segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Tragédia une mães de mortos por policiais: 'Eles acham que a gente não tem voz'

Maria de Fátima dos Santos Silva

Somente há uma semana Maria de Fátima conseguiu falar sobre a morte do filho na Rocinha em 2012
"Cheguei na hora. Vi direitinho. O policial da UPP já em posição de atirar. Foi quando puxei meu filho pela camiseta, no meio da gritaria. Ele (o policial) atirou, mas quem morreu foi o filho da minha amiga", conta Fátima dos Santos Pinho de Menezes, de 40 anos, ao lado amiga Ana Paula Gomes de Oliveira, de 37 anos, na comunidade de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Ambas moradoras da mesma favela, as duas mal se conheciam antes da tragédia ocorrida no dia 14 de maio desse ano, quando o menino Johnatha de Oliveira Lima morreu, aos 19 anos, baleado durante uma confusão entre policiais de UPP armados e crianças e adolescentes que atiravam pedras neles.
Agora, integram juntas o Fórum Social de Manguinhos, ONG local que advoga pelos direitos da comunidade, e têm comparecido a manifestações, marchas e reuniões de mães que perderam filhos em comunidades cariocas.
Fátima já havia perdido um filho, Paulo Roberto Pinho de Menezes, no dia 17 de outubro de 2013. Aos 18 anos, o garoto foi espancado até a morte e depois asfixiado.
Consultada pela BBC Brasil, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro respondeu sobre os três casos e disse que o policial responsável pelo disparo na ocorrência que acabou tirando a vida de Johnatha foi indiciado pelo crime de homicídio culposo (sem intenção de matar), e que segue trabalhando na UPP de Manguinhos enquanto aguarda julgamento.
Quanto ao caso de Paulo Roberto, cinco policiais da mesma UPP foram indiciados pelo crime de lesão corporal seguida de morte, e trabalham em outros batalhões enquanto aguardam julgamento.
"Hoje em dia os jovens de comunidade têm que provar o tempo todo que são produtivos, que não estão envolvidos com nada. É uma pressão constante, e há muito desrespeito, há muita injustiça", diz Ana Paula Gomes de Oliveira.

Conexão

Protesto de mães de vítimas de policiais em Manguinhos
Mulheres se uniram e promovem reuniões de mães de vítimas policiais nas comunidades do Rio
Embora esteja distante, na Rocinha, favela da Zona Sul do Rio, no outro lado da cidade, Maria de Fátima dos Santos Silva, de 55 anos, tem muito em comum com as duas amigas.
Ela também perdeu um filho, Hugo Leonardo dos Santos Silva, aos 32 anos, no dia 17 de abril de 2012, meses antes da instalação da UPP na comunidade.
Embora seu caso seja mais antigo, somente há uma semana ela conseguiu falar publicamente sobre sua história. "Foi lá em Manguinhos, durante uma manifestação. Conheci a Ana Paula e a Fátima. Elas me deram muita força. Foi uma vitória, pegar o microfone e contar, diante de todo mundo, a minha história. É bom a gente ver que não está sozinha", diz.
Sobre o caso, a Secretaria de Segurança Pública disse que a ocorrência foi registrada como homicídio decorrente de intervenção policial, que ocorreu antes da instalação da UPP da Rocinha, e que permanece sendo investigada.
Integrantes de grupos como o Fórum Social de Manguinhos, Mães Vítimas de Violência e a Rede de Movimentos e Comunidades Contra a Violência, as três tornam-se, aos poucos, ativistas nas redes sociais e agora dão força umas às outras.
As três mães contaram suas histórias de dor e perda à BBC Brasil para esta reportagem, parte de uma série especial sobre o tema da violência policial e contra policiais.
Os temas foram sugeridos pelos leitores da BBC Brasil nas redes sociais para nossa cobertura do tema de segurança pública no contexto das eleições presidenciais, de acordo com a proposta do projeto da BBC Brasil #SalaSocial, que pretende usar as redes sociais como fonte de histórias originais.
No início da semana, 
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um levantamento feito pela BBC Brasil mostrou que em 2013 foram registrados 1.259 homicídios cometidos por policiais e, ao mesmo tempo, 316 agentes da lei foram assassinados (dados de 22 Estados). 
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Outra reportagem mostrou que o tema da violência policial está ausente dos programas dos principais candidatos à Presidência, no que analistas atribuíram ao medo de perder o eleitorado mais conservador.


Duas netas de Maria de Fátima acompanharam com atenção a reportagem na Rocinha, sendo que Carolina era a mais falante. Em Manguinhos, Maria Paula e Alejandra corriam e brincavam enquanto as mães, respectivamente Ana Paula e Fátima, davam suas entrevistas.
Todas com menos de dez anos, presenciaram a emoção, choro, saudade, revolta e esperança da avó e das mães ao falarem sobre seus filhos mortos de forma violenta.
"Nós nos ajudamos, e queremos Justiça. Somos as vozes dos nossos filhos que se foram. Mas lutamos por elas também. Para que no futuro não seja uma delas conversando com um repórter. Para que tenham um futuro sem essa dor", diz Ana Paula.
Veja abaixo os principais trechos dos três depoimentos:

Maria de Fátima dos Santos Silva
"Agora sou a voz do meu filho", diz Maria de Fátima
"Eles vinham atrás dele, era sempre ele. Queriam que ele dissesse coisas, mas ele não sabia de nada. Na primeira vez, bateram muito. Entraram na casa dele e espancaram. Na segunda, levaram para a delegacia, e ele foi liberado. Na terceira eles conseguiram, mataram meu filho", conta a diarista Maria de Fátima dos Santos Silva, de 55 anos, moradora do Beco 199, na Rocinha.
Naquele dia 17 de abril de 2012, Hugo Leonardo dos Santos Silva descia as escadas de um beco estreito quando foi surpreendido por três PMs que ordenaram que ele levantasse as mãos. O rapaz de 32 anos estava em frente a uma creche, onde buscaria o sobrinho. Já com as mãos para o alto, andou na direção dos policiais, quando foi baleado no abdômen.
"Uma das minhas filhas ouviu. Nessa hora, os policiais discutiram entre si e um disse: 'Olha a merda que você fez, agora termina'. Foi quando atiraram na cabeça do meu filho, que já estava caído no chão. E aí começou uma confusão para conseguir lençóis para levar para o hospital. Uma gritaria. Os moradores não queriam dar, mas eles ameaçaram e assim conseguiram desfazer a cena do crime. Ele já estava morto", diz Maria de Fátima.
A polícia alegou que houve tiroteio e que Hugo seria traficante. "Ninguém ouviu mais do que aqueles dois tiros. E veja bem, a creche fica num beco muito estreito. Se tivesse havido tiroteio, muito mais gente teria morrido ali. Crianças, inclusive, do jeito que o lugar é apertado", diz a mãe.
Consultada pela BBC Brasil, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Janeiro informou que o caso foi registrado como homicídio decorrente de intervenção policial e que as investigações estão em andamento.
Maria de Fátima nunca mais passou em frente à creche. "Não consigo", diz.
Na sala de sua casa, no alto da favela da Rocinha, Maria de Fátima ainda chora quando relembra a história. "Eu tomei muito remédio para dormir, para os nervos. Nunca mais fui a mesma pessoa. Às vezes, estou ali cozinhando e ouvindo uma música e começo a chorar. É saudade", diz.
De um lado, bijuterias, elásticos e materiais para confeccionar brincos e correntes. Do outro, o computador aberto em sua página do Facebook. Ela conta que, se não está fazendo faxina, faz artesanato e interage com outras mães nas redes sociais, para "ocupar a cabeça".
"
Estou falando pelo meu filho. Agora eu sou a voz dele"
Ao lado do computador, um objeto chama a atenção. Uma cruz de madeira. "Mandei fazer para participar de uma passeata na Candelária, relembrando a chacina (de oito jovens nas escadarias da igreja, em 1993)", conta.
"Minha cruz eu carrego todo dia. A gente é pobre, preto, desempregado, favelado. Eles pensam que a gente não tem voz. O que mais tem aqui dentro é gente apanhando. Tapa na cara, humilhação. E morrendo também. Isso é pacificação? Mas eu estou falando pelo meu filho. Agora eu sou a voz dele", diz.
Para a diarista, o que importa é limpar o nome de Hugo. "Ele não era traficante, era trabalhador. Aqui tenho a carteira de trabalho, os holerites, tudo aqui na pastinha, você quer ver? Ah, e o que eu quero? Justiça. Eu quero Justiça. Alguém tem que fazer alguma coisa. Pouco depois dele mataram o Amarildo, que todo mundo aqui conhecia. Não pode ser assim para sempre, não pode", diz.

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