A Constituição possui algumas normas, de conteúdo bastante amplo e, por vezes, com conceitos imprecisos e abertos. Estas normas são chamadas de princípios e servem de orientação geral para o Poder Legislativo baixar as diversas leis que regulam a vida em todos os seus aspectos: econômico, social, político etc.
Os princípios fornecem, assim, uma diretiva. Cabe ao Poder Legislativo escolher entre as muitas possibilidades compatíveis com cada princípio, para concretizar os objetivos destes numa lei de âmbito específico.
Por exemplo, diante do princípio constitucional da livre concorrência, o Poder Legislativo aprovou lei organizando o portentoso Sistema Nacional de Defesa da Concorrência, em torno de um órgão técnico julgador, que é o Cade. Foi a alternativa escolhida por nossos deputados e senadores. Mas, eles poderiam ter decidido de outro modo. Seria igualmente compatível com o mesmo princípio da livre concorrência deixar de criar este órgão técnico, ficando o Poder Judiciário incumbido de reprimir os abusos do poder de mercado.
Quer dizer, os princípios jurídicos orientam o Poder Legislativo, que dispõe de diversas alternativas, cabendo-lhe escolher, ao editar a lei, a que melhor atende ao interesse do país.
Infelizmente, porém, o Poder Legislativo não tem conseguido editar todas as leis exigidas pela realidade brasileira, cada vez mais complexa. Parte da culpa é da própria sociedade, que não tem a tradição de levar, de modo já estruturado, demandas aos seus legisladores.
Pois bem. Quando não existe lei sobre determinado assunto, os juízes têm que se valer diretamente dos princípios para julgarem os processos.
Mas, como dito, estes princípios são amplos e, por vezes, imprecisos. Assim, quando o Poder Legislativo não os concretiza em leis, ficam faltando regras específicas, que definam como os juízes devem julgar. Como não pode aguardar o aparecimento destas leis, invocam diretamente os princípios. O Poder Judiciário, em suma, acaba sendo forçado a fazer aquela escolha que deveria ter sido feita pelo Poder Legislativo, entre as muitas possibilidades abertas pelos princípios. Não há outro jeito: nenhum “espaço de poder” fica vazio; se quem deve ocupá-lo se distrai, alguém avança.
Esta situação, contudo, gera forte insegurança jurídica. No Parlamento, o processo legislativo garante discussão ampla e democrática, com a devida ponderação dos interesses envolvidos. No Judiciário, são 170 mil juízes decidindo país a fora, muitas vezes de modo solitário e sem nenhuma informação além das constantes dos autos judiciais à sua frente. Diante das várias alternativas compatíveis com o princípio em jogo, cada juiz escolhe a que lhe parece mais justa. Numa temerária avalanche, soluções diferentes para casos iguais se multiplicam e desnorteiam os cidadãos.
Para reduzir esta indesejável insegurança jurídica, o Poder Legislativo deve legislar mais. Não basta enunciar os princípios. É indispensável que também os delimite em regras específicas, que definam como os juízes devem aplicar certo princípio em seus julgamentos.
Veja a questão da função social do contrato, que decorre do princípio constitucional da função social da propriedade. Embora esteja enunciado no Código Civil, não há nenhuma lei delimitando especificamente seu significado. Por isto, muitas decisões díspares têm lhe conferido conteúdos diferentes.
Diante da falta de delimitação específica do que seja a função social do contrato, cabe ao Legislativo editar lei estabelecendo o alcance preciso do princípio. Deve definir que o contrato cumpre sua função social quando não agride direitos da coletividade. Dois empresários não podem, por exemplo, contratar pensando somente em seus interesses econômicos imediatos, desatentos à sustentabilidade ambiental.
Delimitando deste modo específico o que é a função social do contrato, os legisladores inibem qualquer juiz de considerar este princípio por outros ângulos. Exercem competência constitucional, ocupando legitimamente seu “espaço de poder”. Sobretudo, ao especificarem em regras legais o conteúdo dos princípios, eles estancam a avalanche da insegurança jurídica.
Fábio Ulhoa Coelho é advogado e professor da PUC-SP. É autor, entre outras obras, de Roteiro de Lógica Jurídica.
Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2012
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