A idade provecta impõe-me o dever de depor.
Presto este depoimento com simplicidade. Penso nos jovens que são os sucessores das gerações que partem. Precisam esses jovens de estímulo, para escolher caminhos que contrastam com o modelo social dominante, que dá mais relevância ao ter do que ao ser.
Fui Juiz de Direito no Estado do Espírito Santo.
Já no início da carreira, rebelamo-nos contra determinação legal que estabelecia fossem os presos mandados para o Instituto de Reabilitação Social em Vitória. Sempre nos pareceu que este procedimento constituía uma violência porque estabelecia o rompimento dos laços familiares do preso. Na Comarca do interior, o preso podia ter contato com sua família.
A reverência à dignidade da pessoa humana impedia tratar o preso como se fosse fera.
Na mesma linha, concedemos direito de trabalho externo ao preso.
A experiência de maior eficácia ocorreu em São José do Calçado, no sul do Espírito Santo, onde a orientação preconizada obteve amplo apoio da comunidade.
Em quatro anos e meio de judicatura na comarca, a reincidência criminal foi de zero por cento. Estribamos nossa conduta na Declaração Universal dos Direitos Humanos que manda preservar, como bem jurídico primário, a dignidade da pessoa humana.
Integramos a Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória, durante o período da ditadura militar, e exercemos sua presidência, contra determinação legal expressa. A lei, em que pretenderam nos enquadrar, nos pareceu inconstitucional e contrária à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eu integrava essa Comissão, por um imperativo de consciência, e aleguei perante o Tribunal, a que estava subordinado, que a consciência é inviolável.
Acima de ser um juiz, eu era um cidadão e uma pessoa humana. Minha defesa foi acolhida e fiquei livre de punição graças à posição assumida pelo Desembargador Homero Mafra, hoje falecido, mas nunca esquecido.
Lutei, irmanado a Ewerton Montenegro Guimarães, hoje falecido, e a inúmeros concidadãos, pela “anistia ampla, geral e irrestrita” em favor dos brasileiros que foram proscritos pelo golpe de 1º de abril de 1964. Integramos oficialmente o Comitê Brasileiro pela Anistia e discursamos em praça pública e em recintos fechados, em favor da anistia. Entenderam alguns superiores hierárquicos que esse posicionamento era “político”, defeso ao magistrado.
Esclareci que a anistia não era um tema político-partidário. Se assim fosse, estaria proibido ao juiz imiscuir-se nesse assunto. A “anistia” era uma questão de justiça, era a ponte de reencontro dos brasileiros, era o caminho para a redemocratização do Brasil. Do magistrado não se cassara a cidadania e, em nome da cidadania, eu invocava o direito de lutar pela anistia.
Através de um despacho, suspendi a execução de todos os mandados possessórios que implicassem o despejo coletivo de famílias, em Vila Velha, onde judiquei na Vara Cível. Fundamentei o provimento judicial no argumento de que o direito de morar, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, precedia outros eventuais direitos abrigados pelo sistema legal, inclusive o direito de propriedade que, na verdade, não é direito de propriedade, mas direito à propriedade, ou seja, todos têm o direito de ser proprietários, pelo menos da própria casa.
A repetida invocação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas minhas sentenças, num momento em que o país estava sob a égide do AI-5, era por si só um ato de insubmissão ao arbítrio reinante, insubmissão que manifestamos sem alarde mas com firmeza.
Numa fase histórica em que se proclamava o Brasil Gigante, sem problemas, pus o dedo na ferida, denunciando numa portaria a dramaticidade de milhares de crianças fora da escola (São José do Calçado, 1969).
Determinei a matrícula compulsória das crianças. Pretendi exercer pressão menos sobre os pais, mais sobre o Poder Público, que deveria providenciar as vagas para as crianças que estavam sendo matriculadas por ordem do juiz. A portaria aumentou em 35% a matrícula escolar, na comarca, segundo dados da época.
Não guardo qualquer mágoa de episódios passados. Foram fruto de uma época, felizmente ultrapassada. O que pretendo testemunhar é que sempre vale a pena seguir a própria consciência, ser fiel aos nossos credos. Erros podemos praticar porque, como diz a sabedoria popular, errar é humano. Mas se erramos, com retidão de propósito, o erro será apenas fruto de nossa falibilidade e das contingências que marcam nosso destino.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado (aposentado), professor (em atividade) na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha, ES, membro da União Brasileira de Escritores. Autor de Dilemas de um juiz (Editora GZ, 2009) e Filosofia do Direito (também GZ, 2010). E-mail: jbherkenhoff@ uol.com.br Homepage: www. jbherkenhoff.com.br
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