sábado, 26 de abril de 2008

Artigo - O direito ao absurdo

Ainda mais chocante, enojante e revoltante do que o fato de acusados de crime monstruoso alegarem inocência ante as evidências mais acachapantes que os incriminam é o fingimento, o cinismo, a representação (mesmo que de canastrões) em que se mostra o "como se fosse" como o que é. No entanto, na esfera do Direito Penal isso não é novidade alguma. Como os acusados exercem o pleno direito de mentir, para não se incriminarem - e esse é um nó ético que ordenamento jurídico algum já conseguiu desatar -, e como a dúvida sobre a culpa sempre pode favorecer aos mais abjetos facínoras, dentro do princípio in dubio pro reo, a prática advocatícia de defesa não encontra limites na ilogicidade de certas "inocências".

A estratégia preferida da defesa é produzir dúvidas. É negar a autoria sempre, jamais confessar, porque, permanecendo alguma dúvida (por menor que seja) quanto à culpa do réu, ele terá chances melhores de recursos ou de diminuição de penas, mesmo se condenado. E até correrão menos riscos de linchamento - fora ou dentro das prisões - os acusados de crimes horripilantes, como o que vitimou a menina Isabella, se restar alguma dúvida sobre a sua autoria.

Em lugares de penas mais severas, como nos 38 (entre os 50) Estados norte-americanos que adotam a pena capital, muitas vezes a confissão é obtida mediante negociação - em que o criminoso, por exemplo, ao admitir a culpa, troca uma pena de morte por 40 anos de reclusão. Mas num país como o nosso, em que o sujeito condenado a 30 anos (coisa raríssima) é libertado (se primário) depois de cumprir apenas 5, em razão da aberração legal que reduz a um sexto a punição, até das mais terrificantes maldades que pode praticar um ser humano, o que pode ser oferecido, de substancial, em troca da confissão de um réu, para dele se obter a verdade? Quanto vale a redução de uma pena automaticamente redutível?

É claro, então, que, em termos de custo-benefício, mentir deslavadamente, contra todas as evidências de culpa, é sempre o melhor negócio nestes tristes trópicos - pelo menos no âmbito criminal. E nisso muitos advogados criminalistas revelam um talento dramatúrgico extraordinário, ao montarem para seus clientes, com absoluto sucesso absolutório, enredos mirabolantes - como no caso da Rua Cuba e em tantos outros semelhantes.

Há alguns anos, numa mesa de bar, uma advogada criminal me contava, entusiasmada, a absolvição que tinha conseguido para um cidadão que matara a mulher com nove facadas. Essa advogada era filha de quem tinha sido um dos mais brilhantes promotores de Justiça de São Paulo, com atuações memoráveis no Tribunal do Júri. Quando lhe perguntei se seu cliente lhe tinha confessado a autoria, ela respondeu que sim, mas não deu importância alguma a isso. O importante, para a advogada, fora a tremenda historinha que ela inventou e com a qual, contra todas as evidências, "colocou sérias dúvidas no bestunto dos jurados", como me disse. Perguntei-lhe, então, se aquilo não era mais um trabalho de ficcionista, de dramaturga, do que de advogada, ao que ela, num arfar inflado de doutrinas politicamente corretas, pontificou sobre o "sagrado direito de defesa" da pessoa, no que o advogado defensor deveria mergulhar por inteiro, pois não lhe cabia considerar o que era ou o que não era a verdade. Não se tratava, assim, de buscar atenuantes para o criminoso confesso, mas sim de impedir que ele virasse réu confesso - e para isso valia utilizar a estratégia da pura, simples e descarada mentira.

É verdade que, se um certo direito ao fingimento, à mentira, ao absurdo sempre permaneceu como uma inevitável excrescência ética de nossa práxis processual penal, de algum modo isso se continha dentro de certos limites. Acontece que a quebra geral de valores que tem acometido a sociedade brasileira, nos últimos tempos, pela influência exemplar dos que, nas esferas mais altas do poder, mentem descarada e impunemente, inventam eufemismos (do tipo "recursos não-contabilizados", "erros administrativos", "banco de dados") para "substituir" crimes, mesmo sabendo que isso não convence ninguém (com o que pouco se estão lixando), tudo isso parece quebrar, no organismo social, a resistência à indecência. A partir daí, todas as explicações inverossímeis, as justificativas absurdas, as defesas sem nexo, as afirmações notoriamente contra os fatos passam a ser usadas sem a menor cerimônia, sem qualquer laivo de vergonha.

É claro que perante as câmeras da televisão, nestes tempos de Big Brother, em que a vida real e a representação se misturam num amálgama de exibicionismo compulsivo, indigência mental e desvalorização absoluta da dignidade humana, o "direito" ao fingimento, à mentira, ao cinismo e ao absurdo apenas se potencializa, dentro do jornalismo-espetáculo. Aliás, aqueles que lançam as maiores diatribes contra o comportamento da mídia, acusando-a (não sem razão) de explorar as emoções resultantes das desgraças humanas, para segurar boa audiência, são os maiores cativos dessa audiência, procurando sempre, no controle remoto, o canal que está conseguindo exibir o que é mais chocante. Mas isso também faz parte do "direito" vigente ao fingimento e à hipocrisia.

Apesar de tudo, sejamos otimistas e consideremos que o fundo do poço é o melhor lugar para se obter impulso para sair dele. O sacrifício de uma linda menina de 5 anos, da maneira mais escabrosa que jamais alguém poderia imaginar, simboliza o fundo do poço moral a que chegou a sociedade brasileira. Então, que a imagem da pequena Isabella, com seu sorriso de doce inocência, seja para nós uma inspiração, na penosa reconstrução de nossos valores.

Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net


Estadão, 26/04/2008.

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