sábado, 19 de abril de 2008

Entrevista Leonardo Sica






Caminhos menos vingativos


EUNICE NUNES
Especial para o “Tribuna”


Leonardo Sica é um jovem criminalista e integra a safra dos que refletem sobre o sistema de crime e castigo arraigado na cultura brasileira à procura de caminhos menos vingativos para lidar com o criminoso. A idéia é, quando possível, quebrar o ciclo de violência, estabelecendo um novo modelo de Justiça criminal e de gestão do crime.
Autor de vários livros, entre eles Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão e Justiça Restaurativa e Mediação Penal, coordenador da revista Ultima Ratio e vice-presidente do recém-criado Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa, Sica diz que o que escreve é resultado da análise e das reflexões que faz em termos de reforma da Justiça. "São idéias diferentes do que tenho no dia-a-dia, que são processos, inquéritos policiais. Com o que estudo, o que escrevo, compenso o que vejo de errado no cotidiano profissional", declara.
Ele parte do princípio de que o sistema está esgotado e não satisfaz mais ninguém, nem os mais liberais, nem os mais severos. "Está todo mundo insatisfeito. Temos processos demais, presos demais e vagas de menos no sistema penitenciário, apesar de nos últimos anos terem sido construídos muitos presídios. Temos de achar outras entradas e a mediação é uma delas: pode evitar processos, evitar prisões e resolver satisfatoriamente uma faixa importante de conflitos, reservando ainda a atuação do juiz para o que seja realmente grave, que exija um tratamento mais rigoroso", avalia, acrescentando que "organizações criminosas e criminalidade econômica devem ser tratados pela via judicial rigorosa, com processo, julgamento, pena. São crimes que atingem a coletividade, em que não há uma vítima individualizada e justificam o acionamento do aparato da Justiça criminal".
Segundo Sica, a mediação penal é o instrumento de concreção da chamada Justiça restaurativa, cujo objetivo é restaurar as relações entre as pessoas e das pessoas com as instituições e com a comunidade. Ele entende que não é necessário alterar a legislação para instituir a mediação penal, embora exista um projeto de lei tramitando na Câmara dos Deputados que regula o procedimento.


Tribuna do Direito — O que o levou a pensar em vias alternativas para o tratamento do crime?
Leonardo Sica — Depois que comecei a trabalhar, observei que temos uma prática judicial muito injusta, muito arcaica. Passei a estudar e a escrever para contribuir, para melhorar as coisas. Parto da experiência profissional para propor caminhos diferentes. Há muito tempo estamos experimentando mais do mesmo e está na hora de experimentar outras coisas. A Justiça criminal é permeada pela noção de crime e castigo e, na atual conjuntura, é insuficiente ler os problemas apenas por esse código.

TD — Insuficiente por quê?
Sica — Porque a natureza dos conflitos é heterogênea. Existem necessidades, explicações, justificativas para a conduta das pessoas. Existe uma série de pré-juízos, de pré-julgamentos. O que é crime? Crime é o que a lei define como tal. Mas é preciso considerar que o que é crime para mim não é para outros, tendo em vista a sociedade extremamente heterogênea em que vive-se hoje. Há realidades diversas dentro da cidade de São Paulo e entre os Estados da federação. A Justiça tem de tentar absorver essas diferenças, mas há dificuldades porque o Judiciário tem um único código.

TD — Mas isso não é decorrência dos tipos penais serem fechados, o que impede interpretações variadas?
Sica — São tipos fechados feitos pelo legislador, o que já é um problema. O Legislativo, por exemplo. Foi entregue a ele a tarefa de definir o que é crime e, sabe-se, graças ao trabalho dos meios de comunicação, que o Legislativo não trabalha de uma forma exemplar ou recomendável. O Parlamento nos últimos 10 anos vem aumentando as penas e endurecendo os regimes prisionais de uma série de crimes: roubo, extorsão, tráfico de entorpecentes, estupro, seqüestro. Por outro lado, não endureceu da mesma maneira o tratamento dado a crimes como corrupção e sonegação fiscal. Tem-se aí um problema sério de origem que leva a concluir que é preciso reinterpretar a idéia do que é crime a partir de uma realidade concreta.

TD — Mas há crimes que são consenso. Por exemplo, não se admite matar uma pessoa...
Sica — O que está na lei não admite interpretações. Matar alguém é matar. Não se admite matar alguém porque a vida é um bem jurídico valioso. Se for escolhido um local de periferia, muito afastado, uma favela de São Paulo ou um morro carioca, percebe-se que existe uma outra noção do próprio valor da vida. Por quê? Porque as pessoas já viram vizinho morrer baleado, ou já morreu alguém na família de forma violenta, às vezes a mãe, às vezes o filho, um já matou o outro, ou a polícia já matou alguém próximo. Na verdade, a idéia de proteção à vida tem uma relativização muito grande. Por isso é que se vê tantos jovens se arriscando em condutas perigosas, praticando roubo, tráfico de drogas. A própria vida deles para eles não vale tanto. A perspectiva de perder a vida está ali, na esquina. Eles sabem que podem morrer a qualquer hora. Se pessoas que estão presas ou que vivem na marginalidade forem ouvidas vai-se notar que todos conhecem ou conheceram pessoas que morreram de forma violenta ou que sofreram algum tipo de violência grave. E essa é a população que menos reclama da violência. Quem mais reclama da violência são os que estão menos sujeitos a levar um tiro do que alguém que mora na periferia, embora tenha-se mais medo do que eles. Mesmo homicídio, que é um tipo penal incontroverso — não quer dizer que alguém que mate possa ser perdoado por isso —, tem de ser lido de uma maneira diferente. Determinados segmentos têm um jeito de resolver os problemas. Existem contextos sociais em que a forma de resolver problemas entre as pessoas é na bala ou na faca, na violência. Isso está errado? Claro que está errado. Mas as pessoas aprenderam assim. Cresceram vendo o pai e a mãe se estapearem, vendo os vizinhos brigarem, vendo a polícia entrar nas casas sem mandado. Essas pessoas têm um código cultural diferente e na hora em que uma delas pratica um homicídio não deveria ser avaliada da mesma forma que os demais.

TD — Qual a sugestão?
Sica — Que não haja um código único para a leitura dos conflitos. Defendo a mediação, que é uma forma de dar uma resposta ao crime diversa da punição.

TD — Para que tipos de crime seria indicada a mediação?
Sica — Para os de média gravidade, como furto, roubo, violência doméstica, crimes sexuais sem grave violência, estelionato, apropriação indébita, crimes de trânsito.

TD — Como seria a mediação?
Sica — A mediação pressupõe diálogo. É um procedimento extrajudicial, regulado pelo Judiciário, ou seja, o juiz é que envia o caso para ser resolvido na presença de um mediador, que pode ser leigo. O mediador é só um facilitador, uma pessoa que vai intermediar o diálogo entre outras duas — o ofensor e a vítima — desde que eles o queiram fazer. As pessoas não podem ser obrigadas a passar por uma mediação de um crime. A vítima pode não querer falar com o ofensor, assim como o ofensor pode não querer ser submetido à mediação, porque ele pode, por exemplo, negar a autoria do crime. Mas, a mediação dá a oportunidade às pessoas de participar do processo. Hoje, o promotor abre o processo independentemente da vontade da vítima, ou seja, o processo penal não dá espaço para a vítima e o objeto é condenar ou absolver o ofensor. A idéia da mediação é oferecer uma nova resposta ao fenômeno do crime sem excluir a possibilidade de as pessoas serem processadas, julgadas e condenadas.

TD — A mediação exclui a punição? Um ofensor submetido à mediação não será punido?
Sica — A natureza do resultado da mediação é uma obrigação, não uma punição. O ofensor assume uma obrigação e tem de cumpri-la. Se não a cumprir, o caso volta para o juiz, que pode ou não abrir um processo. A mediação pode resultar num acordo e se esse acordo for suficiente para reparar o dano causado à vítima evita-se o processo penal. Isso passa pelo crivo do juiz, mas não pode ser considerado uma punição porque não é imposto, é acordado.

TD — Se for dano material é fácil...
Sica — É mais fácil, mas existe um espaço muito grande para a reparação simbólica do dano. Existem muitas vítimas que se contentam com um pedido de desculpas, com a possibilidade de conversar com o ofensor e mostrar-lhe como aquela conduta afetou a vida delas. O dano de quem sofre um crime não é só material. Na violência doméstica, por exemplo, a demanda maior da vítima, quase sempre, é que a violência acabe, que não se repita. Num acordo mediado, em que o marido se comprometa a não voltar a praticar violência dentro de casa, o juiz vai estabelecer algumas normas de conduta e vai acompanhar o caso. Se o acordo for cumprido, mesmo não havendo uma reparação material, o caso está solucionado. A maioria das mulheres não quer que o pai dos seus filhos vá preso, porque isso não resolve o problema, ao contrário, cria outros. Ela deixa de apanhar, mas fica sem dinheiro para sustentar a casa. Não é isso que ela deseja. Por isso é que a resposta do sistema é falha e injusta, porque é uma só: processar e punir.

TD — De qualquer maneira, o juiz precisa homologar o acordo...
Sica — O juiz tem de homologar o acordo, porque ele precisa verificar se o acordo não é ilegal e se é suficiente para estabilizar a situação.

TD — É necessária a presença do advogado na mediação penal?
Sica — Não. A mediação não exige a presença de advogado. A não ser que as partes prefiram, por uma questão de segurança. O que se exige, tanto para o ofensor quanto para a vítima, é que tenham assistência jurídica prévia, para que entendam o que significa participar de uma mediação. Se a vítima vai renunciar ao processo, ela precisa saber o que isso significa. E se o ofensor vai aceitar um acordo, também precisa saber o que isso implica para ele. Durante a mediação é recomendável que as pessoas não se façam acompanhar de advogado.

TD — Por quê?
Sica — Porque a idéia é que as partes se componham naturalmente. O advogado tem uma cultura adversarial e se ele transferir isso para dentro de uma sessão de mediação vai viciar o diálogo.

TD — Já existe alguma experiência com mediação penal?
Sica — No Brasil existem três projetos pilotos: em Porto Alegre, São Caetano do Sul e no Distrito Federal.

TD — E em outros países?
Sica — Há países em que a mediação penal funciona mais institucionalmente, como Austrália e o Canadá. E há países que cumprem programas de mediação penal de maneira mais pontual, como Itália e Inglaterra.

TD — Qual a sua avaliação dessas experiências que estão acontecendo no Brasil?
Sica — Os projetos ainda são muito incipientes. Têm entre dois e três anos, o que é pouco para uma inovação desse tamanho. Mas avalio com otimismo. As pessoas têm aceitado bem e os juízes estão começando a ficar mais interessados em experimentar a novidade. Uma das idéias básicas da mediação penal e da justiça restaurativa é introduzir um novo instrumento de política criminal e também introduzir um conceito que possa modificar o modelo de Justiça.

TD — Isso tudo faz lembrar da Lei dos Juizados Especiais Criminais, que tinha uma meta parecida. Ela conseguiu mudar alguma coisa?
Sica — Não. Está se indo para quase 12 anos de vigência da Lei dos Juizados e ela tornou-se mais um órgão burocratizado da Justiça. Ela trata burocraticamente dos problemas e não atendeu aos objetivos que tinha inicialmente. Ela tem um âmbito de incidência muito restrito: só crimes com penas de até dois anos. São muito poucos e insignificantes. Furto e roubo ficaram de fora e eles representam hoje, em São Paulo, cerca de dois terços dos processos. Se não se mexe nisso, não se mexe em praticamente nada. A grande massa dos processos criminais são furto e roubo, seguidos por tráfico de entorpecentes e crimes sexuais. Todos intocados pela Lei dos Juizados. Foi uma mudança muito tímida, superficial. A idéia do acordo não foi bem tratada na lei, porque quem conduz o acordo no Juizado Especial é o juiz ou o promotor. E isso não funciona, porque eles têm uma figura de autoridade (natural, tem de ter) que atrapalha esse livre negociar entre cidadãos.




Nascido em Mogi das Cruzes, município a cerca de 50 quilômetros da Capital paulista, Leonardo Sica mudou-se para São Paulo aos 17 anos, quando entrou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp). Era 1992, ano em que os jovens pintaram a cara e tomaram as ruas exigindo o impeachment do então presidente da República Fernando Collor de Mello. "Não pintei a cara, mas saí em passeata, fui às manifestações. Foi muito marcante. Participei muito da vida acadêmica. Fiz política no Centro Acadêmico XI de Agosto, freqüentei o porão e o pátio. Acho essa vivência tão importante quanto as aulas."
E confessa: "Durante a graduação não fui um aluno exemplar. Tornei-me mais compenetrado e assíduo do 4º para o 5º ano", justificando que era muito novo, morava sozinho em São Paulo, não conhecia ninguém e tinha de estabelecer relações na cidade. "Se não ia ficar muito difícil morar aqui, continuar aqui. Graças a Deus conheci muita gente e fiz muitos amigos, que cultivo até hoje. Aproveitei bastante e na época certa", completa.
O interesse pelo Direito Penal vem de antes da faculdade, da leitura, do cinema e de alguns júris a que assistiu ainda menino e por interesse próprio, já que ninguém na família é do Direito. Na faculdade pôde confirmar que gostava da matéria. "Foi um pouco por exclusão, porque não gostava de Direito Civil, de Comercial, de Tributário. Então, foram sobrando poucas opções. quando surgiu a oportunidade de estágio na área criminal, verifiquei que era aquilo que queria", relata.
O primeiro estágio, quando estava no 4º ano da faculdade, foi na Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ). Depois, estagiou num escritório de Advocacia, também na área criminal, onde está até hoje, agora como sócio. Também foi o Direito Penal o vetor que o aproximou de sua mulher, a procuradora do Estado Ana Paula Zomer Sica. Ela atuava no tribunal do júri e os dois, volta e meia, se encontravam em congressos, seminários ou cursos, sempre na área das ciências criminais. Casaram-se em 2003 e têm um filho, André, de dois anos e meio. "Hoje, divido meu tempo entre o escritório e eles. Quando não estou trabalhando, estou com a minha família", declara.


Tribuna do Direito, novembro 2007.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog