segunda-feira, 30 de julho de 2012

Nova lei não cria a perigosa figura do juiz sem rosto


A Lei 12.694/12 foi sancionada no dia 24 de julho de 2012 e só entrará em vigor no mês de outubro do mesmo ano, trazendo regras que ocasionarão algum aprimoramento da independência dos juízes brasileiros, dentre elas a possibilidade de julgamentos colegiados no primeiro grau, medidas para segurança nos fóruns e uso de placas especiais em veículos utilizados por magistrados ou membros do Ministério Público.
As medidas são, em verdade, modestas, em vista das pretensões de desenvolvimento da 5ª economia do planeta. No entanto, já sofrem precipitadas críticas, que majoritariamente apontam violações a direitos fundamentais do acusado.
Cabe questionar: a nova lei protege magistrados em detrimento de jurisdicionados?
Seguramente, afirmo que não.
Inicialmente, registro que, ao contrário do que hodiernamente se dissemina no Brasil, a independência judicial é atributo estatal intimamente ligado à preservação de direitos fundamentais, expressamente consignada no artigo X da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 14, 1, do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos.
Um excelente trabalho da professora Linda Camp Keith[2], da Collin County Community College, no Texas, analisa a extensão do impacto da independência judicial na proteção dos direitos humanos em todo o mundo, concluindo pelo seu indispensável papel em tempos de ameaças externas ou domesticas e em períodos emergenciais.
O sempre brilhante desembargador federal Vladimir Passos de Freitas, no artigo intitulado “O Poder Judiciário brasileiro no regime militar[3]”, aborda, com cirúrgica precisão, como a manipulação da Justiça contribuiu para a operacionalização da ditadura, enfatizando o aumento do número de ministros do Supremo Tribunal Federal, a expansão da competência da Justiça Militar Federal, a cassação de juízes, a exclusão de alguns atos da apreciação judicial e o banimento das pessoas “nocivas à segurança nacional”.
É válido acrescentar que, durante o 7º Congresso das Nações Unidas para prevenção ao crime e tratamento de delinquentes, realizado há mais de vinte e cinco anos, foram estabelecidos 20 princípios básicos para a independência do Judiciário, dentre eles a obrigatoriedade de previsão legal de segurançaremuneração adequada (11o princípio).
Um estudo da empresa de auditorias KPMG indicou que o Brasil perde, anualmente, cerca de R$ 160 bilhões com fraudes. Apenas a título de comparação, os gastos com a Copa do Mundo de 2014 serão de pouco mais de R$ 27 bilhões. Por aqui operam organizações criminosas sofisticadas, com estruturas em moldes empresariais e disposição financeira para criar ramificações na administração pública.
Talvez por esta razão se desenvolvam tão rapidamente no Brasil políticas voltadas à redução das prerrogativas da magistratura. Basta um pequeno esforço para lembrarmos dos elogios que determinado Senador — cassado por envolvimento em organização criminosa voltada à exploração de jogos de azar — arrancava da sociedade ao se posicionar contra a vitaliciedade dos magistrados (PEC 89/03, perda do cargo por processo administrativo) e a favor da redução das férias dos juízes. Ilustrativo citar algumas de suas populares manifestações, facilmente encontradas na internet:
“Se o juiz alega que necessita de férias de mais de 30 dias porque vara a noite analisando processos, o gari, o médico e o advogado também deveriam ter 60 dias de férias”.[4]
“A vitaliciedade não é eliminada pela PEC”, mas “assume função mais condizente com um Estado no qual os predicamentos de determinadas autoridades não podem ser confundidos com privilégios.”[5]
“Foi o presidente da Comissão, o senador (...), quem bateu o pé. Se os juízes não aceitassem incluir o recesso forense no período de dois meses a que têm direito, até os 60 dias estariam em risco[6].”
“Os senhores têm que lutar contra o crime, tenha paciência!"[7]
Definitivamente, já é chegado o momento de a população conhecer os ardilosos objetivos que permeiam os incessantes ataques à magistratura.
Voltando à novel legislação, os principais questionamentos se referem à possibilidade de o órgão colegiado de primeiro grau se reunir de forma sigilosa (art. 1o, §4o) e de publicar suas decisões sem referência a voto divergente de qualquer dos membros (art. 1o, §6o).
Tais inovações criam no Brasil a figura do “Juiz sem rosto”? Com a máxima vênia aos mais desatentos, demonstrarei que não.
A finalidade precípua da identificação do magistrado que processará e julgará o feito é oportunizar que as partes questionem, nos autos, sua imparcialidade, apontando possível suspeição ou impedimento do julgador. A razão é clara: toda pessoa tem o direito de ser julgada por um tribunal independente e imparcial (art. X da Declaração Universal dos Direitos Humanos) e tal prerrogativa é inerente ao devido processo legal.
Em alguns países, em resposta à expansão massacrante da criminalidade, foram criados tribunais especiais compostos por juízes anônimos, não identificados ou identificáveis, estratégia que ficou conhecida como uso de “juízes sem rosto”. O procedimento suscitou inúmeras reflexões, por notória violação aos princípios do Juiz natural (nos países em que não havia distribuição por sorteio) e do devido processo legal, pela impossibilidade de suscitar a parcialidade do julgador.
Em acertada decisão no caso Castillo Petruzzi, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que a condenação de quatro chilenos à prisão perpétua, por um tribunal peruano “sem rosto”, violava a garantia do devido processo legal.
Não é esta, contudo, a orientação da Lei 12.694/2012. A nova lei preserva a figura do juiz natural. A distribuição do processo (ou do procedimento) deverá ser feita regularmente, por sorteio. O juiz para o qual o feito foi distribuído será devidamente identificado, como ocorreria em qualquer outro processo, oportunizando que as partes suscitem sua suspeição ou impedimento.
Se o magistrado decidir pela formação de colegiado, deverá consignar, em decisão fundamentada, as razões que o levaram a considerar que sua integridade física está em risco, sendo obrigado a dar conhecimento da decisão à sua Corregedoria. O colegiado será formado pelo juiz do processo e por outros dois juízes, escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal, em exercício no primeiro grau de jurisdição, igualmente identificados, o que novamente possibilitará que seja questionada eventual parcialidade.
As decisões do colegiado deverão ser devidamente fundamentadas e assinadas por todos os seus integrantes. Contudo, mesmo que a decisão não seja unânime, não poderá ser publicada qualquer referência ao voto divergente. Deste modo, não será possível aferir qual dos integrantes do colegiado não concordou com os demais, o que evita que a pessoa eventualmente insatisfeita com a decisão se volte contra este ou aquele magistrado.
Igual procedimento já é adotado no Brasil desde 2008, com a supressão, pela Lei 11.689/2008, da obrigatoriedade de o escrivão declarar o número de votos afirmativos e negativos, após a votação de cada quesito nos processos sujeitos a julgamento pelo Tribunal do Júri[8]. Assim, não é possível saber se uma decisão do Conselho de Sentença foi tomada por unanimidade ou por maioria, o que preserva a segurança e independência dos jurados.
Como dito alhures, não teremos por aqui a perigosa figura do juiz sem rosto, mas um permissivo processual que garantirá que nossos magistrados continuem a atuar com a coragem indispensável à sublime função de julgar.
É claro que ainda é cedo para tecer comentários mais profundos sobre o novo texto. Considero, contudo, que um diferente caminho está sendo trilhado em direção à verdadeira concreção dos direitos fundamentais, distanciando o ordenamento brasileiro do pseudo garantismo que vinha favorecendo, ingênua ou intencionalmente, o crime organizado.

[1] Juiz de Direito. Foi Advogado e Agente de Polícia Federal. Autor dos livros “Questões cíveis enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-414-1) e “Questões Criminais enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-415-8). hugotorquato@hotmail.com
[2] Keith, Linda Camp. “Judicial Independence and human rights protection around the world”. Texas: Judicature, 2002.
[3] FREITAS, Vladimir Passos de. O Poder Judiciário brasileiro no regime militar. São Paulo: Consultor Jurídico, 2009. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-dez-20/segunda-leitura-poder-judiciario-brasileiro-regime-militar.
[4] http://www.idadecerta.com.br/blog/?tag=ferias
[5] http://ww1.anamatra.org.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=110388
[6] http://www.conjur.com.br/2009-dez-01/juizes-mesmos-direitos-promotores-procuradores
[7] http://www.mp.pe.gov.br/index.pl/clipagem08122010_comissao
[8] Redação anterior: Art. 487 - Após a votação de cada quesito, o presidente, verificados os votos e as cédulas não utilizadas, mandará que o escrivão escreva o resultado em termo especial e que sejam declarados o número de votos afirmativos e o de negativos.
Hugo Barbosa Torquato Ferreira é juiz de Direito no Acre. Foi advogado e agente de Polícia Federal.
Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2012

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