quarta-feira, 16 de abril de 2008

Artigo: A cultura dos direitos humanos no brasil: entre autoritarismo social e emancipação histórica

Quando se fala em direitos humanos, no Brasil, certamente se fala de uma cultura social que, do ponto de vista mais amplo, é ainda muito recente. Certamente, fomos inspirados por certos ideais liberais, quando do período imperial, e o constitucionalismo entrou para a cultura nacional imbuído de liberalismo e positivismo. Apesar de termos respirado ares europeus, especialmente a partir da vinda da família real para o Brasil, é fato que o enraizamento de uma cultura que fala a linguagem dos direitos iguais para todos se estruturou de modo muito mais recente em nossa identidade nacional. Ainda mais recente é a generalização da fala sobre os direitos humanos. Estes vão ser efetivamente recepcionados no Brasil a partir do período da repressão, como um desdobramento das manifestações populares, políticas e estudantis, que se organizam para formar movimentos de protesto que vão encontrar acolhimento reivindicatório e justificação no interior do discurso dos direitos humanos. Desde então, a politização do tema permitiu a formação de uma cultura de pressões, que, em seu conjunto, permitiram com que, quando da constituinte de 1985, o debate sobre direitos humanos ocupasse o centro da agenda política, tornando constitucional a lógica segundo a qual a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) deve presidir a dinâmica dos valores internos do texto constitucional. Se a Constituição de 1988 tem algo de inovador é o fato de colocar o tema dos direitos humanos como um tema anterior ao da estruturação do Estado, além de salvaguardar diversos aspectos dos direitos humanos, como os direitos e deveres individuais (art. 5º), os direitos políticos (arts. 14 a 16), os diversos direitos sociais (arts. 6º a 11, e 193 a 232), os direitos ligados ao meio ambiente (art. 225).

Então, o caráter recente da recepção desta cultura, socialmente fundamental, ainda causa todo tipo de reação por parte da opinião pública, que revela e registra também, todo tipo de desconhecimento e preconceito sobre uma matéria que ainda decifra como estrangeira a si mesma. Quando se fala em “direitos humanos”, normalmente se é interpelado pela mídia: “Mas, você é a favor dos direitos humanos dos bandidos?”. Esse recorte, que permite essa pergunta, e drena o diálogo sobre os direitos humanos na esfera pública para o campo do Direito Penal repressor, é já uma forma de revelação deste espírito de incompreensão do tema. Quando um repórter nos interpela para repetir esta célebre pergunta, já tornada uma cansativa e repetitiva linguagem midiática no campo dos direitos humanos, opera mais uma vez o reducionismo indevido na matéria. A pergunta esgota a possibilidade de ser respondida pelo grau de incompreensão que gera na própria opinião pública; ela faz mais do que reproduzir avarias na ideologia sobre o tema, ela rompe com a oportunidade de se avançar num campo tão fundamental quanto o da cidadania. Por isso, a reação devida quando o assunto caminha para este lugar comum do discurso é perguntar ao repórter: “Qual a sua profissão? Não é a de repórter? Certo, repórter lida com liberdade de imprensa e liberdade de imprensa é um direito humano fundamental”. Ainda mais, é possível esclarecer ao repórter que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º inc. IX dispõe que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Portanto, fica claro que quem defende “direitos humanos” não defende somente “bandido”, mas defende também “repórter”!

Temos que nos questionar por que a pergunta sobre os direitos humanos somente surge em momentos em que a exposição do tema ao clichê compromete a qualidade do debate. Mais do que a defesa do direito de se exprimir do repórter, está antes a defesa de todos os indivíduos, sem diferença de raça, cor, sexo, condição sócio-econômica, do seu direito de existir (art. 5º, caput)! Portanto, quem defende direitos humanos, em verdade, defende integralmente as diversas facetas pelas quais se afirma a própria existência, como possibilidade de ir e vir, de trabalhar, de se comunicar, se expressar, de exercer crença e culto, de se associar, de se vincular a partidos, de ir à escola, de se integrar socialmente, de se ver livre da violência e da intolerância racial, de contar com garantias de trabalho, de contar com o Estado em caso de acidente de trabalho, de poder se aposentar com dignidade, de acreditar nas instituições judiciárias, de poder recorrer à polícia e nela ver um lugar de realização da cidadania, prestação de serviços à comunidade e proteção da sociedade. Então, por que manter o recorte enviesado e insistir na pergunta difamatória, em uma pergunta que não é neutra, e que, ao perguntar, ofende? Por que manter o registro de uma lógica que insiste em se ver fora da identidade de direitos que condicionam a sua própria possibilidade de existir, como se esse discurso não fosse também seu, e, ao mesmo tempo, de todos nós? Ora, porque estamos por demais acostumados a pensar autoritariamente, e não democraticamente. E aí está um registro histórico deste país: a Constituição que consagra direitos humanos em ampla escala é só de 1988; a redemocratização é pós-ditadura; a assinatura da maior parte dos pactos internacionais é da década de noventa do século passado. Tudo é muito recente, e, por isso, a cultura de cidadania, que se expande e que se alarga no senso comum, ainda se realiza com tropeços e dificuldades, porque, como processo, a cultura carece de tempo social de maturação e desenvolvimento. Ainda não deixamos de ecoar traços de um passado prenhe de experiências marcadamente centradas em uma identidade escravocrata, anti-republicana, patriarcalista, patrimonialista e machista.

Quando um pai de família afirma “Mas, é porque não foi com seu filho!”, exprime um justo brado de revolta pela injustiça sofrida, mas, ao mesmo tempo, brada por punições severas e ilegalidades. Nesses casos, se pode repetir: “De fato, é necessário que este indivíduo seja sentenciado e apenado, mas respeitando as garantias constitucionais dadas a todos os indivíduos da sociedade pela Constituição Federal de 1988”. Isto porque se entende que, quando se pode excepcionar o tratamento dado a um (“eu” não quero ser torturado) e dado a outro (o “bandido” pode ser torturado), o que se está a fazer é exatamente violar a garantia da cidadania e da legalidade, segundo a qual todos serão tratados da mesma forma (art. 5º, inc. II). Se a gravidade do delito de sangue leva à comoção da opinião pública, por que o assalto aos cofres públicos pela corrupção nominada no Brasil não leva à mesma comoção? Ora, que contra-senso é esse? Quando um indivíduo é brutalmente assassinado, aí se vê motivo para pena de morte, linchamento etc. Mas, os prejudicados nas filas dos hospitais públicos, os abortos não realizados em hospitais públicos, a carestia de dinheiro para combate à fome, falta de policiamento que leva à multiplicação de homicídios são muito mais numerosos que as vítimas desses bandidos que atuam singularmente! Deveriam os corruptos ser também levados à pena de morte? Se a coe­rência incoerente do senso comum for mantida, sim. Mas, quem pensa na linguagem dos direitos humanos pensa na linguagem não da intolerância, mas na linguagem do Estado Democrático de Direito, na seriedade e consolidação das instituições, no desenvolvimento de condições de justiça distributiva, e em formas de afirmação e realização da dignidade da pessoa humana a partir de um convívio e de uma socialização eqüitativa em oportunidades e em gestos de integração social. Quem pensa na linguagem dos direitos humanos pensa por uma atitude reflexiva que valoriza a perspectiva de uma interação social que valorize a vida, em suas diversas manifestações, artísticas, culturais, ambientais, econômicas, produtivas, de modo a apostar na integração social a partir de incentivos à democracia, à tolerância, à compreensão das diferenças, ao diálogo profícuo, à valorização da diversidade, à integração multicultural dos povos. Se há alguma coisa estranha nisso tudo, então me digam, onde está o erro de quem pensa com os direitos humanos? Quando passarmos a pensar a partir da unidade complementar dos diversos direitos humanos, teremos algo pelo que lutar em comum, um reforço fundamental para a vitalidade da cidadania brasileira.

Eduardo Carlos Bianca Bittar
Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos e professor da Faculdade de Direito da USP.


Boletim IBCCRIM nº 182 - Janeiro / 2008

Um comentário:

Anônimo disse...

Passando para ler o blog. Grande abraço.

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