quarta-feira, 16 de abril de 2008

Artigo - Mulheres encarceradas e a banalização da barbárie

Em novembro de 2007, veio ao conhecimento público a barbárie cometida contra uma adolescente mantida presa por 24 dias numa cela com mais de 20 homens na Cadeia Masculina de Abaetetuba, no estado do Pará. Durante o tempo em que esteve detida, a adolescente foi vítima, sistematicamente, de violência sexual expressa por estupros, abusos sexuais diversos, bem como constrangimentos, ameaças e atentados à sua integridade física. Desde o momento em que tal fato foi deflagrado, as autoridades responsáveis por sua custódia (representantes dos Poderes Executivo e Judiciário locais) apressaram-se em eximir suas responsabilidades sob a alegação que desconheciam o fato de sua menoridade, uma vez que, segundo eles, a adolescente assim não o informara desde, inclusive, suas três detenções anteriores nesta mesma cadeia. O que parecia, as­­sim, emergir como repreensível do episódio era o fato de que se tratava de uma adolescente, fazendo supor que a “simples” condição de mulher sujeita a tal ordem de vio­lações não perpetraria, na mesma medida, um quadro de barbárie. Fez supor ainda que a ocorrência de um episódio dessa dimensão, impensável em um Estado democrático ratificador das principais normas internacionais sobre tratamento de reclusos e sobre a erradicação da violência de gênero, estaria naturalizada a ponto de eximir responsabilidades, o que em muito pode explicar a primeira reação das autoridades e mesmo da opinião pública.

A história dessa jovem, em lugar de configurar um caso isolado, é, antes de tudo, representativa e bastante sintomática do modo como o Estado brasileiro lida com a questão do encarceramento feminino, ora por sua histórica omissão, ora através de sua perversa atuação. Nunca é demais lembrar que as mulheres encarceradas vivem neste País talvez o lado mais nefasto de uma política de controle social que “privilegia” os pobres, convertendo a questão social em questão criminal. Recrutadas em sua imensa maioria juntos às classes populares, essas mulheres ostentam perfis de exclusão e de “alta vulnerabilidade social” — para usar um termo caro às mais contemporâneas políticas voltadas a essas populações, quer às “salvacionistas”, quer àquelas que em nome da defesa da sociedade promovem verdadeiras práticas de extermínio — mas, em diferença aos encarcerados, ostentam indicadores socioeconômicos ainda pio­res, bem como carregam as marcas da desigualdade e da violência de gênero que caracterizam tão singularmente as relações sociais no Brasil. Não obstante a quase inexistência de dados oficiais, um esforço de conjugação entre pesquisas acadêmicas e pontuais levantamentos censitários apontam, em São Paulo,(1) que a maioria das presas (53%) é negra ou parda, 51% relatam violência doméstica, 87% são mães, mas apenas 26% são casadas. A chefia de família, como os dois últimos dados fazem supor, é assumida pela maioria delas (57%), e a baixa renda é garantida pelo trabalho precário (80%), o que, somado ainda à baixa escolaridade (65% não completaram sequer o ensino fundamental), coloca a mulher encarcerada na base da pirâmide social, sujeita assim às múltiplas discriminações e iniqüidades que sua condição impõe. Com o encarceramento, os já frágeis laços familiares mantidos em torno dessa mulher acabam por se esfacelarem, já que, em apenas 20% dos casos, seus filhos ficarão aos cuidados do pai — número que contrasta exageradamente quando a situação de prisão recai sobre o homem (87% ficam com as mães).

E é certamente com a prisão que toda uma sorte de negligências e abusos por parte das instân­cias públicas por ela responsáveis vêm agravar ainda mais severamente a situação da mulher encarcerada. Representando menos de 5% da população carcerária, às mulheres presas não é destinada sequer a medida primeira da dotação de vagas. Segundo informação do Depen/MJ de junho de 2007, 57,7% das presas no País estão detidas em cadeias públicas e distritos policiais, enquanto 15% dos homens estão nessa condição. Amontoadas em cadeias públicas e distritos policiais em todo o País, muitas delas mistas, elas vêem seus direitos mais elementares serem violados continuadamente, desde à saúde (inclusive sexual e reprodutiva), até à sua liberdade sexual, integridade física e à vida. Por todo o País encontram-se histórias como a de Abaetetuba, em que mulheres confinadas em cadeias mistas com ou sem celas separadas, ou mesmo em unidades para mulheres, mas sob a guarda de agentes do sexo masculino, relatam os inúmeros constrangimentos a que são submetidas aos poucos ouvidos dispostos a ouvi-las. Em março de 2007, o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, do qual o IBCCRIM é integrante, reuniu esses e outros testemunhos, relatos e dados e encaminhou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a fim de instruir uma audiência temática na qual o governo brasileiro foi instado a participar. Não se tratava naquele momento, como ainda hoje não se trata, de identificar “culpados” e rapidamente distribuir punições individuais, que confortarão consciências, mas em nada alterarão a realidade. Trata-se, antes, de reconhecer o quinhão de cada um no dramático processo que representa o encarceramento neste País, e de estabelecer um esforço para compreender as razões não apenas da barbárie que se tem a partir dele promovido, mas, sobretudo, das formas contínuas de banalização e perpetração dessa barbárie.

Nota

(1) Os dados apresentados referem-se ao Censo Penitenciário Funap/SAP/SP, 2002, com exceção dos relativos à violência doméstica, chefia de família e ao trabalho, que se referem ao levantamento realizada pelo Coletivo de Feministas Lésbicas em parceria com o Ministério da Saúde, em 1996, na Penitenciária Feminina do Tatuapé/SP.


Boletim IBCCRIM nº 182 - Janeiro / 2008

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