domingo, 20 de abril de 2008

Artigo - Abuso de direito

O ato ilícito é um fato jurídico por um simples motivo: ele traz repercussões no mundo jurídico. Tal repercussão chama-se responsabilidade civil e sua regulamentação está prevista no art. 927 do Código Civil (CC). A figura do ato ilícito clássico (ação ou omissão dolosa ou culposa que viola direito e causa dano) não será analisada neste artigo. Nosso objetivo é focar o ato ilícito por equiparação, previsto no art. 187 do CC. Trata-se do abuso de direito.

O CC dividiu de maneira didática o ato ilícito, prevendo sua conceituação na parte geral, ao passo que traz a conseqüência na parte especial, no livro de obrigações, com toda razão, aliás, visto que a responsabilidade civil é uma obrigação jurídica cuja fonte é o ato ilícito.

Para não ser omisso, porém, cabe lembrar que há dois atos lícitos que podem causar a responsabilidade civil, os quais estão previstos no art. 188 do CC. São eles: a legítima defesa que causa dano a terceiro e o ato praticado em estado de necessidade.

Legítima defesa

Este é o clássico exemplo de ato danoso lícito. Não há como exigir da vítima reparação pela mera reação que praticou ao ver um direito seu violado. É bem verdade que a legítima defesa deve ser exercida dentro dos limites necessários para que não mude de artigo e se transfira para o art. 187 (abuso de direito)(1).

O problema ganha contornos mais sérios quando aquele que se defende causa danos a terceiros estranhos à situação vivida. Assim, imagine que A, defendendo-se de agressão de B, atinja C. Este último terá o direito de cobrar indenização do primeiro, o qual, por sua vez, terá ação regressiva em face de B para ser ressarcido do montante que desembolsou.

Estado de necessidade

O estado de necessidade é verificado na hipótese de perigo iminente, que, para ser removido, exige a destruição ou deterioração da coisa alheia. A solução legal para esses casos envolve saber se a situação de perigo foi criada pela vítima ou não. Em caso afirmativo, não haverá dever de indenizar, posto que a vítima do dano foi quem gerou a situação de perigo. O inverso ocorre quando a vítima do dano nada tem a ver com a situação de perigo.

Se, v.g., um advogado nota, em dia de calor sufocante, que há uma criança dentro de um carro estacionado a céu aberto e percebe o iminente perigo que passa a vida do infante, é lícito (e até heróico) que ele quebre o vidro do carro para salvá-la. Nesse caso, o pai que deixou ali seu descendente criou a situação de perigo e não assistirá a ele direito à indenização pelo vidro quebrado.

Agora, imagine a hipótese do senhor que, circulando prudentemente por grande avenida, sofre uma brusca “fechada” de imensa carreta, tendo de optar entre sua vida e o muro da casa situada à margem da avenida. Se a opção escolhida for a primeira, ele - apesar de configurado o estado de necessidade - deverá indenizar o proprietário do imóvel, restando-lhe o direito de regresso contra o causador da situação de perigo, a teor dos arts. 929 e 930 do CC.

Entre deixar a vítima sem indenização e impor o prejuízo ao agente causador do dano (ainda que este tenha praticado um ato lícito), a lei prefere a última opção, por considerá-la menos injusta.

Do abuso de direito

O art. 187 do CC positivou em nosso ordenamento a figura do ato ilícito por equiparação. Diz a lei: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Trata-se, sem dúvida, de um dos artigos mais importantes do Código. Primeiramente, por abrigar quatro princípios fundamentais (boa-fé, bons costumes, fim social e fim econômico); depois, por demonstrar que o titular de um direito subjetivo também sofre limites em seu exercício e deve atentar para que tal ato não se converta em ilícito, ensejando reparação civil. O abuso do direito é o ato lícito no antecedente e o ilícito no conseqüente. É aquele praticado dentro do direito do indivíduo, porém com excesso nos meios.

Fartos exemplos são encontrados nos direitos de vizinhança. Abusa de seu direito o vizinho que, dentro de um pequeno apartamento, cria dez cachorros de grande porte; abusa de seu direito o vizinho que cava desnecessariamente profundo poço, esgotando, assim, o manancial alheio etc. O exemplo clássico, entretanto, é de Planiol e Ripert, aludindo ao caso de um vizinho que, com lanças enormes, impedia o sobrevôo de balões com passageiros, prática freqüente na região. Seu objetivo era vender o terreno com preço elevado. O Tribunal de Compiègne, de Clement Bayard, entendeu que tal atitude era considerada um ato ilícito, posto que abusivo, ordenando a retirada das lanças(2).

O próprio Código traz um bom exemplo de aplicação da teoria do abuso de direito, quando dispõe, no art. 330, que: “O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Imagine um credor que tem o direito de receber o pagamento todo dia 10, mas aceita o pagamento sempre no dia 20, sem multa. Após diversos meses assim procedendo, ele criou, na mente do devedor, a justa expectativa de que o pagamento poderia ocorrer no dia 20. Em tese, é direito do credor cobrar multa, mas, se assim o fizer agora, estará abusando desse direito. A rigor, teria ocorrido a suppressio (decorrente do princípio da boa-fé objetiva).

O assunto vem sendo ventilado em diversos concursos públicos do País(3) e denota a preocupação do legislador em manter a justiça e o fim social da norma acima da aplicação fria da lei e dos direitos subjetivos.

Ao dispor sobre a responsabilidade civil (obrigação jurídica de reparar o dano decorrente do ato ilícito), o Código não se olvidou de estabelecer que a prática do art. 187 também enseja a conseqüência jurídica do art. 927.

Notas:

(1) Concurso da Magistratura do Estado de Minas Gerais, 1999.

(2) VENOSA, Silvio de Saulo. Direito Civil: Parte Geral. 3.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 1, p. 605.

(3) (Magistratura/SC 2003) É correto afirmar-se que, de acordo com o Código Civil atualmente em vigor:

a) comete ato ilícito aquele que, mesmo atuando com omissão, não causa danos de qualquer espécie a outrem.

b) omete ato ilícito aquele que causa danos a outrem, ainda que não tenha havido, de sua parte, ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência.

c) comete ato ilícito aquele que, ao exercer um direito do qual é titular, excede manifestamente os limites impostos pelo fim social desse direito.

d) não comete ato ilícito aquele que, ao exercer um direito do qual é titular, excede os limites da boa-fé.

Gustavo Rene Nicolau é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), diretor acadêmico da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (FDDJ) e professor de Direito Civil no Complexo Jurídico Damásio de Jesus (CJDJ) e na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).


O Estado do Paraná, Caderno Direito e Justiça, 20/04/2008.

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