sábado, 5 de abril de 2008

A questão dos embriões

Casais incapazes de reprodução natural podem recorrer à reprodução assistida, por via da formação de embriões in vitro, depois inseminados. Estes embriões, como seres humanos concebidos, trazem em si a potencialidade para virem a nascer.

Embriões humanos formam-se com a fecundação, que constitui, como ressalta Cristiane Avancini Alves, em trabalho publicado na coletânea Novos Direitos, da Editora Juruá, "o único critério com base ontológica", ao ter por alicerce o fato da concepção. Concebido, o embrião é sujeito de direitos. Merece tutela a vida que o embrião carrega em si, não podendo ser considerado objeto, muito menos objeto descartável. Como consta da Enciclopédia Larousse, em expressão lembrada pelo geneticista francês Jérôme Lejeune, o embrião humano é a mais jovem forma de ser, pelo que desde a concepção é sujeito de direitos. No Esboço de Código Civil Teixeira de Freitas estatuía que "todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos são pessoas".

Na reprodução assistida podem se formar vários embriões que não serão utilizados pelo casal, embriões excedentários, cujo destino tem constituído um desafio para a bioética. A questão da utilização desses embriões desnecessários à reprodução pretendida ganhou cores de controvérsia apaixonada, em confronto de convicções de cunho religioso e científico com o enfoque dirigido à discussão sobre o momento em que começa a vida humana.

A denominada Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 2005) veio a disciplinar o uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, para fins de pesquisa e terapia.

Ao regrar essa utilização dos embriões excedentários, estabeleceu: "Art. 5º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou, II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento."

Legitima-se o uso de embriões, com a devida autorização dos geradores, nas hipóteses de ser o embrião inviável ou estar congelado por mais de três anos quando da edição da lei, ou, para os já congelados naquela data, quando se perfizerem três anos do congelamento.

O então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade do referido artigo, argumentando estar a afrontar o artigo 5º da Constituição, que garante a inviolabilidade do direito à vida, na medida em que autoriza a utilização de embriões "extinguindo sua vida e violando sua dignidade".

O artigo da lei inquinado de inconstitucional é mal redigido, falho, mas não é inconstitucional. A expressão "embrião inviável" é equívoca, pois pode compreender, como já fez nossa Suprema Corte, o feto anencefálico. Ressaltam Judith Martins-Costa, Márcia Fernandes e José Roberto Goldim que, por sua vez, o Decreto nº 5.591/06, regulamentador da Lei da Biossegurança, falha tecnicamente ao estabelecer que a inviabilidade do embrião decorre de suas células não serem capazes de se dividir, pois "também não teriam utilidade para fins de geração de células-tronco embrionárias, justamente por não se dividirem"! - artigo inserto na coletânea Novos Direitos.

Tal, todavia, não importa em inconstitucionalidade. A questão não deve girar em torno do momento do começo de vida. Entendo haver vida desde a concepção, mas não haver inconstitucionalidade no uso condicionado de que trata a lei, pois o essencial reside em outra perspectiva: na utilização exclusiva de células-tronco de embriões para fins de pesquisa ou terapia, proibida sua comercialização. Ora, o bem vida, evidentemente essencial, nem por isso recebe proteção absoluta. A lei justifica matar alguém em legítima defesa ou em estado de necessidade quando se atinge terceiro inocente para salvar direito próprio, como é exemplo o aborto para salvaguardar a vida da gestante.

Neste caso há ponderação de bens, um balanceamento, por via do qual se considera a vida da mãe, pessoa dotada de personalidade, fonte de laços de bem querer, mais valiosa do que a vida do feto, ainda intra-uterina. O mesmo se dá com a autorização do aborto em caso de estupro. A mulher violada deve ser protegida dos sentimentos contraditórios do amor materno e do asco pelo fruto da violência sofrida.

Na petição da Conectas Direitos Humanos, entidade que atua neste caso, em defesa da lei, como amicus curiae, destaca-se estarem as células-tronco embrionárias destinadas à pesquisa e terapia, portanto, à valorização e realização de outras vidas. A vida de embrião extra-uterino inviável em benefício de muitas vidas humanas.

O embrião inviável - interpretado este termo como o não-vivedouro, pois, em razão de vícios, implantado não sobreviverá - e o abandonado em clínicas, cujo implante é desaconselhado pelo tempo decorrido, ambos gerados in vitro e congelados, constituem bem cuja preservação tem menor valia ante o uso de suas células-tronco, totipotentes, as únicas capazes de originar todos os tecidos humanos, no tratamento de doenças do sistema nervoso, bem como de Alzheimer, mal de Parkinson e paralisia.

Ao aspecto objetivo da maior valia se une a intencionalidade positiva, pois é o fim de salvação que anima o agente, não visando a atingir a vida, mas dirigido a salvar vidas humanas. Assim, sob a perspectiva da ponderação de bens e em função da finalidade concreta justa da autorização de uso de células-tronco embrionárias, não se pode vislumbrar qualquer inconstitucionalidade.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Fonte: Estadão, 05/04/2008.

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