terça-feira, 15 de abril de 2008

Artigo - Da possibilidade da tortura, em casos excepcionais, no estado democrático de direito: os fins justificam os meios?

Omar Hong Koh

Bacharel em Direito pela USP, pós-graduando (especialização) em Direito Penal pela ESMP-SP, ex-aluno do Laboratório de Iniciação Científica do IBCCRIM (2006)


Temos um novo herói nacional e o seu nome é Capitão Nascimento. Para quem ainda não assistiu, trata-se do personagem principal do mais comentado filme do ano — “Tropa de Elite” —, interpretado pelo competente ator Wagner Moura. Nesse filme, o Capitão Nascimento, que pertence ao Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope), é retratado como um policial honesto e implacável contra os bandidos, sendo que no seu mister lança mão de métodos ilegais e nada ortodoxos, tais como a tortura, a invasão de domicílios sem mandado judicial e até mesmo a execução sumária de suspeitos — tudo isso se passando no ambiente das favelas cariocas.

A classe média brasileira está cansada da violência e impunidade dos criminosos, razão pela qual aprova os métodos cruéis e ilegais empregados pelo “exemplar” policial contra estes.(1) É nessa perspectiva que analisaremos, nesse breve artigo, sobre a possibilidade do uso de tortura como instrumento de combate à criminalidade em casos excepcionais — em nome da segurança pública, mas, obviamente, em detrimento dos direitos fundamentais do homem.

Há autores(2) que admitem a tortura em situações excepcionais, como por exemplo, a fim de salvar uma vida humana frente a um assassino.(3) Nesse sentido, três teses(4) legitimariam o uso da tortura pelo Estado: 1) Este tem o escopo de cumprir a sua obrigação de evitar prejuízos e perigos aos seus cidadãos; 2) a violência estatal, consubstanciada na tortura, seria típica, mas não ilícita (antijurídica), já que o fato teria sido praticado em legítima defesa de terceiro ou em estado de necessidade justificante; 3) O Estado deve defender, prioritariamente, a dignidade humana das vítimas ou das potenciais vítimas, em relação à dignidade humana do delinqüente.

Sem embargo, não podemos concordar com tais justificativas para o emprego da tortura pelo Estado, haja vista que: 1) o Estado, em sua atuação, deve respeitar um dos seus fundamentos, que é a dignidade humana (valor que não comporta exceções legais, diferentemente da vida e incolumidade física), sendo indiscutível que a tortura nada tem a ver com esta; 2) a legítima defesa de terceiro e o estado de necessidade justificante (causas de exclusão da ilicitude) só podem ser alegadas por indivíduos, ou seja, não podem ser argüidas quando o agressor é o Estado.(5) Além disso, ambas causas envolvem a ponderação de interesses, ocasião em que a dignidade humana deve sempre prevalecer; 3) Não há dúvidas que uma pessoa, ao cometer um crime, viola a dignidade humana da vítima. Porém, isso não legitima o Estado a atacar a dignidade humana do autor do delito, na medida em que sua superioridade moral frente ao delinqüente reside precisamente no fato de não utilizar as mesmas práticas repugnantes deste.(6)

Ademais, há que se refletir se referidas teses e contra-teses se aplicariam no combate ao crime organizado e ao terrorismo. Em relação às três teses, parece que, com muito mais razão, dever-se-ia admitir a tortura nesses graves delitos, tendo em vista que ambos são sobremodo perniciosos à vida em sociedade, vitimando muito mais pessoas do que a criminalidade comum. A partir de 1987, por exemplo, a Suprema Corte e o governo de Israel legalizaram a prática de tortura pelo Serviço de Segurança Geral (SSG), com o apoio da maior parte da sociedade israelense, uma vez que concordaram que seria um instrumento eficaz e legítimo para combater o “terrorismo” árabe, notadamente o palestino. Insta lembrar, porém, que, em 1999, essa mesma Corte, em decisão histórica, passou a proibir o uso de tortura pelo SSG, ressalvando seu uso somente se com intuito de salvar vidas (alegação de “defesa da necessidade”). Além disso, naquela ocasião, os juízes decidiram que caberia ao Legislativo permitir ou não a sua prática.(7)

Claus Roxin, com efeito, aduz que Israel é um Estado cuja existência está em perigo por causa do terrorismo e que se encontra num estado similar ao de guerra, sendo que nessa hipótese é plenamente justificável que se substitua o Direito penal do cidadão pelo do inimigo (na expressão de Günther Jakobs), o qual implica a retirada de alguns direitos fundamentais do homem (tais como a proibição de ser torturado).(8) Além disso, o primeiro professor defende também a idéia de uma “exculpação supralegal”,(9) que seria, na verdade, uma causa de exclusão de culpabilidade pela presença do estado de necessidade exculpante (não se podendo olvidar que não é possível a exclusão da ilicitude pelo estado de necessidade justificante, como já sustentado acima).(10) Nessa hipótese de “exculpação”, no qual se poderia torturar, estaria o caso de “ticking time bomb situa­tions” (quando o agente esconde uma bomba para explodir em determinado local e hora, a explosão é iminente e ameaça milhares de pessoas). Todavia, esse caso, pelo fato de ser tão raro de se verificar na prática — como bem advertido pelo mestre alemão —, não tem o condão de rebaixar a eficácia preventiva geral de proibição da tortura.(11)

Certo é que, no Brasil, não seria possível adotarmos a tortura sob nenhuma razão. Em primeiro lugar porque as três teses supracitadas que tentam justificá-la não se sustentam em face das respectivas contra-teses. Em segundo, porque não temos terrorismo tal como em Israel. Em terceiro lugar, urge desmistificar a idéia de que a criminalidade organizada aqui é tão organizada assim,(12) sendo evidente o equívoco feito por alguns de conformá-la como uma inimiga a ser derrotada numa guerra.(13) Aliás, ressaltemos que nem em caso de guerra externa a tortura é permitida no direito internacional, motivo pelo qual refutamos, categoricamente, qualquer idéia de “exculpação supralegal” na tortura.

Por fim, em quarto e último lugar, porque a idéia de Direito Penal do inimigo não se coaduna com o Estado de direito. Nesse sentido, ensina Luigi Ferrajoli, “a razão jurídica do Estado de direito, de fato, não conhece amigos ou inimigos, mas apenas culpados e inocentes. Não admite exceções às regras senão como fato extra ou antijurídico, dado que as regras — se são levadas a sério, como regras, e não como simples técnicas — não podem ser deixadas de lado quando for cômodo. E na jurisdição o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja, as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade, e como tais têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos fáceis; enquanto o fim não é mais o sucesso sobre o inimigo, mas a verdade processual, a qual foi alcançada apenas pelos seus meios e prejudicada por seu abandono”.(14)

Notas

(1) O interessante é que essa mesma classe média passa a refutá-los quando se sente ameaçada por essa violência que ela mesma aprovou. Enfim, aprova-a para os bandidos, mas não para ela, que se julga inocente. Lembremos, por exemplo, que o Brasil foi um dos últimos países a definir o crime de tortura, por meio da Lei 9.455 de 7 de abril de 1997, que só foi editada graças ao clamor popular face às imagens televisionadas de policiais torturando e matando pessoas inocentes na Favela Naval, no Município de Diadema.

(2) Jerouscheck/Kölbel, Brugger; Pawlik, Kisse, apud Roxin, Claus. “¿Puede admitirse o al menos quedar impune la tortura estatal en casos excepcio­nales?”, Cuadernos de Política Criminal, II, nº 83, CESEJ, 2004, pp. 23-29.

(3) Roxin (ob. cit., p. 23) relata que em setembro de 2002 um menino de 11 anos de idade foi seqüestrado na Alemanha por um jovem de 28 anos. Este foi detido pela Polícia, mas não revelou o paradeiro da vítima, ocasião em que foi ameaçado de ser torturado. Diante dessa ameaça o jovem confessou, mas o menino fora morto pelo autor imediatamente após o seqüestro. Desde que se tem notícia desse caso na Alemanha em fevereiro de 2003, passou-se a discutir se a ameaça realizada pela Polícia foi lícita ou não, bem como se as informações dadas pelo autor do crime em razão da ameaça poderiam ser usadas para provar sua culpabilidade ou não.

(4) Roxin, ob. cit., p. 25.

(5) Mário Coimbra (Tratamento do Injusto Penal de Tortura, São Paulo, RT, 2002, pp.144-145) enumera as normas de direito internacional dos direitos humanos: O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, não obstante permitir no seu art. 4º, que os Estados-parte possam, em situação excepcional, derrogar as obrigações decorrentes do aludido instrumento, ressalva, no § 2º do mencionado artigo, que o permissivo em questão não alcança, dentre outros, o art. 7º, que trata da proibição da tortura. Nesse mesmo sentido o Pacto de San José da Costa Rica (art. 27) e a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis (art. 2º, § 2º); Já a Convenção Européia de Direitos Humanos em seu art. 15, § 2º, não permite a derrogação nem a suspensão do art. 3º, que reconhece o direito da pessoa humana de não ser torturada nem mesmo em caso de guerra ou de qualquer outra instabilidade política que ameace a nação (grifo nosso). Nesse diapasão, temos a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (art. 5º). Vale lembrar que as normas de Direito Internacional geral têm como fonte principal o costume (direito consue­tudinário internacional), ou seja, essas normas decorrentes da prática reiterada dos Estados são consideradas normas imperativas (tais como a vedação da tortura e maus tratos, segundo o Comitê de direitos humanos da ONU), aplicando-se a todos os Estados (erga omnes), independentemente de serem ou não partes de um tratado que expressamente contenha a norma – v. Combatendo a Tortura: Manual de Ação, Anistia Internacional, pp. 76-77.

(6) Roxin, Claus, op. cit., pp. 26-29.

(7) Combatendo a Tortura: Manual de Ação, Anistia Internacional, p. 25.

(8) Interessante é que logo após o ataque terrorista de 11/09/2001 no WTC, nos EUA, o professor da Harvard Law School, Alan Deshowitz, de origem judia, também passou a defender o uso da tortura em casos excepcionais, envolvendo o terrorismo, vide: http://www.alandershowitz.com/publications/docs/torturewarrants2.html

(9) Idem, ibidem, p. 32.

(10) Sobre o estado de necessidade justificante e exculpante, vide Prado, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro, 3ª ed., São Paulo, RT, 2002, pp. 316-322.

(11) Idem, ibidem, pp. 30-33.

(12) Revista semanal Carta Capital, nº 467, ano XIII, 24/10/2007, produziu estudo de 23 páginas sobre a Segurança Pública, em sua série “Retrato do Brasil” nº 4, intitulada “Cidades: segurança – O medo dos pobres”.

(13) Nesse sentido são as críticas de Martins, Sérgio Mazina, “Esboço sobre a importância da tortura”, Boletim do IBCCRIM, nº 130, setembro de 2003.

(14) Ferrajoli, Luigi, Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, 2ª ed., São Paulo, RT, 2006, p. 767.

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