segunda-feira, 14 de abril de 2008

Por uma política de drogas mais humanitária

A psicóloga Daniela Piconez e Trigueiros está à frente da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (Reduc), ONG fundada em 1998, mesma época em que foi aprovada a Convenção das Nações Unidas sobre Drogas que impôs ao mundo uma política proibicionista e de repressão às drogas e estipulou a erradicação de plantações de coca, papoula e cannabis.

Dez anos depois, as Nações Unidas se preparam para rever a política de drogas adotada – e replicada pelos países-membros, entre os quais está o Brasil. O momento é certamente mais favorável para quem trabalha com a questão de drogas sob uma perspectiva de saúde e atenção ao usuário.

A Reduc conta com uma equipe de técnicos, profissionais de saúde, de educação, membros de governo e pessoas que usam drogas. “A idéia é ser uma ponte entre o usuário de drogas e as autoridades governamentais, parlamentares, para discutir uma política de drogas mais humanitária.”

Apesar de acreditar que hoje é possível falar mais abertamente de drogas, Daniela admite que não se pode ser ingênuo, ainda que a nova lei brasileira de drogas pareça flexibilizar os critérios de punição do usuário de drogas. “Ainda não há a questão da saúde associada às drogas, a abordagem ainda é policialesca”, avalia.


Qual é a proposta da Reduc para lidar com a questão das drogas?

A idéia é que a rede seja uma ponte entre o usuário de drogas e as autoridades governamentais, parlamentares, para discutir uma política de drogas mais humanitária. Trabalhamos uma estratégia de reinserção social. Nossa proposta é discutir com a população os meios de se prevenir contra o uso nocivo de álcool e outras drogas. Para quem já consome drogas e não pode ou não quer parar de consumir, não preconizamos como primeira e única alternativa a abstinência, mas trabalhamos com qualidade de vida, com garantia de direitos e com a saúde integral do usuário de drogas. Nosso foco não é na substância, mas sim a pessoa e sua vulnerabilidade.


O que a redução de danos pode fazer pelo usuário de drogas, dentro da perspectiva da segurança humana?

A redução de danos personaliza o tratamento dado ao usuário de drogas, busca entender que há quem faça uso recreativo e que há casos de dependência. Trabalha-se com prevenção, não numa linha terrorista ou de amedrontar. Procura-se informar e empoderar a pessoa para que, caso ela venha a fazer uso de álcool ou drogas, possa ponderar quais os riscos que vai correr e assumi-los. Com quem já usa drogas, é importante discutir os malefícios, é preciso ajudá-los a desenvolver esse processo de resolução da questão de drogas em sua vida, mas com um olhar para a totalidade.


Qual é a contribuição do proibicionismo para a redução do crime ligado à droga?

As políticas proibicionistas são absolutamente fracassadas. Não temos nenhum dado nacional ou internacional que aponte para uma redução do uso de drogas e da criminalidade, pelo contrário, as pessoas descobrem novas drogas e alternativas para traficá-las. O proibicionismo não consegue abarcar todas as questões referentes às drogas. O narcotráfico gera um grande volume de dinheiro todos os anos e esse dinheiro circula no mercado financeiro de armas.


Neste sentido, a redução de danos seria mais eficiente?

Não dá para ter a ingenuidade de acreditar que isso tudo vai acabar por questões de saúde, mas já se considera a redução de danos como forma de garantir os direitos humanos de usuários de drogas e favorecer o acesso de dependentes ao sistema de saúde. A descriminalização da conduta do usuário de drogas contribui para redução de criminalidade, tira o usuário da margem.


A ONU está revisando sua política de drogas. Qual é a sua expectativa em relação a isso?

Quem encabeça essa convenção, de fato, são entidades muito conservadoras em política de drogas, que preconizam a abstinência e o proibicionismo. Estamos esperançosos que com essa análise de falha se implemente a redução de danos. Entretanto, o movimento de redução de danos não foi consultado no Brasil, apesar da política nacional anti-drogas ter inserido a redução de danos em seu programa. Meu medo é que sejam só palavras para acalmar a oposição.


Como é a relação da Reduc com organismos governamentais?

Temos parceria com governos e travamos um diálogo consistente com o Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da saúde, participamos de um debate importante com o Programa Nacional de Saúde Mental e temos projetos financiados pelo governo. É uma relação bastante amistosa, somos parceiros quando temos que ser, mas também temos autonomia para cobrar. É a sociedade civil exercendo papel de controle social..


A nova lei de drogas no Brasil pareceu flexibilizar critérios em relação ao usuário. Que diferença isso faz do ponto de vista da construção do imaginário social sobre drogas?

A lei ainda sustenta a marginalização das pessoas que usam álcool e outras drogas, trata todo mundo da mesma forma. O usuário não vai pra cadeia, mas continua visto como criminoso, e tem que pagar por esse crime. Ainda não há a questão da saúde associada às drogas, a abordagem ainda é policialesca.


Estamos falando de drogas ilícitas. Por que estas são tratadas assim enquanto outras, também nocivas, são comercializadas livremente, inclusive com publicidade?

São determinações e normas tiradas de convenções internacionais. O Estado tem um certo controle sobre as drogas lícitas, inclusive com arrecadação de impostos, e no caso das drogas ilícitas, isso não acontece. Eu entendo que o governo também se beneficia com a licitude de algumas e a ilicitude de outras drogas, porque o discurso é de que é preciso combater o narcotráfico, reprimir a demanda e oferta, o que incrementa a indústria de armas. A ilicitude das drogas também movimenta um mercado.


Um mercado lícito?

Sim, um mercado lícito.


A marcha da maconha, por exemplo, é um movimento mundial de livre expressão da sociedade civil em relação à legalização desta droga. Isso significarque hoje há mais liberdade para falar do assunto?

Eu trabalho com drogas há 10 anos e o panorama mudou bastante. Hoje temos possibilidade de ter assentos políticos que não tínhamos, tratamos mais abertamente de drogas no plano político, temos parlamentares que se mostram preocupados com a questão da saúde integral, vemos leis estaduais e municipais que tratam da questão sob essa perspectiva. Acho que discutir redução de danos hoje está mais legal, apesar do preconceito, da associação entre redução de danos e apologia ou legalização. O próprio movimento não é coeso quando se fala de legalização.


Qual é a sua opinião sobre a legalização das drogas?

O Brasil precisa se preparar para uma legalização. Passo importante para isso é a descriminalização do usuário e drogas, pois a droga não é uma questão só de policia, mas de saúde.


Quais são os desafios de se implementar a legalização no Brasil?

Antes da legalização em si, temos muito que avançar, especialmente no que diz respeito à criminalização de quem faz uso de álcool e drogas, ainda associados à marginalidade, à criminalidade e à falta de caráter. A droga ocupa espaços muito diversos na vida das pessoas, está em qualquer classe social. A mídia publica os casos mais graves de relação com a droga. Isso generaliza, deixa a impressão de que todo mundo é dependente de drogas, e as políticas públicas são construídas em cima dessa generalização.



Comunidade Segura, 14/04/2008.

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