terça-feira, 7 de abril de 2009

Artigo: Trotes violentos: retrocesso civilizatório

Os famosos trotes de recepção dos calouros nas faculdades ou nas academias militares estão se tornando cada vez mais polêmicos e reprováveis, em razão dos inomináveis abusos. O que temos visto, ultimamente, são selvagerias indescritíveis, que revelam total menosprezo pelo ser humano e pelo próximo.

Alguns trotes, ultimamente, estão longe de ser catalogados como atos civilizados. Retratam grave retrocesso civilizatório, cada vez mais ilimitado. Atos agressivos gratuitos, praticados por força de uma tradição aberrante, que não contam com justificação alguma.

Violência inútil, que nada constroi. Não transmitem nenhuma mensagem positiva, salvo quando se trata de trote solidário. A mesma violência que vivenciam nos jogos virtuais nos computadores ou nos programas (quase todos) de televisão, acaba sendo protagonizada pelos alunos antigos contra os calouros.

Depois de tanta estupidez, seja nos trotes escolares ou universitários, seja nos trotes militares, agora já se começa a falar em trote sustentável, trote solidário. A sociedade tem que reagir.

A universidade tem que protestar. As autoridades têm que atuar e aplicar a lei. Não podemos aceitar ou estimular as bestialidades, sobretudo as intencionais, visto que nada agregam de positivo para o crescimento e desenvolvimento humanos.

As cenas dos últimos tempos (embriaguez e coma de um calouro, que foi amarrado a um posto e torturado, obrigação de comer fezes etc.) são revoltantes. Caso não haja uma firme intervenção policial, muitas mortes, como aquela na Faculdade de Medicina na USP, acontecerão.

Do ponto de vista jurídico, o que está em jogo é o princípio da adequação social (e, em certo sentido, o do consentimento da vítima). Mas claro que não é socialmente adequado o trote violento, agressivo e humilhante.

Os jovens universitários e os militares devem ser convencidos de que não estão num território sem lei, de que nosso Estado democrático que se funda no respeito à dignidade humana não está em eclipse. Não existe imunidade para a violência gratuita, não devidamente justificada.

A pretexto de se praticar uma diversão, as vítimas dos trotes são submetidas a humilhações e agressões abomináveis. Não é o caso de se afirmar que os jovens de hoje não possuem valores. Não é isso.

Muitos deles, que aparecem como algozes, têm plena consciência dos valores essenciais para a convivência humana. O que ocorre é que, de repente, eles se concedem uma licença para agredir, para humilhar etc. É com isso que não podemos concordar.

Trotes violentos e humilhantes não respeitam as regras da civilização. Fogem da obediência à norma e ao direito. A absoluta necessidade de intervenção do poder público se faz imperiosa para que volte a preponderar o direito e o bom senso, o respeito ao próximo, a obediência às regras mínimas de convivência social.

A impunidade, inclusive nesse caso, gera a sensação de um país sem limites, de um país sem leis. Não existe trote (pela tradição que temos visto) que não seja realizado em local público. Aí o domínio é da polícia.

Os clássicos valores transmitidos pelo Iluminismo do século XVIII - respeito ao ser humano, individualismo, respeito à lei, à dignidade, liberdade, fraternidade, igualdade etc. -, que formam a base do nosso Estado democrático de direito, não podem sucumbir diante das atrocidades dos que acham que tudo podem (ainda que em alguns momentos determinados). Nosso modelo de Estado de direito não está em eclipse.

O valor do ser humano, para a compreensão do mundo (visão antropocêntrica), não foi eliminado. Os responsáveis pela barbárie que é inerente aos "modernos" trotes não podem se julgar acima da lei.

Os trotes violentos e humilhantes têm que acabar, porque denotam aberrante irracionalidade - ou seja: não conduzem a nada de positivo em termos de progressos civilizatórios.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito penal pela Universidade de Madri e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 06/04/2009.

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