sábado, 26 de abril de 2008

Artigo: Crime é a nova forma de funcionamento da sociedade

O delito tem-se convertido em uma das formas de funcionamento da sociedade global, e requer a utilização de uma tecnologia de ponta para que tenha êxito. Os delinqüentes das altas esferas utilizam com maestria os meios que a sociedade lhes dispõe para infiltrar-se nas estruturas legais da economia e das finanças mundiais. Nunca vão à prisão ou são condenados. O Estado de Direito, que acreditávamos estar assentado e destinado a avançar ao mesmo ritmo que o crescimento econômico e os avanços tecnológicos, titubeia.

Uma evidência salta aos olhos, ainda que seu enunciado seja um tabu: as finanças modernas e o crime organizado sustentam-se mutuamente. Tanto uma como outro necessitam para expandir-se que se suprimam os regulamentos e os controles estatais. Em 1990, o Gafi, organismo criado pelo G7 para lutar contra a lavagem de dinheiro a nível internacional, fez as primeiras previsões do fluxo financeiro, estimando a cifra de 122 bilhões de dólares o volume total de negócios. Entretanto, há quem avance esta cifra aos 500 bilhões de dólares por ano.

Os mercados ilegais têm muito em comum com o resto das indústrias legais.

Existem compradores e vendedores, majoritários e minoritários, intermediários e distribuidores. Têm uma estrutura de preços, balanças, ganhos e, raramente, perdas. Ocorre uma terrível contaminação de toda a economia.

Estamos, portanto, ante uma mudança de perspectiva. Como existe uma esfera financeira desconectada da economia real, tudo o que ocorre nesse planeta virtual escapa por completo ao estrabismo convergente, ajudado, ademais, por uma forte miopia de policiais, juízes, políticos, banqueiros, empresários. Este universo incorpóreo navega pelos mercados financeiros burlando-se do espaço e do tempo, dos Estados e de suas polícias, do Fisco e de seus juízes. Logo estarão os demais, os honestos sobreviventes, com os meios insuficientes para escapar das duras leis da gravidade dentro da economia e da vida ordinária terrena.

Com os pés no solo, os que vivem no mundo real, e dentro da realidade da vida dura, estes últimos sempre têm quer prestar conta de algo ou têm algo a temer, e a polícia, os políticos ou os juízes, todavia, podem pegá-los. Neste reduzido mundinho, onde sobrevivem os simples mortais, vítimas de um sistema perverso e implacável, a policia persegue aos pequenos delinqüentes.

No grande universo das finanças virtuais, pelo contrário, já não há policiais, e os ladrões são tão e muito mais criminosos que os demais. Entretanto, não há promotores de Justiça com um discurso maniqueísta e simplório para persegui-los e encarcerá-los.

Em quase todo o mundo o processo de lavagem de dinheiro obedece às características muito peculiares. Entretanto, o Brasil, talvez em razão de sua herança político-cultural e acentuada disciplina das camadas mais pobres, oferece algumas características próprias.

Desta forma, existem incontáveis maneiras de lavagem de dinheiro e as mais comuns são aplicação no mercado imobiliário, “apostas” em cassino, apólice de seguros, sentenças judiciais, o empréstimo endossado, a revendedora de carros usados, o “ferro-velho” e, uma das mais bizarras, através de instituições religiosas (igrejas).

É incrivelmente surpreendente como, no Brasil, as instituições religiosas, ou igrejas, prosperam vertiginosamente, superando os setores produtivos que trabalham arduamente. Soa também curioso como é atrativo o poder político aos chamados “pastores”, “bispos”, “apóstolos”, tanto participando ativamente na vida política, quanto em estreita relação com os políticos mais influentes.

Ressalte-se que essa “bênção” não é um privilégio dos mercadores da fé no Brasil. Também na Espanha, na Aldeia Sevilhana de “Palmar de Troya”, despontou, de um simples casebre, um colossal castelo, tendo à frente um indivíduo que se auto-denominou “Papa Gregório” ou o “Papa de Palmar de Troya”. Investigações policiais descobriram que esta Igreja servia para lavagem de dinheiro. Vultosas somas eram “doadas” à igreja e depois era feita a inversão mediante o pagamento de comissão de, em média, vinte por cento.

A lavagem de dinheiro através dos mercados imobiliários, tal qual virou uma praga na cidade litorânea espanhola de Marbella, também constitui uma atrativa forma de despistagem de dinheiro no Brasil.

Como adrede citado, no mundo virtual, onde não existem policiais, juízes, tudo é só deleite, e a simbiose da inescrupulosidade reina absoluta. Sem riscos de perturbação ou ameaças de expulsão do paraíso onde, além de reinar a impunidade crê-se, tranqüilamente, que o crime compensa. Entretanto, as instituições precisam sobreviver, o poder político precisa manter-se para adestrar e conservar resignada uma grande legião de menos favorecidos, os que vivem à margem da cidadania. Para isso, defendem e instituem sanções penais mais severas e perseguem cruel e implacavelmente os suspeitos e autores de delitos pequenos, para meros efeitos de estatísticas criminais. Atacam os efeitos ignorando ou fingindo ignorar as causas.

Este é o cenário detestável do mundo real, oposto ao mundo virtual e paradisíaco dos afortunados criminosos insuspeitos e “honrados homens de bem”. A lei, com todo o seu rigor, a implacabilidade de alguns cegos promotores de Justiça, do engodo do adágio “dura lex sede lex”, do qual se valem verdugos juízes (que manda para a prisão e nela mantém o indivíduo que furta um frasco de xampú, uma lata de leite, etc), só existe para os sobreviventes do mundo real, dos que têm os pés no chão.

Os detentores do poder econômico, receosos do risco de alguma insurgência popular contra a ordem estabelecida ou contra o “Estado Democrático de Direito” (como tão profanamente usaram esta expressão durante o episódio da invasão do “Parque Oeste Industrial, em Goiânia, pervertendo o seu sentido), apelam pela instituição de penas mais severas, pela política do “tolerância zero”, pela indisfarçável “criminalização da pobreza”.

Enquanto reinar essa hipocrisia, que conduz a todos ao lamassal do caos, onde até mesmo nos lugares mais insuspeitos, aqueles deveriam representar o último refúgio na busca de esperança aos oprimidos, as igrejas, passam a ser meros instrumentos de cooperação para com as idéias políticas dominantes e para com o crime organizado, onde a avareza afiada obtém generosos lucros às custas da fé cega, o resultado é que, não restam dúvidas, a paz para todos infalivelmente virá. A paz dos cemitérios.


Manoel Leonilson Bezerra Rocha: é advogado criminalista em Goiânia (GO), professor de Direito Penal e doutorando em Direito Penal pela Universidade de Burgos, Espanha.


Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2008

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