quinta-feira, 3 de abril de 2008

Elogio da tropa ou esculacho da elite?





A revista Veja, em reportagem de capa sobre o fenômeno Tropa de Elite, sugere que o filme é sucesso porque mostra “bandido como bandido e usuário de droga como sócio de traficante”. Será que é isso mesmo? O espectador estaria gostando de ver tanto o traficante da favela quanto o “maconheiro” de classe média serem "enquadrados", e com violência? Mas se o roteiro é impiedoso com estes dois grupos, por outro lado humaniza policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope) e sugere que apesar de torturar e matar, eles são honestos e combatem tanto o tráfico quanto a corrupção. Estaria o público "comprando" essa idéia? Qual a razão do estrondoso sucesso de Tropa de Elite?

Uma visão otimista seria pensar que a reação entusiasmada do público vem do desejo de ver vitoriosa uma instituição que em tese defende a lei e a ordem, não importa por que meios, combatendo do mesmo modo implacável tanto o criminoso da favela, quanto o da faculdade ou o da polícia. Mas no filme – como na vida real - a lei e a ordem não prevalecem, pois os métodos do Bope quando violenta culpados e inocentes são tão criminosos quanto os dos traficantes.

A maioria dos críticos do filme alegam que ele glorifica o Bope e leva o espectador a apoiar o uso da tortura contra o crime. A jornalista Carla Rodrigues, por exemplo, embora não deixe de reconhecer os méritos da obra, comenta em seu blog que “o incomôdo de Tropa de Elite é justamente o fato de o filme te jogar neste lugar de defensor da tortura em nome do fim do tráfico de drogas”.

Entrevistados pelo jornal O Dia, aspirantes a soldado do Bope contaram que o filme só aumentou a vontade que tinham de entrar para a tropa. Um deles chega a defender a ‘tática’ do Bope e diz que as pessoas não entendem a necessidade da tortura: “Não que resolva, mas como você vai arrancar uma informação do traficante? Fazendo carinho nele ele não vai falar", disse Marcio Bachur, 17 anos, ao jornalista Diogo Dantas.


Tortura real, falsa justiça

O jornalista José Luís dos Santos acredita que as pessoas gostam do filme porque ele mostra alguma justiça, ainda que falsamente retratada. “O capitão Nascimento, do modo como foi retratado, é um justo. E os brasileiros são justos. (...) O capitão Nascimento mata e tortura. Mas, aos olhos do povo sofrido, acuado pelas privações, pela fome, pelos indizíveis sofrimentos, isso é justiça. Matar vagabundo, matar traficante”.

Preocupado com esse impacto indesejado, o diretor José Padilha tem repetido em incontáveis debates e entrevistas que o objetivo de mostrar a tortura foi denunciá-la, e não apóia-la. Padilha, que também é autor do documentário Ônibus 174, por sua vez criticado por humanizar o criminoso Sandro do Nascimento ao contar sua história, conseguiu colocar os principais temas relacionados à segurança pública no Brasil em discussão entre praticamente todos os setores da sociedade. De quebra, o filme ainda esquentou o debate sobre a pirataria quando vazou para a internet e foi parar nas mãos de camelôs do Rio.

A corrupção na polícia “convencional”, o que, segundo o filme, não acontece no Bope, é outro ponto polêmico. A exposição da Polícia Militar com toda sua estrutura vergonhosamente corrompida incomodou, mas com exceção de uns poucos policiais que entraram na justiça e perderam, não houve reação contrária. O que se vê na tela é constrangedor mas não surpreende. O efeito talvez seja dos melhores: bons policiais já podem compartilhar sua insatisfação abertamente com toda a sociedade e quiçá encontrar novo ânimo para reformar a casa.

Rodrigo Pimentel, ex-policial do Bope e co-roteirista de Tropa de Elite, acredita que a corporação só tem a ganhar, como afirmou em entrevista ao site Ego, da Globo.com: “A polícia está em frangalhos em função do contingenciamento de verbas e da politização da segurança pública nos últimos 10 anos. O filme só tem potencial construtivo, é um pedido de ajuda”, disse.


Drogas: debate promissor


O ator Wagner Moura, protagonista do filme, em artigo ao jornal O Globo também se diz preocupado com o fato de seu personagem, o Capitão Nascimento, ser identificado por uma parcela do público como um herói. Moura faz questão de dizer que discorda de Nascimento em quase tudo. Para ele, o tema que realmente deve ser debatido é a legalização das drogas:

“É lógico que há uma responsabilidade individual nisso, e eu conheço muita gente que deixou de fumar maconha para não alimentar o tráfico. Mas não creio que essa campanha seja mais eficaz do que a legalização do consumo. O uso de drogas existe desde que o mundo é mundo e não vai ser a repressão que vai acabar com o consumo. Mas a legalização pode acabar com o tráfico. (...) É o tráfico que arrasta os jovens de periferia para a morte e tenho certeza de que morre muito mais gente na guerra do tráfico do que de overdose.”

Em muitos artigos e posts a legalização ou a discriminalização das drogas vem sendo atacada e defendida. Mas outro ponto de vista surge com freqüência: o de que mesmo não sendo justo responsabilizar o usuário de drogas por toda a violência, existe uma parcela de responsabilidade sobre ele que deve ser assumida. Como diz o jornalista Pedro Dória em seu blog, o filme lembra à classe média que ela não é inocente:

“A partir do momento em que o consumidor não prejudica a ninguém além dele próprio – quando isto acontece – não faz sentido proibir algo que é inevitável, ainda mais quando a proibição gera custos altíssimos na construção de um aparelho repressor ineficiente. Mas não é possível ser cínico e racional em tudo, pôr a culpa na lei e lavar as mãos na seqüência. Cada beque fumado que teve origem na estrutura do tráfico tem um custo em vidas humanas. Fume-o quem quiser – a sensação é agradável. Mas fingir que o sistema em volta não existe é imperdoável, um exercício de alienação ou de cinismo. Se não corta o barato da intoxicação, devia. Não querer fazer parte deste ciclo vicioso é uma atitude de protesto”, provoca Dória.


Bofetada


Na mesma linha, o jornal espanhol El País diz que o filme “é uma bofetada na classe média que consome drogas: diz sem meias palavras que cada cigarro de maconha ou cada grama de cocaína que se compra contribui para que floresçam mais traficantes, mais violência, e mais mortes."

Nesta autocrítica (posto que o filme tem na direção e produção representantes da classe média) pode estar o maior potencial do longa de José Padilha: o de transformar discursos e gerar ações. Se a classe média se perceber como parte do problema e avaliar suas atitudes em relação a droga, tortura, corrupção e miséria, será um avanço.


Tropa de Elite tem, provavelmente, muito mais defensores do que críticos. Além de ser um filme bem realizado em todos os sentidos, quem convive com a violência no Rio de Janeiro sabe que o problema não está na obra de ficção, mas sim na realidade retratada.

"O longa-metragem não deixa ninguém indiferente. Há os que o aplaudem de pé e os que se incomodam com as cenas de tortura, mas ninguém fica impassível", diz o mesmo diário espanhol.

Assim como no Brasil, Tropa de Elite já está repercutindo no exterior antes de sua estréia oficial em telas estrangeiras. Assim como o filme, o debate vai longe. Que assim seja!



Fonte: Comunidade Segura.

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