sábado, 19 de abril de 2008

Artigo - Mídia, liberdade de expressão e direito penal

A liberdade de expressão é uma garantia fundamental, com assento constitucional nas sociedades democráticas. Conquista inarredável dos ideais de liberdade, no Direito Constitucional norte-americano foi consagrada pela 1ª emenda, em 1791, e constitui, talvez, o mais valorizado e protegido direito fundamental daquele país.(1) Na Alemanha, a importância da liberdade de expressão também é destacada, vista como um direito subjetivo individual de manifestação de pensamento, e, ao mesmo tempo, revestindo-se de um caráter eminentemente público, como instrumento para a livre formação de opinião e intercâmbio de idéias entre os cidadãos, fator indispensável ao bom funcionamento de um regime democrático, e um valor a ser promovido pelo Estado.(2)

Não se pode negar a influência que a mídia, os meios de comunicação de massa em geral, têm na sociedade, apresentando-se como verdadeiros fatores reais de poder, como força social, formadora de opinião. Tanto que, não raro, a opinião pública é condicionada pela opinião publicada. Opinião pública e opinião publicada por vezes se confundem. Afinal, nas palavras de Lola Aniyar de Castro, “os meios de comunicação demonstram ser cruciais na construção das ideologias. E, em conseqüência, das atitudes e dos valores”.(3) Neste contexto, é que Israel Drapkin qualificou a mídia como o “Quarto Poder do Estado”.(4)

Tal realidade assume especial importância quando o foco de análise é a atuação da mídia diante do crime. Segundo Nilo Batista, a vinculação entre mídia e o sistema penal apresenta-se de maneira tão patente, que levou Zaffaroni a incluir no rol de agências do sistema penal as agências de comunicação social (como rádio, televisão e jornais).(5) O fato criminoso desperta o interesse da sociedade, que conta com a mídia como fonte de informação e publicidade acerca do delito.

Neste momento é que se tem que atentar para que não sejam vulneradas garantias fundamentais inarredáveis do investigado ou do acusado, sobretudo o estado de inocência, através da publicidade abusiva ou opressiva (o chamado trial by media).(6) Não há uma medida certa, quadrantes preestabelecidos dentro dos quais a mídia deva atuar, exercendo seu relevante papel em uma ordem democrática, e ao mesmo tempo respeitando as garantias individuais. Apenas os contornos da situação concreta e a adequada ponderação dos interesses em jogo trarão o parâmetro para a atuação midiática, devendo-se sempre buscar a compatibilização dos valores em conflito no caso, a saber, do interesse social na informação e também na preservação das garantias fundamentais dos envolvidos na cena penal.

Neste contexto, a título ilustrativo, vale a menção a interessante e polêmico episódio, julgado em 1973 pela Corte Constitucional Alemã, o chamado “Caso Lebach”(BverfGE, 35, 202 [237]). Segundo noticia Luís Roberto Barroso,(7) a discussão envolvia a possibilidade de um canal de televisão exibir documentário sobre um homicídio que havia abalado a opinião pública alemã alguns anos antes, fato conhecido como “o assassinato de soldados de Le­bach”. Um dos condenados, em fase final de execução penal, recorreu a juízo com objetivo de impedir a transmissão, argumentando que a veiculação do programa, além de atingir sua honra, configuraria grave obstáculo ao seu processo de ressocialização.

A primeira instância e o tribunal revisor denegaram o pedido liminarmente formulado pelo autor para obstar a exibição, ao fundamento de que seu envolvimento no fato delituoso o tornara um personagem da recente história alemã, o que conferia interesse público inegável ao episódio, prevalecendo, inclusive, sobre sua pretensão de ressocialização. Então, o autor interpôs recurso constitucional (Vefassungsbs­ch­wer­de), invocando, novamente, seu direito à reinserção social. Foram ouvidos representantes do canal de televisão interessado, da comunidade editorial alemã, especialistas nos diversos ramos do conhecimento pertinentes e o Governo Federal e do Estado da Federação onde o condenado haveria de se reintegrar. Após a análise detida das especificidades do caso, concluiu o Tribunal Constitucional Federal Alemão que “a repetição de informações, não mais coberta pelo interesse da atualidade, sobre delitos graves ocorridos no passado, pode revelar-se inadmissível se ela coloca em risco o processo de ressocialização do autor do delito”.(8) Dessa forma, o tribunal reformou o entendimento das instâncias anteriores, concedendo a liminar para impedir a veiculação do programa no caso de expressa menção ao interessado.

É certo que o caso é alvo de grande debate até mesmo na Alemanha.(9) Em um contexto desses, é perfeitamente invocável o argumento de que o controle prévio da veiculação implicaria a sempre indesejada censura, violando o direito fundamental à liberdade de expressão. E, como lembra Sérgio Salomão Shecaira: “(...) bem é de observar-se que qualquer discussão acerca do que faz ou deixa da fazer a imprensa no plano político ou policial (...) só se justifica dentro do contexto da democracia garantidora da liberdade de pensar e agir.”(10)

Contudo, garantias como o estado de inocência podem ser vulneradas, o que em dadas circunstâncias pode até gerar um prejuízo indenizável, mas muitas das vezes irreparável, como apontou em decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal o ministro Cezar Peluso.(11) Não existe uma resposta correta, pronta e acabada. A questão passa pela análise do caso e a ponderação dos interesses em conflito. Depende, sobretudo, da conscientização dos veículos de imprensa acerca de seu poder social e de seu relevante papel na (in)formação da opinião pública. Essa é uma tensão permanente, com a qual se tem que conviver na democracia.

Notas

(1) SARMENTO, Daniel. “Liberdade de Expressão, Pluralismo e o Papel Promocional do Estado”, in Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 265-273.

(2) SARMENTO, Daniel. Op. Cit., pp. 273-277.

(3) ANIYAR DE CASTRO, Lola. “Meios de Comunicação e Insegurança Social”, in Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan-Instituto Carioca de Criminologia, 2005, p. 201.

(4) DRAPKIN, Israel, apud TORON, Alberto Zacharias. “Notas Sobre a Mídia nos Crimes de Colarinho Branco e o Judiciário: os Novos Padrões”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 9, n. 36, out./dez. 2001, p. 259. Ainda nas palavras de Lola Aniyar de Castro: “Se é assim, e se, como diz Luhmann, o poder consiste em reduzir a complexidade da vida social, em vista da limitada capacidade que os homens têm de processar a informação, a comunicação é poder, porque reduz complexidades, entrega o produto pronto, proporciona a ilusão de participação e assume a tarefa de legitimar o mandato” (ANIYAR DE CASTRO, Lola. Op. Cit, p. 201).

(5) BATISTA, Nilo. “Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio”, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, 2º sem. 2002, p. 271.

(6) A respeito do tema: LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista. 3ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 186-193.

(7) BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de Expressão versus Direitos da Personalidade. Colisão de Direitos Fundamentais e Critérios de Ponderação”, in Temas de Direito Constitucional. T. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 100-101.

(8) MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 327.

(9) Luís Roberto Barroso aponta que foram as particularidades do caso que levaram o Tribunal Constitucional Alemão à decisão, sendo altamente controvertido o resultado (BARROSO, Luís Roberto.Op. Cit., p.101).

(10) SHECAIRA, Sérgio Salomão. “A Mídia e o Direito Penal”, in Boletim do IBCCRIM, nº 45, ago. 1996. Disponível em: . Acesso em 08/01/2008.

(11) STF, Medida cautelar em mandado de segurança nº 24.706-1/DF, rel. min. Cezar Peluso, j. em 10.11.2003.

Reinaldo Daniel Moreira
Advogado, professor de Direito Processual Penal na pós-graduação em Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, professor de Direito Processual Penal e Direito Penal na Faculdade Metodista Granbery, de Juiz de Fora e mestrando em Direito Público na UERJ.


Boletim IBCCRIM nº 183 - Fevereiro / 2008

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