sexta-feira, 18 de abril de 2008

Artigo - Violência doméstica: críticas e limites da lei Maria da Penha

Por Ana Lucia Sabadell


A partir da IV Conferência da Mulher, realizada em Pekín em 1995, foi introduzido o conceito de empoderamento (empowerment) para tratar da problemática da violação dos direitos humanos das mulheres. Isto significa “potencializar” a participação das mulheres em igualdade de condições com os homens na vida econômica e política e no processo de tomada de decisões, propiciando melhorias nas condições de vida de ambos os gêneros. Tendo o empoderamento um caráter transformador, na medida em que são satisfeitos os interesses das mulheres ocorre também uma modificação nas relações de gênero.
A violência contra a mulher, em todas as suas formas, incluindo-se aqui a discriminação, é um empecilho para o processo de empoderamento e conseqüente desenvolvimento humano da figura feminina. De fato, desde finais dos anos de 1980 teóricas feministas ligadas a órgãos internacionais vêm trabalhando com o enfoque denominado gênero em desenvolvimento (GED), propondo um novo modelo de desenvolvimento sustentável e igualitário, centrado na pessoa, que tem como pré-requisito a redistribuição do poder nas sociedades modernas. Trata-se de um enfoque que mantém estreita ligação com a idéia de empoderamento das mulheres, entendido como aumento de poder para, poder com e poder desde (em contraposição ao poder patriarcal sobre a mulher). Esta seria a estratégia e o objetivo do desenvolvimento. Trata de um novo modelo de desenvolvimento.
O Brasil é membro da ONU e da OEA e, como signatário de diversos tratados internacionais - incluindo-se os específicos sobre direitos das mulheres -, encontra-se na obrigação de legislar e tomar todas as medidas adequadas para coibir a violência contra a mulher. Nesse sentido é que deve ser entendida a aprovação da lei 11.340 de 2006, que ficou conhecida como a Lei Maria da Penha. Trata-se de uma lei que apresenta avanços e retrocessos no tratamento da violência doméstica. Por um lado, a lei afirma a necessidade de conceder-se um tratamento multidisciplinar à matéria, fato este que não deixa de ser um reconhecimento sobre os limites que possui o direito - e em especial o direito penal -, para solucionar conflitos sociais graves. Como uma “boa carta de intenções” afirma-se a necessidade de desenvolver medidas educativas (art. 8) para combater a violência doméstica, incentivando-se inclusive a realização de pesquisas. No âmbito jurídico, as propostas também não se limitam à esfera penal. Isto constitui, sem dúvida, um avanço em termos de legislação em matéria de direitos humanos.
Realmente o direito penal pode oferecer muito pouco às mulheres que são diariamente agredidas por seus atuais ou ex- maridos, namorados e familiares mais próximos. Porém, mais importante do que punir é educar. Há mais de uma década venho insistindo que a problemática da cultura machista (em termos científicos denominamos de patriarcado) só pode ser combatida por meio de uma mudança social de valores e para isso a educação constitui o elemento mais importante. É preciso mudar mentalidades.
Ocorre que realizar uma tal mudança não constitui uma tarefa fácil. Homens e mulheres estão conjuntamente envolvidos (e educados) em um ambiente culturalmente machista, onde ainda predomina o desrespeito à mulher. Como promover uma tal mudança social?
Por esse motivo, a luta contra a violência doméstica é muito mais complexa do que se possa imaginar. Questões tão sutis como a propagando do carro ou da cerveja, onde imagens femininas são veiculadas para estimular a venda, nos indicam, infelizmente, que a mulher continua sendo vista como objeto de barganha, de compra e venda. E se pensamos na cultura do corpo perfeito, do botox e do silicone, perceberemos que ser mulher significa “manter intacta” a sua propriedade, de forma que essa sempre pareça bela e atrativa aos olhos masculinos. Quando um ser humano é tratado como objeto, o respeito desaparece e a violência começa a ser percebida como normal.
Os reflexos da cultura patriarcal podem ser percebidos na lei 11.340 e também na própria atuação do poder judiciário em matéria de violência doméstica. Há muitos anos venho insistindo ser necessário dar “voz” às vítimas. Tanto a definição de violência doméstica como os métodos de intervenção e solução do conflito, no âmbito jurídico, necessitam levar em consideração a perspectiva e as necessidades das vítimas.
Infelizmente, no que tange às inovações em matéria penal, o legislador optou por silenciar as mulheres. A lei 9.099/95 antes aplicada aos casos de lesão corporal leve e ameaça, com o advento da lei 11.340, passou a ser expressamente proibida em situações de violência doméstica. Em palavras simples. Em 1995, visando facilitar o acesso á justiça, foi criada uma lei que permitia a realização de acordos (com a interrupção do processo penal) para delitos castigados com pena não superior a dois anos. Muitas mulheres que chegavam à delegacia da mulher (vítimas de violência doméstica), sofriam agressões (lesão corporal leve, ameaça) castigadas com pena inferior a 2 anos de prisão. Por isso, apesar da lei 9.099 não ter sido criada com o intuito de “resolver” o problema da violência intrafamiliar, acabou se transformando em um instrumento empregado na solução desse problema. Ocorre que devido à falta de preparo do operador jurídico (que insisto desconhece a problemática do patriarcalismo), surgiam sentenças que indicavam a ineficácia social da lei. Juízes ordenavam, como forma de solução de conflitos, aos maridos o pagamento de cestas básicas, compra de flores para as esposas, oferecimento de jantares e até tinta para a impressora do tribunal!
Obviamente, pode-se dizer que, via de regra, os acordos proferidos no âmbito de aplicação da lei 9.099, não satisfazem a necessidade nem das vítimas nem agressores e nem da sociedade (pensando-se em termos de prevenção de conflitos). Porém, essa constatação não anula a especificidade de gênero da resposta penal. Que acordos são forçados, que os corredores dos tribunais mais parecem um mercado, em um alucinado “quem dá mais”, é fato conhecido - inclusive denunciado em trabalhos científicos -, pelos operadores do direito envolvidos com a aplicação da lei 9.099.
As decisões em relação aos casos de violência doméstica apenas indicam que o operador desconhece a realidade com a qual trabalha, que está afundado junto com a vítima e seu agressor numa cultura machista, sendo incapaz de perceber a gravidade da situação que lhe é apresentada por meio do conflito jurídico.
Porém, no caso da lei 9.099, a vítima podia sempre “desistir” da ação e a pena era uma ameaça que “podia” não ser cumprida. O legislador no caso da lei 11.340 decidiu aumentar a pena máxima (apesar de ter diminuído a mínima, adotando um simbolismo pueril) e dificultar a possibilidade de renúncia da ação. Só será esta última admitida “em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o ministério público” (art.16). Ora, é muito comum que a mulher desista da ação. E isso não ocorre só no Brasil, em diversos países de primeiro mundo estudos indicam que a vítima muitas vezes opta por “reatar” com o seu agressor. Sem querer examinar neste pequeno artigo quais são as causas (psicológicas, educacionais, religiosas e econômicas) que levam às mulheres a “voltarem” para os braços de seus agressores, é necessário chamar atenção para o desejo expresso pela vítima. Como já disse diversas vezes, a mulher que apanha não deseja, via de regra, ver o seu companheiro (incluindo aqui o ex) preso. Não é isso o que ela busca quando se socorre do sistema de justiça penal, ela apenas quer que ele deixe de bater. E isso é mais claro ainda quando a mulher tem filhos com seu agressor. Que história ela vai contar para os filhos?
Mas o legislador penal diz a ela que seu interesse não conta. E o mesmo lhe diz o juiz, o promotor (incluindo aqui certos setores do movimento feminista), enfim, todas as instâncias do sistema penal. Então, a mulher abandonada à sua própria sorte afasta-se do sistema de justiça penal. De fato, alguns estudos já indicam uma diminuição no número de “denúncias” feitas pelas mulheres nas DDMs. Se o legislador brasileiro fosse mais sério e realmente fizesse estudos preparatórios - inclusive de caráter comparativo - sobre o impacto de normas em matéria de violência doméstica, provavelmente teria aprendido com a experiência de outros países que a lei penal mais rígida leva apenas ao afastamento da vítima.
Para finalizar quero insistir no machismo associado à falta de preparo do operador jurídico em matéria de violência doméstica e o ilustro comentando três situações. No Habeas Corpus num. 2007.00.2.003672-2C (primeira turma criminal do Tribunal de Justiça do distrito federal), datada de 17 de maio do corrente ano, o tribunal opta pela concessão do recurso, contrariando decisão de uma juíza da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, que se negava em aceitar a renúncia da vítima, mesmo tendo sido esta interposta no prazo legal. Em 28 de junho deste mesmo ano, a segunda turma criminal deste mesmo tribunal, em HC núm. 20070020040022 (relator Nilsoni de Freitas) decide em sentido contrário! O pedido é o mesmo que ensejou o HC anteriormente citado, mas dessa vez o tribunal entende que “na busca da concretização dos fins propostos pela lei 11.340/2006 prevalece o interesse público traduzido na coibição de violência doméstica”. E nessa busca opta por impedir que a vítima exerça o seu direito de renúncia. Sem entrar em uma discussão dogmática, quero apenas salientar que tanto a negativa da juíza no primeiro caso, como a negativa do tribunal no segundo caso, indicam, do ponto de vista jussociológico o total o desconhecimento do operador jurídico em relação ao tema da violência doméstica. Não existe o interesse da vítima, mesmo quando a lei expressa taxativamente quais são os seus direitos.
Em segundo lugar, a alegação de alguns juristas e magistrados acerca da suposta inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha. Um dos argumentos suscitados é a violação do princípio da igualdade entre os sexos, posto que teria sido concedido tratamento diferenciado para o réu quando se trate de lesão corporal com emprego de violência doméstica (vítima mulher). Ocorre que no caso da lesão corporal prevista no art.129, parágrafo 9º, do Código penal, a nova lei (11.340/2006) não autoriza ao juiz a concessão do sursis processual prevista no art. 89 da lei 9.099/95. Apontaria aqui três argumentos, que nos reportam a questão da antinomia, para uma reflexão séria sobre o tema. Em primeiro lugar a lei mais nova (11.340) revoga a anterior se isso for expressamente previsto na própria lei. Nesse aspecto, a proibição do emprego da lei 9.099/95, quer nos “goste” ou não é válida. Em relação ao argumento de discriminação de gênero, este também não convence. A lei 11.340 não fala em homem agente, mas em quem maltrata. Agora se quem bate na prática é o homem, problema dele! Por isso, não se pode aplicar o argumento da violação do princípio da igualdade entre os sexos (CF art.5º. I).
Também acho que o legislador não está violando o princípio da igualdade geral (art. 5º. Caput), tratando de duas maneiras diferentes (sursis ou não) pessoas condenadas à mesma pena. Ocorre que o legislador achou que a violência doméstica, por razões exaustivamente debatidas, é muito mais reprovável do que o ato de bater em um desconhecido na rua. Com base nessa ponderação estabeleceu tratamento mais severo. Como contrariar essa previsão do legislador? O tratamento de um problema específico pode levar ao legislador a ponderar sobre a necessidade de criar mecanismos de intervenção diferenciados, justamente para assegurar os direitos da parte mais “fraca”. A igualdade impõe tratar os iguais de forma igual, mas a situação de Paulo que bate em sua esposa Carla não é igual à situação de João que bate ocasionalmente em outra pessoa em uma briga de bar. Logo não se aplica aqui a idéia da igualdade.
Mas porque juristas renomados e juízes cuidadosos adotam tais posições, tão facilmente criticáveis? Provavelmente isso se deve à presença sutil mas efetiva da cultura patriarcal. Com isso quero dizer que o problema outrora identificado quando da aplicação da lei 9.099/95, sentenças descabidas e sem nenhuma relação com o problema da violência doméstica, ainda persiste na atualidade. É preciso entender que para combater a violência doméstica, no meio jurídico, se faz mister preparar magistrados, advogados e promotores a lidar com a problemática de gênero., este é o desafio que se apresenta.


Por Ana Lucia Sabadell

Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Saarland (Alemanha). Mestre em Direito Penal (Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha) e em Criminologia (programa ERASMUS da União Européia). Participou em pesquisas de sociologia jurídica organizadas pela ONU, pela União Européia e pelo Centro Nacional de Pesquisas da Itália (CNR), dedicando-se ao estudo das relações entre direito penal e gênero. Atualmente participa de pesquisas de Direito Penal e de Criminologia junto ao Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Freiburg, Alemanha). Professora dos Cursos de Graduação e Mestrado em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Justiça
Restaurativa (IBJR).


SABADELL, Ana Lucia. Violência doméstica: críticas e limites da lei Maria da Penha.
Boletim do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte/MG, ano VII, n. 85, março 2008, pp. 5-7.

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