tipificação penal. Só assim o preconceito e a soberba do homem branco darão espaço a um direito penal mais harmônico e coerente. O índio agradece- eroma’endu’a.
Rafael Potsch Andreata é delegado de Polícia Federal, lotado na Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários — Delefaz.
Fábio Henrique de Souza Gonçalves é advogado.
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2014
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