Os prefeitos e industriais dos 32 municípios servidos pelas águas dos rios dos Sinos e Paranhana, na Região Metropolitana de Porto Alegre, entraram em estado de alerta máximo, depois da mortandade de peixes que aconteceu no dia 1º de dezembro do ano passado. E não apenas para prevenir novos acidentes, mas por medo da responsabilização por crime ambiental. Diferentemente de outros acidentes ambientais desta natureza, este não ficará ‘barato’, promete o promotor Daniel Martini, que acompanha a emissão de efluentes domésticos e industriais para a responsabilização de cada um dos poluidores, que podem responder nas esferas administrativa, cível e criminal.
Na verdade, a morte de peixes, ocorrida numa faixa de 70 km do rio dos Sinos, percebida nos limites do município de Parobé e Sapiranga, serviu como uma espécie de ‘‘batismo de fogo’’ para os integrantes da recém-criada Promotoria Regional de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas dos Rios dos Sinos e Gravataí, que tem à frente Daniel Martini. O promotor, que tem 15 anos de MP, montou uma força-tarefa ambiental eficiente e entrosada com a Polícia Civil, Brigada Militar e Fundação Estadual de Proteção Ambiental, que conta ainda com o respaldo técnico de biólogos, bioquímicos e outros profissionais. ‘‘Profissionais que nos garantem o embasamento técnico’’, complementa Martini.
A partir de então, o que se viu foi algo inédito e avassalador na história da repressão aos crimes ambientais no estado e, talvez, no Brasil. De dezembro para cá, como numa blitzkriege, a força-tarefa prendeu 25 pessoas, sendo 22 empresários e três secretários municipais de Meio Ambiente. Receberam voz de prisão, foram detidos e encaminhados à Delegacia de Polícia e ao presídio. Os infratores foram enquadrados nos artigos 54, 56 ou 60 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Todos já deixaram a prisão, mas estão em liberdade provisória, enquanto respondem aos inquéritos na área administrativa.
Apesar do caráter impactante e contundente do trabalho desenvolvido pela Promotoria Regional de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográfica do Estado, nem tudo acaba em punição. Daniel Martini afirma que o Ministério Público está com as portas abertas para conciliar, ajustar condutas, firmar compromissos e a conceder prazos aos empresários que violaram a legislação ambiental — desde que cumpram o acordado e não reincidam nos crimes. Segundo o promotor, resolver o problema com o menor custo para o Estado, a empresa e o contribuinte é sempre o principal objetivo da força-tarefa.
“As empresas, hoje, querem soluções consensuais. Ora, o Ministério Público também busca soluções consensuais. O nosso último encaminhamento é a Justiça. A judicialização não interessa e não serve a ninguém. Ao mesmo tempo que o MP usa seu poder de coerção, sempre deixa a porta aberta para uma solução amigável’’, reitera.
Na ação mais recente, do dia 21 de junho, a força-tarefa da Promotoria de Defesa o Meio Ambiente notificou os responsáveis por uma indústria de cromagem no município de Sapucaia do Sul. No local, a força-tarefa identificou indícios de cromo hexavalente em um poço que capta água do subsolo. A substância, que é utilizada em banhos de cromagem, pode causar câncer. Segundo o promotor Daniel Martini, há infiltração nas paredes do poço, e a coloração da água estava alterada. Foram colhidas amostras para serem analisadas. Se for confirmada a contaminação, a empresa terá que fazer um projeto de recuperação de área degradada, para impedir a poluição do lençol freático na região.
Já na vistoria realizada no município de Igrejinha, o promotor e sua equipe se defrontaram com um depósito de resíduos altamente tóxicos depositados diretamente no solo, numa Área de Preservação Permanente (APP). O material era despejado por uma central de resíduos industriais de calçados. O responsável pela empresa foi preso em flagrante e encaminhado ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). Nesta ação, Martini contou com a ajuda dos promotores de Justiça Paulo Eduardo de Almeida Vieira, de Igrejinha; Annelise Steigleder, de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre; Daniel Gonçalves, de Três Coroas; além da Delegacia Estadual de Proteção Ambiental (Dema).
O promotor Daniel Martini, 40 anos, é filho de pequenos comerciantes de origem italiana do então distrito de Progresso, hoje já emancipado do município de Lajeado. Formou-se em Direito na PUC-RS, em 1994. Fez mestrado no Consiglio Nazionale Delle Ricerche (entidade científica similar ao CNPq brasileiro), sediado em Roma. Morou na capital da Itália nos anos de 2008 e 2009, enquanto durou o mestrado. Atualmente, está concluindo, na Universitá degli Studi Roma Tre, o curso de doutorado. Ambos, mestrado e doutorado, em Direito Ambiental Internacional.
Leia a entrevista:
ConJur — Do final de 2010 para cá, o Vale do Sinos vem recebendo uma atenção especial do MP, dado o número de autuações e prisões por crime ambiental. Como e por que começou este redirecionamento de foco?
Daniel Martini — Em novembro de 2010, o Ministério Público criou a primeira Promotoria Regional de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas do Estado. Inicialmente, foram escolhidas duas bacias: a do Sinos e a do Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. E por que estas duas? Porque são as mais impactadas e problemáticas do estado na questão ambiental. Segundo a Agência Nacional de Águas, Sinos e Gravataí são os rios mais poluídos do Brasil. Só perdem para o rio Tietê, em São Paulo. Há poucos meses, eu fiz uma vistoria aérea nos dois rios, e as fotografias mostraram o tamanho da degradação ambiental. Por isto, o MP passou a organizar o trabalho de tutela ambiental não por divisão política do território, mas a partir de bacias hidrográficas — e este levantamento aéreo ajudou muito a mapear as áreas mais sensíveis. E eu fui convidado a fazer parte deste projeto, assumindo de pronto a chefia da Promotoria Regional.
ConJur — Dias após ter assumido o cargo, diversos peixes morreram no rio dos Sinos. Como foi este episódio?
Daniel Martini — Eu assumi no dia 24 de novembro e, no dia 1º de dezembro, já ocorria aquela mortandade de peixes. Não esperava que um ‘acidente’ ambiental de tamanha envergadura acontecesse justamente por aqueles dias, em que ainda estávamos nos organizando, apesar de ser um evento previsível, tamanha a degradação do rio. Por outro lado, este episódio serviu para moldar a atuação da Promotoria Regional do Meio Ambiente. A partir daí, nós montamos uma força-tarefa ambiental que funciona de fato, embora ainda não esteja institucionalizada no âmbito do MP. Esta força-tarefa passou a contar com a ajuda dos diversos órgãos responsáveis pela tutela do meio ambiente no estado, dentre eles a Polícia Civil, que organizou uma Delegacia Especializada em Meio Ambiente; e o braço ambiental da Brigada Militar, conhecida como Patram [Patrulha Ambiental]. Também passamos a atuar com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental [Fepam], com a Secretaria de Meio Ambiente e com as Secretarias Municipais dos 40 municípios que formam as bacias do Sinos e Gravataí.
ConJur — Por que uma força-tarefa?
Daniel Martini – Porque nós comparecemos aos pontos críticos de poluição de forma organizada. A força pode atuar, no mesmo momento, nas três esferas de responsabilidade que um dano ambiental pode representar: administrativa, civil e criminal. Com este suporte, temos vistoriado indústrias, aterros de resíduos industriais, aterros sanitários, rios e arroios. Esta integração nos permite tomar medidas rápidas e drásticas in loco. Nós não só fazemos imediatamente cessar aquela poluição, aquele crime ambiental, como adotamos medidas nas esferas civil e criminal, se for o caso.
ConJur — Já há um balanço desta ação conjunta?
Daniel Martini — Até este momento [junho de 2011], temos o registro de 25 prisões em flagrante, legítimas. A Delegacia de Polícia lavrou os autos de prisão em flagrante e os encaminhou ao presídio de cada comarca. Evidentemente, é uma ação bastante impactante, na medida em que atingimos empresários, políticos, enfim, pessoas poderosas e com certo poder aquisitivo e com grande influência na comunidade. Posso garantir que nossa ação, que resultou nestas prisões, é inédita no país. Ninguém, no Brasil, foi tão fundo, de forma tão rápida e de maneira tão organizada como nós. É realmente algo inédito.
ConJur — Como este processo é detonado? O MP-RS se baseia numa denúncia ou já existe um roteiro pré-programado?
Daniel Martini — Nós ainda estamos nos organizando, para agir de forma mais eficiente e coordenada. Quando tivermos o mapa de todas as violações ambientais, o trabalho se tornará mais fácil, mais ágil, pois basta seguir um roteiro. Junto com a Delegacia do Meio Ambiente e com a Patram, eu organizei um corpo técnico eficiente, formado por engenheiros sanitaristas, biólogos, bioquímicos, dentre outros profissionais, para nos dar o embasamento de que precisamos nas nossas ações. Por outro lado, as denúncias são importantíssimas como ponto de partida. Recentemente, recebemos, pelo site do MP-RS, denúncia de mau cheiro numa empresa de Ivoti, município da bacia do Sinos, a 55km de Porto Alegre. Fui até a empresa e constatei, além do mau cheiro, que o arroio estava completamente amarelado. Eu não dei só uma olhada. Calcei as botas de borracha, que carrego sempre comigo, e caminhei até o meio do arroio. Esta coloração coincidia com a cor do efluente da empresa. Aliás, aquele efluente não poderia ser jogado no arroio, nem depois de tratado, pois a empresa não possuía autorização ambiental para lançar efluente em corpo hídrico. No entanto, nós não conseguíamos encontrar o ponto de escapamento, chamado de by-pass [válvula de escape], deste lançamento irregular. Após muito procurar, os técnicos suspeitaram de um cano e o cortaram. Em seguida, nossos técnicos jogaram corante biológico — justamente para não poluir — dentro dele. Minutos depois, vimos chegar ao arroio aquele corante, deixando a água completamente vermelha. Diante da constatação de onde vinha o poluente, eu e a delegada do Meio Ambiente demos voz de prisão ao responsável por aquela indústria. Cortando aquela saída, cessamos ali o dano ambiental e efetuamos a prisão em flagrante pelo crime de poluição ambiental. Ou seja, resolvemos o problema de forma imediata.
ConJur — Quais são as maiores e mais impactantes violações da legislação ambiental apurada pelo MP-RS nestas duas bacias? Quem são os maiores poluidores?
Daniel Martini — Nas décadas de 80 e 90 do século passado, a maior fonte de degradação dos rios era a indústria, principalmente a do setor coureiro-calçadista (no Vale do Sinos). Naquela época, tudo era precário. Havia poucas regras, e estas eram indefinidas. Enfim, não havia fiscalização ou controle ambiental. Até porque a consciência ambientalista dava seus primeiros passos no estado, seguindo uma tendência que começou na década de 70, na Europa. A falta de conhecimento técnico e de leis deixava um vácuo, que impedia uma ação contra os abusos praticados. Na verdade, não se tinha claro o que podia ou não podia ser feito. O dedo dos ambientalistas apontava sempre para o setor industrial. Entretanto, esta realidade foi mudando aos poucos. Hoje, posso afirmar com segurança que a maior fonte de poluição dos rios são os esgotos domésticos não-tratados lançados diretamente nos cursos d’água. Em resumo: é a falta de saneamento básico. Eu embaso esta afirmação em números. Novo Hamburgo, por exemplo, um dos maiores municípios do Vale do Sinos, rico, desenvolvido, coleta e trata hoje 1,8% dos esgotos domésticos. Ou seja, nada. Mas isso não é tudo. Este percentual não decorre de investimentos do município. Decorre do investimento de empreendedores privados, obrigados a fazer o sistema de coleta e tratamento de esgotos quando constroem empreendimentos. Isto significa dizer que o município de Novo Hamburgo investiu até então zero em coleta e tratamento de esgotos domésticos. A bem da verdade, em razão dos recursos destinados pelo PAC 1 e PAC 2, nós vemos somente agora investimentos na região nesta área. Agora, na bacia do Sinos como um todo — são 32 municípios —, nós temos menos de 5% de esgotos tratados. Por esta situação dramática, crítica, o rio dos Sinos está no seu limite. Vou dar o exemplo da teoria do copo cheio. Quando sobrevém um fato anormal, atípico — como um lançamento fora de padrão de um efluente industrial, que é só uma gota —, o copo transborda. Resultado: qualquer evento, por menor que seja, causa uma tragédia no rio. É um fator que faz a poluição transbordar. O rio hoje está absolutamente impactado pela falta de saneamento básico; ou seja, por esgotos domésticos não-tratados. Qualquer lançamento industrial anormal desencadeia um processo dramático e catastrófico de baixa de qualidade de água e mortandade de peixes.
ConJur — E o mapeamento destes pontos críticos?
Daniel Martini — Recentemente, mandei fazer, com o apoio da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental [Abes], uma medição em 44 pontos dos rios do Sinos e Paranhana. Esta coleta vai me dar um perfil destes rios. É um trabalho inédito, que vai nos dizer quanto cada município contribui com seus lançamentos, no âmbito do seu território, para a piora das condições dos rios. Com este dado, poderemos chamar o prefeito e cobrar medidas saneadoras, embasado em dados técnicos precisos, medidos.
ConJur — De início, o MP vai propor a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou entrará com uma ação de responsabilidade civil na Justiça, por danos ambientais?
Daniel Martini — O Ministério Público sempre busca soluções consensuais. Em junho, participei de uma reunião do Consórcio Pró-Sinos [que recebe recursos para obras do PAC 2 para saneamento básico], que engloba 25 municípios da bacia do Sinos. Neste encontro, discutimos um plano estratégico que, dentre outras medidas, envolve duas linhas básicas. Uma delas é a elaboração dos planos municipais de saneamento básico até dezembro de 2012. E a outra medida é que todos os municípios devem vistoriar suas casas e prédios até metade do ano de 2012, para apurar se as soluções de esgoto estão regulares. Isto significa vistoriar residência e indústrias, que também têm esgotamento sanitário.
ConJur — E quais são os critérios para considerá-las regulares?
Daniel Martini — É preciso apurar se as economias se ligam, de fato, à rede coletora implantada pela municipalidade, onde existente. Existem muitas residências e estabelecimentos comerciais que não se ligam à rede coletora apenas para não pagar a tarifa da prefeitura. E onde não houver rede coletora — proposta já aceita pelos municípios, faltando acertar apenas o cronograma —, as prefeituras darão um prazo para os moradores se adequarem às regras. Junto com as companhias de saneamento, as prefeituras farão, primeiro, uma orientação; depois, uma notificação, ao morador ou responsável, para que construa o sistema alternativo de esgotamento sanitário. Este sistema existe, é técnico e tem uma eficiência comprovada de até 80%. Portanto, quase semelhante à eficiência de uma estação de tratamento de esgoto de uma companhia pública de saneamento. Este sistema individual é composto por um tanque séptico, por um filtro e, depois, por um sumidouro — ou até por um curso d’água ou uma rede pluvial. E sem problema algum, porque neste ponto o esgoto já estará previamente tratado. Alternativas existem. Então, é uma solução negociada com os municípios. O nosso primeiro norte é a solução negociada. O procurador-geral do MP Estadual, Eduardo de Lima Veiga, solicitou que este trabalho fosse estendido aos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Nós entendemos que estas duas medidas podem contribuir para a melhoria do saneamento no estado, com reflexos na preservação ambiental, sobretudo na qualidade da água, e na saúde da população.
ConJur — E quanto ao enquadramento dos crimes?
Daniel Martini — A legislação que estabelece penas para as transgressões ambientais foi sancionada pela Presidência da República em 1998. É a Lei 9.605, também chamada de Lei dos Crimes Ambientais, que estabelece diversos tipos penais. Esta lei estabeleceu, no artigo 54, o crime de poluição ambiental, que prevê pena de reclusão, podendo variar de um a cinco anos de prisão. Este artigo é o que possibilita às autoridades efetuarem a prisão em flagrante por crime ambiental. A referida lei também estabeleceu diversos outros crimes ambientais, como no artigo 60, que é fazer funcionar atividade potencialmente poluidora — não necessariamente poluidora —, sem licença ambiental, ou contrariando os termos da licença ambiental. Na maioria das nossas vistorias, nós constatamos o crime previsto artigo 54 ou o previsto no artigo 60. Ou ainda o crime do artigo 56, que diz respeito aos resíduos sólidos que, quando perigosos ou tóxicos e depositados irregularmente, pune gravemente o infrator. Este artigo criminaliza aqueles infratores que jogam resíduos tóxicos no solo ou em locais inadequados, contrariando as normas técnicas que dispõem sobre o seu descarte e/ou armazenamento — para evitar o risco e a disseminação da contaminação. Em geral, a Leis dos Crimes Ambientais estabelece não só crimes de danos efetivos, consumados, mas, sim, crimes de perigo ou possibilidade de dano ao meio ambiente. A forma negligente como certos empresários dirigem suas indústrias é inaceitável, por temerária, aos olhos da Lei dos Crimes Ambientais, pelos artigos citados. Sendo temerárias, as condutas podem ser criminalizadas. Quando é o caso de um crime apenado com reclusão, pode ocorrer a prisão em flagrante. Já os crimes de menor potencial ofensivo, com previsão de até dois anos de pena privativa de liberdade, o infrator é conduzido até a Delegacia de Polícia Ambiental para assinar um Termo de Compromisso. Ele terá comparecer algumas vezes ao MP e ao Poder Judiciário para responder a um Termo Circunstanciado, que é um inquérito policial para crimes menores.
ConJur — Aqueles que foram presos já estão soltos? Vão remediar os danos ambientais?
Daniel Martini — Nosso primeiro objetivo, ao fazer as vistorias, é regularizar a ocorrência do dano ambiental, cessar o crime. Chegamos ao local e determinamos a imediata correção do problema. Se não for possível a correção imediata, o promotor de Justiça da comarca, ou o próprio promotor regional, chama a empresa para regularizar a situação, por meio da assinatura de um TAC. Evidentemente, se o empresário não aceitar a regularização, o Ministério Público lançará mão da ação judicial, com pedido de liminar, para fazer cessar o dano. O segundo aspecto é a autuação criminal. Nós tivemos um caso em que determinado empresário ficou detido por uma semana no Presídio Central de Porto Alegre. Este caso foi exceção. Em geral, os investigados/flagrados são liberados e passam a gozar de liberdade provisória. A pessoa vai responder ao processo criminal em liberdade, já que o crime ambiental não prevê penas elevadas, como nos crimes hediondos e de tráfico de drogas. Como são penas leves, a regra diz que o acusado deve responder ao processo em liberdade. O fato de o preso receber a liberdade provisória — dois, três dias, às vezes, uma semana após ser detido — não significa que estará livre do processo criminal. Aliás, a Lei dos Crimes Ambientais tem uma coisa curiosa: é condição para a pessoa receber os benefícios, as medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95, a correção do dano ambiental. Então, isto dá um poder de barganha ainda maior — e nós estamos nos valendo disso. Se o empresário resolve o problema de forma imediata, ele passa a ter direito a um benefício, no aspecto criminal. Este benefício pode ser a transação penal ou a suspensão condicional do processo, naquelas hipóteses em que estes benefícios se enquadram nos diversos crimes. De dezembro de 2010 para cá, nós efetuamos 25 prisões em flagrante, dentre as quais a de um secretário municipal de Meio Ambiente. Também conduzimos à Delegacia do Meio Ambiente dois secretários de Meio Ambiente, que estão respondendo ao Termo Circunstanciado.
ConJur — No caso destes dois secretários, de que crimes foram acusados?
Daniel Martini — Não foram acusados somente de crimes omissivos puros, mas comissivos por omissão. Significa dizer que eles tinham a obrigação de fazer, o dever jurídico de agir, para evitar aquele resultado, e pouco ou nada fizeram. Por exemplo: o secretário municipal responsável pelo aterro sanitário tinha a obrigação de adotar medidas para evitar a poluição, e não o fez. Portanto, não é um crime só de omissão, mas comissivo por omissão. Simplesmente, não adotou as medidas jurídicas adequadas para evitar o dano, a que estava obrigado. Inclusive, eu e a delegada de Polícia fomos à sede da Prefeitura procurar o prefeito — ele não se encontrava —, porque entendemos que poderia ter responsabilidade. Nós queríamos ouvi-lo sobre as providências tomadas. Ele também poderia receber voz de prisão, caso entendêssemos que teve uma conduta omissiva. Mas encontramos o secretário municipal, que foi preso em flagrante e, hoje, responde ao inquérito policial, junto com o prefeito. A atitude que tomamos foi impactante, forte. Hoje, os maus empresários, os maus administradores do Vale dos Sinos — aqueles que poluem, são negligentes — não devem estar dormindo sossegados. Eles estão cientes, e a imprensa está aí para lembrá-los, de que, a qualquer momento, a força-tarefa ambiental pode bater na sua empresa. Ao chegar no local, se a força-tarefa constatar o dano, poderá conduzi-lo preso à delegacia de Polícia, por flagrante delito, e depois ao presídio. E eu gostaria de destacar que as nossas vistorias são semanais no estado do Rio Grande do Sul, seja no Vale do Sinos, no Vale do Gravataí, ou mesmo fora destas áreas.
ConJur — Em que outros locais?
Daniel Martini — Há pouco, prestamos apoio à promotora de Justiça de Farroupilha, Jeanine Mocellin, que nos acompanhou numa vistoria a duas empresas. Constatamos irregularidades e conduzimos os responsáveis à delegacia. E atenção: não é uma vistoria superficial; é contundente, feita a partir de critérios técnicos. Eu acompanho pessoalmente estas visitas, muitas vezes junto com o promotor de Justiça de cada comarca, além dos técnicos da nossa força-tarefa.
ConJur — Os promotores do MP têm permissão para adentrar e circular nas empresas livremente, para fazer a inspeção?
Daniel Martini — Sem dúvidas. A lei nos garante o livre acesso aos pontos de interesse de nossa investigação, para a vistoria. Evidentemente, nós preservamos ao máximo as garantias constitucionais das pessoas — a questão do acesso ao seu domicílio, por exemplo. Quando necessário, nós pedimos à Justiça um mandado de busca e apreensão.
ConJur — As empresas são obrigadas a permitir o acesso às plantas-baixas das obras de engenharia industrial ou do organograma da fábrica, a fim de facilitar o trabalho da força-tarefa?
Daniel Martini — Normalmente, nós já chegamos munidos dos documentos de que necessitamos. O Ministério Público tem acesso aos documentos no órgão de fiscalização, podendo acessar a qualquer momento, por exemplo, a licença de operação concedida pela Fepam, que também nos disponibiliza as planilhas de automonitoramento de efluentes das empresas. O MP também está dentro da junta comercial, de maneira que podemos solicitar o contrato social das empresas, tudo previamente. O sistema policial nos indica o nome, fotografia, a placa do carro ou até se o investigado possui arma.
ConJur — Muito se fala em poluição da água. E os solos? Estão muito contaminados no Vale do Sinos?
Daniel Martini — A poluição do solo sempre esteve ligada, no Vale do Sinos, aos curtumes. No passado, era prática comum as empresas enterrarem os seus resíduos, o chamado couro wet blue, que contém cromo na forma trivalente. Este elemento químico, em contato com o calor do solo, se transforma facilmente em cromo hexavalente, que é cancerígeno. Até pela ausência de regulamentação, era comum se enterrar estes resíduos industriais. A partir da ação da nossa força-tarefa nos curtumes instalados no Vale do Sinos, começou a melhorar o diálogo com os empresários do setor. Depois da terceira vistoria, com prisões em flagrante, fomos procurados, em boa hora, pelos dirigentes da Associação das Indústrias de Curtume do Rio Grande do Sul [AICSul]. Com eles, produzi um acordo muito interessante em fevereiro de 2011, e faço aqui uma referência especial a Moacir Berger, que é o diretor-executivo da entidade. Pelo acordo, a entidade se comprometeu a orientar e estimular todos os seus associados a fazerem uma análise dos seus solos, para apurar a natureza e o nível de contaminação, dentre outras medidas ambientais. Se for confirmada a contaminação do local, o empresário deve elaborar o Projeto de Recuperação de Área Degradada (Prad). Nós queremos que todo o setor realize a análise de solo, independentemente da assinatura de TACs ou de outros acordos feitos entre o MP e as indústrias. Aliás, hoje, em cada empresa vistoriada, temos o cuidado de avaliar a sanidade do solo. Ao menor indício de que aquele solo possa estar contaminado, nós exigimos da empresa a avaliação do local e a execução do Prad.
ConJur — Para se chegar a indícios de contaminação no solo ou na água, com um mínimo grau desta possibilidade, é preciso ter instrumentos de verificação. Além de técnicos, a força-tarefa ambiental tem aparato tecnológico?
Daniel Martini — Estamos nos instrumentalizando a cada dia que passa. Aliás, o Ministério Público está adquirindo um laboratório portátil, que não existe no estado, para análise de efluente líquido. Custa em torno de R$ 20, 25 mil. Eu coloco este laboratório móvel em uma camioneta e me dirijo até à empresa, para verificar a eventual poluição no seu efluente. Pela primeira vez, será possível um diagnóstico deste tipo in loco e no momento, ou seja, de forma instantânea. Hoje, coletamos a amostra do efluente e mandamos para análise do laboratório. Com este novo laboratório, posso identificar na hora o nível de poluição e a correção do problema. Com isso, vamos ganhar muito em agilidade e em qualidade. O Ministério Público também apresentou um projeto ao Fundo Nacional dos Direitos Difusos para adquirir equipamento semelhante, mas que analise o solo contaminado. Este equipamento é mais complexo e, logicamente, muito mais caro. Custa em torno de R$ 120 mil, sendo que o MP dará a contrapartida de 20%. Caso este projeto seja contemplado, o MP-RS passará a contar com dois equipamentos que permitirão fechar o cerco aos poluidores, tanto da água quanto do solo.
ConJur — Além de pleitear recursos do Fundo Nacional do Direitos Difusos, o Planejamento Estratégico do MP-RS estimula ou prevê a captação de recursos de outras fontes, extraorçamento?
Daniel Martini — Sim, buscamos sempre parceria. Nos TACs que envolvem pagamento de valores, direcionamos estes recursos para a compra de equipamentos para a Patram, por exemplo, já que, por vedação legal, o MP não pode ser o beneficiário direto. Recentemente, firmamos um TAC com uma empresa do Vale do Sinos, em que esta se comprometeu não só a recuperar o dano causado como indenizar por outro dano não passível de recuperação in natura e in situ [nas condições locais inerentes da natureza]. O valor da indenização foi estipulado em R$ 23,1 mil. Dirigi este valor para uma entidade de proteção ao meio ambiente na região, que irá adquirir equipamentos para melhorar a fiscalização ambiental. Bem, eu tenho outra conta para cobrar, que se refere à mortandade de 16 toneladas de peixes ocorrida no Rio dos Sinos em 1º dezembro do ano passado. Esta conta importa em R$ 1 milhão. Ela ainda não foi cobrada dos responsáveis por um motivo muito simples: falta a medição dos 44 pontos nos rios do Sinos e Paranhana, como me referi anteriormente. Grande parte da responsabilidade pelo nível de poluição que será apurado vai para a conta dos municípios que não tratam seus esgotos. E para cobrar esta conta, é preciso apurar com precisão quanto cada um contribui para a poluição. A análise técnica me dará este perfil com muita clareza. A única coisa que eu fiz, até o momento, foi exigir medidas para que duas empresas corrigissem o problema — e ele foi corrigido. Uma das empresas fez um investimento na sua estação de tratamento de efluentes da ordem de R$ 2,5 milhões. Esta empresa produz uma grande carga de efluentes, que entra pelo Paranhana e chega no Sinos. Nossa primeira preocupação foi estancar a fonte poluidora.
ConJur — Estas ações não criam uma clima terror, já que toda a atividade industrial é potencialmente poluidora?
Daniel Martini — Não é um regime de terror, longe disso. Em primeiro lugar, isto mostra que o Ministério Público está cumprindo o seu papel. Por atribuição constitucional, ele não poderá deixar de fazê-lo. O MP comparece nos pontos críticos de poluição e costura soluções para cessar os danos ambientais. Aqueles empresários que, porventura, tiverem alguma irregularidade em suas fábricas, devem saber que precisam se adequar. Aliás, os empresários podem procurar o Ministério Público e solicitar prazo para proceder às correções em suas plantas industriais, pois estamos abertos ao diálogo. E aqui dou outra informação que mostra, taxativamente, que o MP busca a conciliação: não entramos com nenhum processo na Justiça até hoje, no âmbito da Promotoria Regional. Ou seja, não estamos agregando custo para as empresas ou para o Poder Público com o nosso trabalho; pelo contrário, estamos fazendo uma conciliação na origem, evitando que o caso se transforme num processo judicial.
ConJur — Os empresários, em geral, aceitam a mão estendida? Têm a percepção de que estas ações visam à melhoria do meio ambiente?
Daniel Martini — Existe o bom e o mau empresário, assim como o bom e o mau cidadão, no que se refere ao cumprimento das leis. O bom empresário está aplaudindo as ações fortes da força-tarefa do Ministério Público. Em duas ocasiões — uma na sede da Federação das Indústrias (Fiergs) e outra na AICSul —, ouvi de importantes empresários e lideranças do setor sonoros aplausos à atuação do MP. Hoje, o empresário que trabalha bem recebe uma concorrência desleal daquele que polui, que não integraliza os custos do cuidado com o meio ambiente. Aliás, as leis de proteção ambiental, as ações do MP e a necessidade do empresário em conseguir uma boa reputação para seus produtos irão redesenhar o mercado. Serão premiados os que tiverem conduta mais adequada com a proteção ambiental. Os que não respeitarem o meio ambiente, embora num primeiro momento se beneficiem do menor custo de produção, acabarão sucumbindo ao longo do tempo. Se o consumidor não eliminar os poluidores, os passivos — multas e indenizações — se encarregarão deste triste desfecho.
ConJur — Embora a disposição conciliatória, o senhor concorda que o MP impõe um certo temor nas pessoas?
Daniel Martini — De certo modo, é verdade. Isto tem um lado positivo: o MP é um dissuasor natural de más condutas. Quando o Ministério Público senta para negociar com uma empresa, é porque esta já está em desvantagem, por ter cometido alguma violação da legislação ambiental. A nenhuma empresa mais serve, hoje em dia, ser demandada judicialmente, ser reconhecida ou ter o seu nome vinculado com problemas ambientais. Então, as empresas, hoje, querem soluções consensuais. Ora, o Ministério Público também busca soluções consensuais. O nosso último encaminhamento é a Justiça. A judicialização não interessa e não serve a ninguém. Então, ao mesmo tempo que o MP usa seu poder de coerção, sempre deixa a porta aberta para uma solução amigável. E por que isto? Porque quando as partes produzem uma solução de comum acordo, elas se comprometem com o sucesso desta solução, diferentemente de quando é imposta, seja pelo Ministério Público, seja por uma decisão judicial. Às vezes, esta conciliação prescinde de atos burocráticos, podendo ser feita de forma verbal. Chamo os responsáveis, aponto-lhes os erros e cobro providências, no próprio local dos fatos. Tempos depois, vou ao local verificar as providências. Se não fizeram como deveriam fazer, aí, sim, lanço mão, formalmente, de um TAC. Se a melhoria foi feita e o problema sanado, tudo estará resolvido, sem gastar uma folha de papel. Nossa disposição é resolver o problema com o menor custo possível para o Estado, para o contribuinte e para o empresário.
ConJur — Para encerrar: o projeto do novo Código Florestal, aprovado há pouco pela Câmara dos Deputados e aguardando votação no Senado, determinará mudanças na atuação da Promotoria Regional de Defesa do Meio Ambiente?
Daniel Martini — O Ministério Público tem sido um protagonista forte na área legislativa, acompanhando de perto a tramitação desta matéria. Acredito, sinceramente, que o projeto de lei será alterado no Senado ou que não será sancionado pela presidente da República tal como foi aprovado na Câmara. Eu gostaria de citar um dado curioso. O deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) abre o seu projeto substitutivo — ou o que restou dele, que foi melhorado pelo Plenário — com a seguinte frase: ‘‘dedicado aos produtores rurais’’. O que eu quero dizer é que ninguém, neste país, é contra a produção alimentos. Agora, um debate sobre projeto de lei, que vai impactar a vida de todos, não pode ser dedicado exclusivamente a um setor, no caso, ao agronegócio. Tem de ser um projeto discutido com toda a sociedade, porque ela é a destinatária das mudanças. Há um estudo da USP que diz o seguinte: mesmo com a atual lei (Código Florestal de 1965), o Brasil dispõe de mais de 100 milhões de hectares de terras sem proteção legal. Isto quer dizer que nós temos um oitavo do território nacional [todo o território tem 800 milhões de hectares] não protegido pela atual lei. Logo, isto me comprova que é uma falácia o que grita a bancada ruralista do Congresso, de que a não-aprovação do substitutivo do deputado Aldo Rebelo irá afetar negativamente a produção de alimentos. Aliás, não sei por que interesses a bancada ruralista se move. Temos dados e fundamentos para contestá-los. Ora, se nós temos 100 milhões de hectares de terras não-protegidas, significa que existe esta possibilidade de expansão da fronteira agrícola.
ConJur — Se houver um recrudescimento na legislação, as pequenas propriedades vão sofrer muito...
Daniel Martini — De fato. Eu não tenho dúvida de que precisa haver um tratamento jurídico diferenciado para as pequenas propriedades, sobretudo para aquelas que praticam a agricultura familiar. O Ministério Público do Rio Grande do Sul, por exemplo, já faz esta diferenciação, com um projeto sobre a recuperação da mata ciliar dos corredores ecológicos. Agora, o problema é que a Emenda Substitutiva Global de Plenário 186, que foi aprovada, logo depois alterada pela Emenda 164, não faz distinção entre pequena propriedade e a propriedade que desenvolve agricultura familiar, o que é um erro. Mais do que isso: diz que pequena propriedade é aquela com até quatro módulos fiscais, que na Amazônia pode chegar a 400 hectares. Significa dizer que, na Amazônia, em 400 hectares, pode haver o corte raso na vegetação, sem precisar recuperar a área de Reserva Legal. Será que é isso que nós queremos? Será disso que precisamos? Veja o caso do Rio Grande do Sul. Aqui, o Módulo Fiscal, em média, tem 20 hectares. Pelo que foi aprovado no Congresso, a dispensa para averbar a Reserva Legal vale para propriedades com até 80 hectares no estado. Eu me pergunto: quantas propriedades da Serra gaúcha têm este tamanho? Nenhum. Ora, a lei está acabando com a reserva florestal na Serra, por exemplo. Tomara que a presidente Dilma Rousseff vete o projeto, se ele for aprovado no Senado, pois, como está, é um retrocesso na proteção do meio ambiente no Brasil. O projeto carrega em si um vício de inconstitucionalidade. É que decorre de nossa Constituição o princípio da proibição do retrocesso ambiental. Traduzindo: a lei proíbe que a proteção ao meio ambiente, ou aos direitos fundamentais sociais, tenha uma diminuição de proteção neste país. Portanto, da forma como se encontra, o projeto de Código Florestal é inconstitucional.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 24 de julho de 2011
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