Do massacre do Carandiru, em 1992, até Pedrinhas, em 2014, episódios de barbárie e estatísticas crescentes de mortes, rebeliões e tortura desafiam os limites de nossa civilização. Ao redor –ou a partir– do sistema penitenciário, o Brasil vem fomentando uma espiral de violência que parece não ter fim.
O problema vem sendo cuidadosamente alimentado. Podemos avançar 2014 e projetar mais violência, mais mortes e a mesma passividade dos agentes públicos, reféns de respostas ditadas pelo senso comum: precisamos reduzir a impunidade, abrir mais vagas em prisões, aumentar as penas e aplicá-las com mais rigor, ou seja, precisamos de mais brutalidade para reduzir a brutalidade.
Aos chocantes acontecimentos do Maranhão, a engenhosidade das soluções apresentadas é limitada. O Poder Executivo falou em ressocialização e tratamento dos presos (José Eduardo Cardozo) e alguns comemoraram o próprio fracasso: "São Paulo conta hoje com a polícia que mais prende no Brasil" (SAP). O Legislativo ofereceu "coragem" e privatização dos presídios (Aécio Neves) e o Judiciário concluiu que "o caos penitenciário não decorre do excesso de presos" (Associação dos Magistrados Brasileiros). Mais do mesmo.
Para além da banalidade dos discursos públicos, nos últimos 15 anos presenciei valorosos esforços dedicados à melhoria do sistema penitenciário. Alguns resultaram em uma hora a mais de banho de sol para os presos, outros conseguiram que os presos não dormissem em pé, amarrados às grades... Como saldo geral, muito esforço para trocar o caos das carceragens policiais pelo horror dos presídios.
Na academia, há décadas o assunto foi esgotado: a prisão é instituição total que, por definição, destrói aqueles que lhe são confiados. Mais ou menos suja, mais ou menos lotada, a prisão sempre será um depósito de indesejados e ignorados, indústria do crime.
Pedir coragem é bravata. Ressocializar, tratar e prender ao mesmo tempo –ideais abandonados por comprovada incompatibilidade. Não reconhecer a superlotação como fonte de tensões que culminam em mortes e revoltas exime os profissionais do direito do seu compromisso com a preservação da liberdade como via de acesso para uma sociedade mais justa e menos violenta.
Em horas dramáticas, precisamos recorrer a experiências de lucidez, na linha do que foi articulado no editorial da Folha no último dia 14.
Já prendemos muito, por muito tempo, com muita brutalidade. A experiência que nos falta é prender menos, prender pessoas por menos tempo, utilizar menos a pena de prisão. Utilizar quase nunca, apenas em casos extremos. Privatizar, vale o registro, é medida em direção oposta: a lógica do lucro exige clientela (presos) fixa e crescente.
Para isso, não precisamos de coragem. Precisamos dos "homens em tempos sombrios" de que falou Hannah Arendt. Parlamentares dispostos a reduzir penas e aumentar as possibilidades de aplicação daquelas que não são de prisão. Juízes aptos a abandonar a cultura punitiva e olhar para outros métodos de resolução dos conflitos, mesmo que o conflito seja rotulado como crime. E governantes que renunciem ao populismo penal.
Proponho ir além de prender menos. Podemos ousar pensar num outro mundo melhor, cujo esboço inicial seria a moratória da pena de prisão. Durante um ano, ficaria proibido o ingresso de qualquer pessoa numa prisão. Moro com minha família em São Paulo e tenho tranquilidade de dizer que a cidade não ficaria mais insegura, tampouco mais violenta. Talvez assim a sociedade percebesse que a prisão é inútil para os fins a que se propõe e útil em aspectos exatamente opostos: recrudesce a violência, aprofunda as desigualdades sociais, institucionaliza a barbárie e, um dia, afundará a civilização.
LEONARDO SICA, 39, advogado, doutor e mestre em direito penal pela USP, é vice-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário