segunda-feira, 18 de julho de 2011

NOVAS MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO PENAL (FINAL)

A proliferação das leis no sistema criminal brasileiro, nelas compreendidos os diplomas sobre a execução penal, tem revitalizado o sentimento de anomia - diversamente do significado próprio deste vocábulo. Não se trata mais de considerar esse fenômeno como a falta de esperança do cidadão em ver a realização de certos valores e instituições como o Direito, a Justiça e os órgãos e serviços fundamentais para a sua efetivação. Trata-se, é bem de ver, de algo muito mais grave e danoso para os objetivos do Estado Democrático de Direito. A anomia se especializou e agora está alcançando grande parte dos estudiosos e profissionais que têm o dever ético e funcional de trabalhar para que o Direito e a Justiça sejam materializados em ações concretas, para muito além das proclamações otimistas produzidas pela cultura massificadora de uma grande legião de novas disposições penais, processuais e de execução penal.   
          Tenho a segura convicção de que advogados, membros do Ministério Público e da Polícia Judiciária, magistrados e professores de Direito estão, em sua imensa maioria, sofrendo os efeitos perversos da hiperinflação legislativa provocada pelos novos cristãos dos templos incensados do Ministério da Justiça e do Congresso Nacional. Uns e outros que pretendem recuperar as multidões da descrença estão, dia e noite - noite e dia - a forjar novas tentativas para reverter o quadro já avançado de anemia das convicções jurídicas. 
          A nova sistemática das medidas cautelares no processo penal é um exemplo marcante do que estamos afirmando.  É certo que várias alternativas propostas pela nova legislação já estavam previstas no ordenamento alterado, algumas com esta mesma natureza e outras instituídas como pena criminal. Mas nenhuma delas havia alcançado a expressão que lhes dá a Lei nº 12.403/2011, com feição autenticamente cautelar, vale dizer, como providência de resgate institucional que, efetivamente, assegure ao processo criminal os meios de privação ou restrição da liberdade que não podem ser mantidos como espécies inominadas de condenação antecipada. Nesse sentido, é providencial a regra agora expressamente declarada de que as medidas não assumem caráter de imposição penal prévia.     
          A prisão provisória (temporária ou preventiva) não é mais admitida quando o fato delituoso não contém uma carga de dano social relevante, considerado pela quantidade da pena de reclusão. E assim o é porque tais modalidades de privação da liberdade somente se justificam quando forem insuficientes as iniciativas de cautelas que podem ser cumpridas em liberdade ou quando o destinatário destas revelar descumprimento injustificável. O caráter excepcional da prisão preventiva demonstra que o legislador processual atendeu ao princípio clássico de que a sanção detentiva é a ultima ratio para o combate da criminalidade quando as outras providências mostrarem tibieza ou frustração.
          A fiança, com valores mais adequados à realidade econômico-financeira do réu e à regularidade de sua aplicação, está superando dois gravíssimos inconvenientes que tornavam letra morta a sua cominação. Além dos minguados valores previstos, o então parágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal admitia a revogação da prisão em flagrante quando não se caracterizasse nenhuma das hipóteses legais da prisão preventiva. E, por comodismo funcional ou outra circunstância também lamentável, a excepcionalidade da pobreza do réu era transformada em regra geral de leniência.  
          O recolhimento domiciliar, previsto como sanção penal em caso de crime ambiental ou como forma de execução para certos condenados (homens ou mulheres), tem contornos bem mais apropriados às medidas cautelares porque traz, em seu âmago, um antídoto contra as usinas de prescrição, que um pensamento deformado pretende debitar aos meios e recursos de defesa que a Constituição garante a todo e qualquer acusado. Realmente, o monitoramento eletrônico; a suspensão do exercício de profissão, atividade econômica ou função pública; a suspensão das atividades de pessoa jurídica; a proibição de frequentar determinados lugares; a suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor, embarcação ou aeronave; o afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima e a proibição de ausentar-se da comarca ou do País, constituem fatos sociais e jurídicos de grande importância. Dentro dessa perspectiva são, também, arrolados: o comparecimento periódico em juízo (antes utilizado como forma de execução da pena); a proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada; a suspensão do registro de arma de fogo e da autorização para porte; a suspensão do poder familiar; o bloqueio de endereço eletrônico na internet e a liberdade provisória. Além de se reconhecer a natureza e a missão instrumental do processo criminal para a restauração do evento delituoso e para a aplicação correta da lei penal - condenando ou absolvendo o acusado - a aplicação e a manutenção dessas medidas contribuirá decisivamente para que as pautas das audiências e dos julgamentos possam atender à exigência-garantia da razoável duração do processo. Tais mecanismos vêm completar o princípio constitucional que, na mesma disposição textual, alude aos meios que garantam a sua efetividade.      
          O novo art. 533 do Código de Processo Penal, ao disciplinar as antigas e as  novas modalidades pessoais de cautela, somente permitidas quando ao fato for cominada a reclusão ou a detenção (para os delitos) e a prisão simples (para as contravenções), como determina o novo art. 534 do CPP, está revelando um momento de grandes mudanças orgânicas e culturais do sistema. É fundamental que os organizadores e os docentes dos cursos regulares de Direito, dos cursos de especialização ou de atualização profissional e as escolas da Magistratura, de Advocacia, do Ministério Público e congêneres conscientizem-se de que a sua missão não se esgota na transmissão do conhecimento jurídico. Ela vai muito além, porque de suas turmas sairão os profissionais que têm o dever institucional de aplicar o Direito Penal para uma dimensão maior do que o preenchimento de boletins estatísticos para metas pré-falidas como a chamada "meta 2" - que, de meta, só tinha o nome. E que uma boa porção da massa falida alimentará as inúmeras ações rescisórias e as apelações ou revisões criminais para combater os erros judiciários praticados pelos malsinados mutirões da magistratura e do Ministério Público.  
          Mas essa responsabilidade não se projeta para o futuro quando o diploma ou o certificado oferecem a presunção do conhecimento da lei e a ciência e arte para aplicá-la. Ela é atual e envolve os estagiários de todas as carreiras.    
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René Ariel Dotti, advogado e professor titular de Direito Penal da UFPR, é detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007)

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