segunda-feira, 23 de julho de 2012

Lei que limita acesso a inqúerito policial é positiva


O artigo 20 do Código de Processo Penal foi modificado pela Lei 12.681, de 2012, e passou a vedar a menção a inquéritos em curso em certidões de antecedentes.
O tema não é novo e neste ponto a legislação ordinária evoluiu para estabelecer de forma clara as fronteiras da presunção de inocência e com isso evitar, quer em âmbito público, quer no círculo das atividades privadas, que alguém não definitivamente condenado — e, em realidade, sequer processado — sofra discriminação decorrente da condição de culpado.
Sobre este aspecto a recente lei é elogiável e concretiza uma das vertentes mais delicadas da presunção de inocência, que diz com efeitos do indiciamento que transcendem a própria investigação, relativamente a qual deveriam, em tese, estar confinados.
Os indícios da mudança de mentalidade já podiam ser captados no fim do ano passado, quando órgãos da imprensa não especializada criticaram a aplicação da Resolução 356, de 2008, do Supremo Tribunal Federal.
A Lei 12.681, sancionada no ultimo dia 5 de julho, antes de ultrapassar os limites demarcados na resolução de nosso mais alto tribunal, desenha esta fronteira, no que tange à disponibilidade das informações. Sem prejudicar a atividade de persecução criminal, o preceito normativo limita o acesso à notícia sobre inquéritos policiais aos requerentes de solicitações sobre antecedentes, configurando obstáculo à constituição e perpetuação de estigmas que afrontam a dignidade da pessoa.
Há muito a se dizer sobre conceito e limites da presunção de inocência, mas para uma visão panorâmica tomo a liberdade de reproduzir o comentário publicado no início do ano no jornal O Globo, a propósito da reação dos meios de comunicação à correta aplicação da Resolução do STF:
Nos últimos dias de dezembro de 2011, o jornal O Globo centrou foco na aplicação pelo STF da Resolução 356, de 06 de março de 2008, que restringe a emissão de certidões pelas quais revela-se a existência de inquéritos arquivados e processos extintos com a absolvição do acusado, entre outras hipóteses.
O ângulo pelo qual a matéria foi tratada busca associar a resolução do STF a alguma política contrária à transparência e, ainda que sutilmente, implica a referida política a decisões recentes da Corte, em âmbito liminar, relacionadas aos poderes do Conselho Nacional de Justiça, como se o STF ou seu presidente estivessem orientados a manter as questões judiciais delicadas, envolvendo políticos ou magistrados, intencionalmente na sombra.
O espaço deste artigo é limitado para tratar das referidas matérias, mas até pela data da resolução, março de 2008, percebe-se que o propósito de atar temas tão díspares serviu à produção de notícias, mas nada esclareceu sobre do que, afinal, cuida o ato normativo do STF e isso em um perigoso caminho de enfraquecimento das garantias constitucionais.
A resolução do Supremo Tribunal trata da presunção de inocência e seus efeitos relativamente a pessoas que foram investigadas, processadas e absolvidas ou até mesmo condenadas, mas cujas penas foram cumpridas, saldando sua dívida com a sociedade.
Não é algo que esteja limitado a determinada categoria de suspeitos ou acusados, como quer parecer crer a reportagem.
Ao revés, a proteção derivada da presunção de inocência é aplicável a qualquer pessoa (em maio de 2010, em julgamento de Mandado de Segurança na 5ª Câmara Criminal, no Rio de Janeiro, adotou-se a mesma regra, em voto de minha autoria).
Para os que conhecem as filigranas forenses é um tanto evidente que caiba ao STF emitir certidões sobre procedimentos que tramitaram na Corte.
Não pode fazer isso, todavia, relativamente a procedimentos que se encerraram em outras instâncias judiciais.
Por isso a Resolução 356 refere-se à expedição de certidões "no âmbito do Supremo Tribunal Federal".
Não poderia ser diferente, porque se cuida de ato normativo interno do STF. E perante o Supremo Tribunal Federal tramitam, em caráter originário, investigações e processos que pela Constituição reservam aos suspeitos ou acusados (e eventuais condenados, no caso cujas penas foram cumpridas) o direito de serem julgados no STF.
Tentar ver nisso política de tutela ou favor a autoridades é ignorância ou malícia. O princípio nuclear, de índole constitucional, para suspeitos e acusados absolvidos é o da "presunção de inocência" (artigo 5º, inciso. LVII, da Constituição da República).
A garantia da intimidade e o valor imanente configurado pela "dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, inciso III, da Constituição) protegem o condenado cuja pena está cumprida.
Apesar de se tratar de resolução, portanto com perímetro normativo bastante reduzido, o ato do STF emite clara orientação aos juízes e tribunais de todo país: as certidões que envolvam investigações criminais arquivadas ou processos penais findos com sentença absolutória não devem conter menção à existência destes procedimentos.
Isso não elimina, fisicamente, os autos destes processos e não impede pesquisadores da área das ciências sociais, por exemplo, de investigar o procedimento e a decisão.
O ato normativo sequer configura proibição de acesso aos referidos autos, essa sim, medida sem lastro na Constituição da República, que atentaria contra a publicidade dos atos do poder público.
No delicado equilíbrio difícil entre interesses constitucionalmente tutelados que estejam em rota de colisão, a preservação dos autos dos procedimentos (incluindo inquéritos arquivados e processos com absolvição) e a vedação de emissão de certidão de "antecedentes criminais" na mesma hipótese são medidas que estabelecem compatibilidade entre publicidade e presunção de inocência.
A questão subjacente - e que parece causar desconforto aos mais conservadores - está em entender que tipo de relação há entre procedimentos arquivados ou com absolvição e a presunção de inocência e, ainda, que consequências negativas são essas que a resolução do STF e as decisões judiciais nela estribadas pretendem prevenir.
Até bem pouco tempo, mesmo depois da Constituição de 1988, havia juízes e tribunais que aumentavam a pena de condenados com base em antecedentes criminais, mesmo que se tratasse de inquéritos policiais arquivados.
Sustentava-se a impossibilidade de se comparar em igualdade de condições quem nunca sofrera um inquérito ou respondera a processo a alguém que já havia passado por isso, apesar de inocentado.
Tal prática judiciária relativamente comum afrontava o mandamento constitucional insculpido no inciso LVII do artigo 5º (e o mesmo princípio, que fora reconhecido pelo Brasil em tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica e o de Direitos Civis e Políticos). Ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença condenatória
Também fora da esfera criminal expandiam-se os efeitos perversos da consideração de uma "culpa" relativa à condição de indiciado ou processado: empresas deixavam de contratar candidatos a emprego porque as certidões revelavam o "passado suspeito" dessas pessoas.
Finalmente, até em determinados espaços da esfera política, impregnados por um falso moralismo, disseminou-se a idéia de que candidatos a cargos públicos que responderam a inquérito ou processo, ainda que inocentados, não seriam portadores de "ficha limpa" e, portanto, seriam indignos de representarem seus eleitores.
Em todos estes casos ignorava-se solenemente a presunção de inocência, quer sob o prisma da tutela da condição de inocente em face do Estado, quer pelo ângulo da referida proteção na relação entre "entes privados", instituindo abominável discriminação no lugar em que o Pacto Social maior proibia, de maneira expressa, este tratamento diferenciado.
A posição assumida pelo STF, calcada em um sem número de decisões do gênero, nada mais fez do que sinalizar para a definição do perímetro da tutela da inocência.
É certo que as decisões judiciais não têm o poder de superar preconceitos. Mas podem, com algum grau de eficácia, reduzir os casos em que preconceitos, e não fatos, ditam as ações no seio social.
Geraldo Prado é consultor jurídico e professor de Direito Processual Penal da UFRJ.
Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2012

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