Parecia mais um caso corriqueiro na rotina do juiz criminal Douglas de Melo Martins a prisão em flagrante de um acusado de roubo. Mas, naquele plantão na Vara de Execução de Penas Alternativas em São Luís, no Maranhão, algo chamou a atenção. O acusado era surdo e mudo, o que o obrigou a chamar um intérprete. Comunicação feita, a verdadeira foi revelada: a mulher do flagrado, que não tinha qualquer problema de comunicação, havia mentido quando o acusou de roubo, simplesmente com o intuito de se livrar dele no meio da multidão.
“Esse caso é exemplar. O auto de prisão em flagrante estava correto, do ponto de vista formal, mas não condizia com a realidade. Eles tiveram uma discussão por causa de ciúme. Ela gritou que estava sendo assaltada porque ele sacou uma faca, mas era mentira. Era crime de ameaça. No máximo, ele assinaria um Termo Circunstanciado de Ocorrência, mas não seria preso”, lembra o juiz.
A mentira só foi descoberta graças a uma prática de Martins. Quando está em serviço, todo preso em flagrante é apresentado a ele, que verifica se é mesmo o caso de manter a prisão. Embora a presença do preso perante o juiz no momento do auto de prisão seja previsto no Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, do qual o Brasil é signatário, não existe nenhuma norma interna que regulamente o procedimento. E poucos são os juízes que agem com essa cautela, segundo ele.
“A apresentação do preso produz resultados fantásticos. No plantão em que a decisão sobre o flagrante é tomada na presença do preso, menos da metade é convertido em prisão preventiva. Assim tem sido nas poucas oportunidades em que estive em plantão criminal”, conta Martins.
“Estabeleço um diálogo com o acusado. Ele me conta sua versão. Há casos em que o preso está todo machucado e é preciso avaliar a origem desses hematomas. Considero as duas coisas: tanto o auto quanto a versão do preso”, explica.
Em São Luís, os presos em flagrante durante a noite podem conversar com o juiz no dia seguinte pela manhã, a partir das 9h. Os que são presos nos fins de semana são encaminhados sempre às 17h.
Internalização da regra
O entendimento predominante do Supremo Tribunal Federal é que os tratados internacionais têm paridade hierárquica com as leis ordinárias federais. Por isso, Martins é entusiasta de uma proposta que tramita no Conselho Nacional de Justiça e que quer, por meio de resolução, regulamentar como e quando o juiz deve acompanhar o preso no auto de prisão em flagrante.
Hoje, tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 112, de 2011, que quer fazer justamente isso. O projeto estabelece um prazo máximo de 48 horas para os juízes decidirem sobre a legalidade das prisões. A proposta também inclui no texto constitucional a obrigatoriedade da comunicação imediata ao Ministério Público da prisão e do local onde se encontra o preso.
Hoje, a Constituição Federal prevê a obrigatoriedade da comunicação ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada. “Não é mais possível que o preso aguarde uma semana, um mês, um ano ou até mais, conforme se verificou em mutirões do CNJ, para ter a primeira audiência com o juiz da causa”, argumenta o deputado Domingos Dutra (PT-MA).
No artigo doutrinário Apresentação ao Preso em Juízo – Estudo de Direito Comparado para Subsidiar o PLS 554/2011 (clique aqui para ler), o defensor público Carlos Weis, que atua em São Paulo, escreve que “uma pessoa acusada de um delito deve ser levada perante um juiz o mais cedo possível e, de qualquer forma, não depois de sua primeira audiência, na qual ele é indiciado pelo crime. Na prática, isso significa que se o acusado é detido pela polícia, ele será mantido sob custódia por até 24 horas, após o que ele deve ser levado perante um juiz. Nos casos em que a fiança seja concedida, o acusado deve comparecer no tribunal no prazo de dois dias”.
Em outro estudo sobre o assunto, Estudo sobre a Obrigatoriedade de Apresentação Imediata da Pessoa Presa ao Juiz: Comparativo entre as Previsões dos Tratados de Direitos Humanos e do Projeto de Código de Processo Penal (clique aqui para ler), o defensor público diz que “chama a atenção a falta, no ordenamento jurídico processual penal ora vigente, de dispositivo de lei que obrigue a apresentação da pessoa presa — especialmente aquela em suposto flagrante delito — à autoridade judicial, em evidente desconformidade com o que preveem os dois tratados internacionais de direitos humanos, o que é parcialmente resolvido pelo projeto do novo Código de Processo Penal”.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que a condução do preso à presença do juiz não pode ser substituída pela mera notificação da prisão. Além dos aspectos técnico-jurídicos da questão, encontra-se em jogo nesse caso a efetiva garantia da integridade física e moral do preso.
O juiz Martins explica que o pedido “não vem do nada”. “Parece que estamos arrumando mais trabalho para o juiz. Mas essa é uma forma de inibir violência e a tortura, aperfeiçoar o funcionamento da Polícia e corrigir injustiças”, justifica.
Marília Scriboni é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2012
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