sexta-feira, 12 de junho de 2009

Artigo: Da banalização do processo legislativo penal

O Código Penal brasileiro, até boa parte do século passado, continha um número determinado de figuras criminosas que expressavam, de modo significativo, o adequado exercício do poder punitivo estatal. Eram tipos penais que procuravam retratar condutas humanas capazes de lesar — por ação ou por omissão e de forma gravosa — bens jurídicos considerados de relevância exponencial, e de cominar para tais condutas sanções penais razoavelmente equilibradas. As duas décadas finais do século XX e os anos iniciais do século XXI puseram em xeque a necessária e indispensável estabilidade da tipologia constante do Código Penal. Um processo contínuo e desenfreado de descodificação tomou corpo no ordenamento penal que adquiriu uma realidade incontroversa, seja pela transformação econômica produzida pela globalização, que exige a elasticidade do comando penal para efeito de controlar a exclusão social em crescente progressão geométrica; seja pela adoção, por pressão interna ou externa, da ideia da prevenção, que legitima a tipificação de comportamentos lesivos à ideia-matriz do bem jurídico, bem como de ações perigosas, as quais não raro atingem às raias da pura abstração; seja pela importação de figuras criminosas ou de institutos penais que não se acomodam à tradição penalística brasileira; seja, por fim, pela força dos meios de comunicação social, acionados por oportunismo político ou pelo contágio do medo infundido na população. O aumento desordenado de leis penais especiais em número que supera o elenco de tipos codificados; a formulação de novas tipologias ou a reformulação das já existentes, com o emprego de redação desarticulada, obscura ou porosa; a frequente superposição de figuras criminais; o desequilíbrio na ordem axiológica dos bens jurídicos a serem tutelados — a propriedade vale mais do que a vida ou a liberdade — e a desabalada exacerbação punitiva põem por terra a viabilidade de um sistema penal minimamente codificado, quer no que tange à arquitetura tipológica, quer no que se refere à simetria das penas.

Não cabe, nos limites de um editorial, pormenorizar o substrato fático da transparente banalização do processo legislativo penal nos últimos decênios. Basta que se acresça ao monturo de leis penais em vigor a que acabou de ser sancionada pelo Presidente da República, apesar da manifestação em contrário do Ministério da Justiça, a saber, a lei que criou o crime do “sequestro relâmpago”. Tal formatação legislativa é um modelo preciso do que se poderia denominar de atipia. Antes de mais nada porque desobedece claramente a melhor técnica de composição típica. Há uma notória pobreza na descrição da conduta a ser incriminada. Todo constranger traz ínsito a ideia de tolher a liberdade de alguém e, “se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima”, o novo § 3º do art. 158 do Código Penal não acrescenta mais nada ao caput do tipo básico; e, se “essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica”, o legislador repetiu com outras palavras o que já consta da cabeça do artigo 158, isto é, que o agente deve atuar com o “intuito de obter... vantagem econômica” que necessariamente se mostra “indevida”. Destarte, o primoroso § 3º do art. 158 do Código Penal é a consagração do nada tipológico, embora se comine para esse nada pena variável entre seis e doze anos de reclusão! A pena privativa de liberdade, prevista no caprichado § 3º do art. 158 do Código Penal, revela-se desproporcionada em relação a outros fatos criminosos protetores de bens jurídicos bem mais valiosos, valendo ressaltar que o mínimo punitivo de seis anos é cominado também para a hipótese de homicídio simples e é triplamente superior à pena mínima proposta para o caso de lesão corporal gravíssima, em que haja perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade permanente. Mas, ainda que se dê de barato que o precioso § 3º do art. 158 do Código Penal contenha adequada descrição típica, é inquestionável a presença de uma dualidade de tipos uma vez que o inciso V do § 2º do art. 157 do Código Penal já cuidava da mesma matéria, e a lei recentemente publicada não o revogou. Mas não param aqui os disparates do legislador penal. O aparatoso § 3º do art. 158 do Código Penal dá margem, no mesmo espaço tipológico, a uma verdadeira originalidade de técnica legislativa: a extorsão e o sequestro relâmpago qualificados pelo resultado. A extorsão qualificada tem seu preceito sancionatório aderido ao § 3º do art. 157 do Código Penal; o sequestro relâmpago faz direta remissão ao art. 159 do Código Penal. Destarte, se da conduta posta em prática resultar para a vítima do sequestro relâmpago lesão corporal grave, a pena reclusiva será de dezesseis a vinte e quatro anos, e se resultar a morte, será de vinte e quatro a trinta anos, cominando-se para tal modalidade criminosa as mais graves penas de todo o ordenamento punitivo, bem superiores às da extorsão qualificada. Faz-se, assim, ostensivamente um paralelismo entre o sequestro que, por ser “relâmpago”, deve ser de curta duração, sendo portanto efêmero, e a extorsão mediante sequestro que, por sua característica de privar de modo permanente a liberdade ambulatorial da vítima, não equivale à conduta restritiva dessa liberdade.

O formidável § 3º, incluído no art. 158 do Código Penal pela Lei n. 11.923, de 17 de abril de 2009, sancionada pelo Presidente da República, servirá apenas para aumentar a barafunda penal brasileira. Teria sido bem melhor que, em lugar de atender aos reclamos gritantes e clamorosos dos meios de comunicação social e à espetaculização do crime , o Sr. Presidente da República não fizesse ouvidos moucos às sensatas ponderações feitas pelo Ministério da Justiça para veto do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional.


EDITORIAL: da banalização do processo legislativo penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 1, maio 2009.

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