domingo, 20 de abril de 2008

Artigo - Justiça restaurativa, um novo olhar





Por Pedro Scuro Neto, Neemias Moretti Prudente

A justiça restaurativa é um movimento de abrangência mundial pela reconfiguração do sistema penal mediante participação de todas as pessoas principalmente vítima e infrator, e eventualmente, comunidades afetadas por uma infração. O objetivo de processos JR é reparação do dano (sentido lato) e a restauração dos relacionamentos individuais e coletivos. O modelo tem raízes remotas em métodos de resolução de conflitos usados por comunidades indígenas de diversos países. No mundo moderno, sua referência histórica é o ajuizamento participativo, a Justiça “negociada, informal, flexível” que ajusta regras genéricas às particularidades da situação. Esse é o modo de decidir ex aequo et bono, ou seja, acentuando o que é “direito e bom” e dispensando sutilezas jurídicas(1).

A evolução recente do sistema de Justiça, no entanto, acabou dando ênfase, mais do que propriamente ao Direito, ao poder coercitivo do sistema, que domina a nossa compreensão de crime e justiça há apenas dois ou três séculos,(2) segundo dois modos de dispor e aparelhar a ação social. De um lado, o modo burocrático, que requer estruturação extremamente padronizada de tarefas na base da racionalidade processual (“seguir procedimentos e fazer o que lhe mandam”), e, doutra banda, o modo negocial, em racionalidade instrumental, medida em produção, preço e emprego(3).

Nos anos 70, com a crise do ideal ressocializador e da idéia de tratamento através da pena privativa de liberdade, viu-se o desenvolvimento de idéias de restituição penal e reconciliação do infrator com a vítima e com a sociedade. Houve então um debate sobre as alternativas para a Justiça, inspirada no Abolicionismo e também fruto do forte movimento vitimológico, surgindo ai o modelo restaurativo, como uma outra forma de resolução de conflitos(4). Em 1974, no Canadá, ocorreu uma das primeiras experiências contemporâneas, quando dois acusados de vandalismo se encontraram com suas vítimas e estabeleceram pactos de

Restituição(5). Em 1989, a Nova Zelândia introduziu o modelo restaurativo na legislação infanto-juvenil(6).

A partir daí multiplicaram-se as experiências com práticas restaurativas e, atualmente, temos várias experiências, modelos e marcos jurídicos de Justiça Restaurativa e práticas similares na África do Sul, Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Escócia, Estados Unidos, Finlândia, França e Noruega. Em 2002, a Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social ONU recomendou a adoção de processos JR por todos os países. Esses processos englobam o próprio conceito de justiça restaurativa, que pressupõe a participação de vítima e infrator, e, quando apropriado, outros indivíduos ou membros da comunidade afetados pelo crime. Procedimentos restaurativos são ativados com a mínima participação de um coordenador, que pode se dar através da mediação, câmaras restaurativas e círculos de sentença.

O movimento restaurativo define “justiça” segundo três posturas básicas: (1) infrações são atos lesivos, acima de tudo, a pessoas e relacionamentos acima de tudo; resultam em danos a vítimas, famílias e aos próprios infratores; (2) A justiça deve ser o objetivo essencial do processo legal e deve ser obtida prioritariamente através de reconciliação entre as partes e reparação dos danos advindos da infração; 3) Conflitos são melhor resolvidos facilitando-se o envolvimento de vítimas, infratores, famílias e comunidades(7).

O modelo restaurativo é aquele que baseia-se num processo de consenso, em que as partes, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causadas pelo delito. O objeto da justiça restaurativa não é o crime em si, a infração à norma penal e à perspectiva do Estado, focos convencionais da intervenção penal. A justiça restaurativa enfoca as conseqüências do crime e as relações sociais afetadas pela conduta deletéria.

Nos processos restaurativos “trocam-se as lentes”, é um olhar para o futuro, baseado numa ética de diálogo e cooperação, tendo como norte a democracia participativa. A justiça convencional, por outro lado, é um olhar para o passado, direcionado à culpa, visando à aplicação da pena, centrado exclusivamente no Estado e no infrator. A Justiça Restaurativa pergunta: o que pode ser feito agora para restaurar os danos causados pelo malfeito?(8)

No Brasil, a JR está sendo assimilada, desde 1998, em diversos lugares, com resultados bastante positivos(9). Os pioneiros desses projetos estão compartilhando suas experiências com outros interessados e o tema vem ganhando cada vez mais repercussão na opinião pública e comunidade acadêmica. No Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei n.º 7.006/2006, para regulamentar a aplicação de justiça restaurativa na esfera criminal. Em 17 de Agosto de 2007, no Auditório da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, realizou-se a Assembléia Geral de fundação do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa (IBJR), que já conta com quase uma centena de membros.

A Justiça Restaurativa não é “uma panacéia, um remédio para todos os males do modelo retributivo, mas introduz novas e boas idéias”(10). Seus excelentes resultados e a sua extraordinária acolhida pelas pessoas prejudicadas por infrações no levam, no entanto, a debater e aperfeiçoar o modelo, na verdade o único caminho realmente inovador surgido na Justiça nas últimas décadas, curando feridas e restaurando relações, contribuindo para a construção de uma cultura de paz.

Notas:

(1) SAEPE CONTINGIT (1306); BERMAN.

(2) BRAITHWAITE (apud SICA, 2007: 1)

(3) BAUMAN, (1994)

(4) PALLAMOLLA, (2006: 192)

(5) SICA, (2007: 23)

(6) MAXWELL, (2005: 280)

(7) SCURO NETO, (2003)

(8) GOMES PINTO, (2005: 22)

(9) tualmente há projetos piloto patrocinados pelo PNUD e Ministério da Justiça em Brasília, Porto Alegre, São Caetano do Sul, São Paulo e Guarulhos.

(10) SCURO NETO, (2000: 102)

Pedro Scuro Neto, doutor em Ciências (Ph.D.) pelo Departamento de Políticas Sociais e Sociologia da Universidade de Leeds (Inglaterra), mestre em Ciências Sociais (Praga). Diretor do Centro Talcott. Membro fundador e conselheiro do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa IBJR.

Neemias Moretti Prudente, pesquisador do Núcleo de Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania (Unimep/SP). Mestrando em Direito Penal pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep/SP). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e Universidade Federal do Paraná (ICPC/UFPR). Membro fundador e conselheiro do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa - IBJR. Embaixador de Cristo. Editor do blog: www.infodireito.blogspot.com


SCURO NETO, Pedro; PRUDENTE, Neemias Moretti. Justiça restaurativa, um novo olhar. O Estado do Paraná, Curitiba, 20 abril 2008. Direito e Justiça, p. 4.

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