Ao argumento de ser necessária a atualização do Código Penal vigente e “imprescindível uma releitura do sistema penal à luz da Constituição, tendo em vista as novas perspectivas normativas pós-88”, foi recentemente apresentado ao Senado Federal o anteprojeto do novo Código Penal Brasileiro, que se transformou no PLS 236/2012, cuja tramitação se iniciou no último dia 9 de julho.
Conquanto a proposta se ampare na necessidade de avanços e aperfeiçoamentos normativos, no que tange à tutela dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro o texto peca por diversas falhas, omissões e mesmo retrocessos.
No que tange aos crimes contra o patrimônio (Título II), por exemplo, o anteprojeto perdeu a oportunidade histórica de prever qualificadoras para os crimes de furto, roubo e apropriação indébita quando o objeto material dos crimes for bem integrante do patrimônio cultural brasileiro, medida reclamada há tempos pelos especialistas da área e já existente no ordenamento jurídico de diversos países. Tal inserção seria de extrema relevância protetiva, uma vez que os bens culturais possuem um valor especial, que está para além da mera materialidade do suporte físico, sendo reconhecidos pela doutrina como bens de interesse público, independentemente de sua dominialidade.
Sob o ponto de vista da necessidade fática, é de todos sabido que o tráfico ilícito de bens culturais é uma das atividades ilícitas mais lucrativas do mundo. Ademais, a perda de nossas referências culturais implica em danos irreparáveis à memória do povo brasileiro. Bem o sabe o povo de Minas Gerais, que, infelizmente, já perdeu 60% de seus bens culturais sacros, segundo estatísticas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Dentro dessa mesma lógica, parece-nos que seria altamente recomendável o anteprojeto alçar à condição de crime, com pena majorada, a contravenção hoje prevista no artigo 48 do Decreto-Lei 3.688/41, que trata do exercício ilegal do comércio de antiguidades e obras de arte, pois é preciso atacar o problema em seu nascedouro.
Ainda no que tange aos crimes contra o patrimônio, o anteprojeto prevê a figura do “Dano qualificado”, quando o crime for cometido contra coisa tombada pela autoridade competente ou de valor artístico, cultural, arqueológico ou histórico (art. 163, § 1º., IV).
Trata-se de lamentável retrocesso, pois somente se o bem cultural for tombado estará configurado o delito, quando se sabe que, após a Constituição Federal de 1988 (art. 216, § 1º.), o tombamento passou a ser apenas um dos instrumentos de proteção, convivendo com outras possibilidades protetivas, tais como o inventário, registros, desapropriação, leis, decisão judicial etc.
Pior: esqueceram-se os juristas responsáveis pelo anteprojeto que o artigo 421 da proposta incrimina exatamente os danos contra o patrimônio cultural, entretanto com redação muito mais adequada e que não padece dos equívocos existentes no artigo 163, parágrafo 1º, IV, cuja supressão nos parece essencial.
No Título XIV (Crimes contra interesses metaindividuais), Capítulo I (Crimes contra o meio ambiente), Seção IV, estão previstos os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, compreendendo os artigos 421 a 424, que guardam similitude com os artigos 62 a 65 da Lei 9.605/98, incriminando: a destruição, inutilização ou deterioração de bens culturais; a alteração do aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido; a construção em solo não edificável ou no seu entorno e a pichação de edificação ou monumentos urbanos.
No que tange ao delito de pichação, previsto no artigo 424, o tipo penal proposto padece do mesmo equívoco hoje existente no artigo 65 da Lei 9.605/98 e amplamente combatido pela doutrina: prevê no parágrafo primeiro uma causa de aumento de pena (seis meses a um ano) quando o ato for praticado em monumento ou coisa tombada.
Entretanto, tal causa de aumento de pena, absolutamente desnecessária, constitui verdadeiro prêmio ao pichador de bens culturais, pois a conduta em si já encontra adequação típica no artigo 421 do anteprojeto (atual 62 da Lei 9.605/98), cuja pena é de um a três anos.
Evidente, pois, a necessidade de supressão do parágrafo primeiro do artigo 424 do anteprojeto.
São essas nossas primeiras reflexões sobre a proposta do novo Código Penal Brasileiro e de suas repercussões na tutela do patrimônio cultural brasileiro.
Segundo consta da fundamentação do texto apresentado ao Senado Brasileiro: "O direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana." (Tobias Barreto).
Esperamos que os debates a respeito do texto possam redundar na correção das falhas e retrocessos apontados, tornando a proposta mais justa e condizente com as atuais necessidades experimentadas pela nação brasileira, sob pena de se perder uma oportunidade histórica de se alcançar verdadeiros avanços.
Marcos Paulo de Souza Miranda é coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais Professor de Direito do Patrimônio Cultural.
Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2012
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