A profunda alteração na “Lei de Lavagem de Dinheiro” (Lei 9.613/1998), recentemente promovida pela Lei 12.683/2012, convida à reflexão sobre os avanços e retrocessos no combate à atividade de ocultação e dissimulação de ativos de origem ilícita. Devo advertir que minha crítica não é isenta e não pode se distanciar do fato de ter participado da comissão que, entre os anos de 2003 e 2004, elaborou o anteprojeto que hoje, com poucas modificações, resultou nas alterações já em vigor. Tenho, portanto, certa responsabilidade pelos acertos e desacertos promovidos, que o tempo e a experiência permitem ver com maior clareza.
Em 2003, quando surgiu a ideia de alterar a Lei 9.613/1998, após cinco anos de vigência, o cenário do combate à lavagem de dinheiro no Brasil ainda era desanimador, apesar dos reconhecidos esforços anteriores para criar a lei de lavagem e estruturar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Praticamente não havia investigações, denúncias e sentenças pela conduta de ocultar e dissimular ativos provenientes de atividades criminosas, especialmente as listadas como antecedentes pela lei então em vigor, dentre essas tráfico ilícito de entorpecentes, corrupção, contrabando e tráfico de armas, entre outros. O contraste com a realidade era evidente.
Deve-se ao então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, a iniciativa, em 2003, de incluir a efetivação do combate à lavagem de dinheiro como prioridade estratégica da política pública de segurança e combate ao crime organizado. Sabia-se que, para asfixiar as organizações criminosas, seria necessário ter meios para lhes confiscar o patrimônio, o “fundo de comércio” da atividade criminosa, o que não seria possível sem dissuasão e repressão eficazes às pessoas e grupos que se dedicam, por ocultação e dissimulação, a dar esconderijo ou aparência de legalidade a esse patrimônio de origem ilícita. O Ministério da Justiça, com a participação de vários órgãos e instituições federais e estaduais, elaborou a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro (Encla). A alteração da Lei de Lavagem era apenas uma das várias metas estabelecidas pela Encla para alterar o quadro do combate à lavagem de dinheiro.
Passados hoje mais de 14 anos da entrada em vigor da Lei de Lavagem e quase nove da primeira edição da Encla, o quadro do combate à lavagem de dinheiro no Brasil é visivelmente diferente. Pode-se reclamar de excessos das autoridades encarregadas de investigação e persecução penal, jamais de falta de ações.
Esses avanços ocorreram independentemente da mudança da lei de lavagem de dinheiro, muito graças à inédita colaboração administrativa entre diversos órgãos públicos, no âmbito da Encla, e a outras iniciativas como a criação das varas especializadas, a participação do Ministério Público, federal e estadual, o investimento na Polícia Federal e a criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça. Finalmente, qualquer avanço não pode deixar de ser creditado ao trabalho discreto e efetivo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão central do sistema operacional de combate à lavagem de dinheiro.
A principal alteração da Lei 9.613/1998, a ampliação do tipo penal da lavagem de dinheiro para incluir a ocultação e dissimulação de ativos provenientes de quaisquer infrações penais, não apenas um rol exaustivos de crimes graves, foi questionada desde a origem do anteprojeto.
A Recomendação nº 1 do Grupo de Ação Financeira (GAFI/FATF), órgão intergovernamental que estabelece padrões internacionais de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, determina que países deveriam “aplicar o crime de branqueamento de capitais a todos os crimes graves, por forma a abranger o conjunto mais alargado de infracções subjacentes.” Entretanto, permite também que os crimes antecedentes possam ser definidos por referência apenas a crimes graves.
A dúvida que resta, mais visível com tempo, é se a opção de ampliar o tipo penal da lavagem para abranger ocultação e dissimulação de produtos de qualquer infração penal ainda é a melhor. Talvez devêssemos ter mantido a criminalização dos auxílios destinados a tornar seguro o proveito de crimes menos graves limitada aos velhos tipos da receptação e do favorecimento real.
Antenor Madruga é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.
Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2012
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