segunda-feira, 21 de abril de 2008

Apesar de incomodado, curitibano dá esmolas


Pesquisa revela o comportamento da população da capital diante das abordagens de pedintes.

O curitibano fica incomodado com a abordagem de pedintes nas ruas, nos sinais de trânsito e nos ônibus, mas costuma dar esmolas, principalmente para pessoas com problemas físicos e mentais. É o que mostra levantamento realizado pelo Instituto Paraná Pesquisa, entre os dias 10 e 13 de abril. Ao todo, 439 habitantes da capital paranaense foram ouvidos. Desse total, 88% afirmaram dar esmolas sempre ou em algum caso específico.

O alto porcentual mostra que a maioria da população ignora a bandeira da prefeitura. Para o poder público municipal, o raciocínio é simples: ao dar esmola, ajuda-se a perpetuar a situação dos pedintes. A mensagem da Fundação de Ação Social (FAS), gestora da assistência social no município, está espalhada por cartazes e placas em toda a cidade e não poderia ser mais auto-explicativa: “Criança quer futuro, não quer esmola.”

“Na medida em que você dá esmola, você está fazendo com que a pessoa permaneça naquela situação. O melhor é encaminhar a pessoa para ser atendida. Basta acionar o 156”, diz o diretor de Proteção Social Especial da FAS, Adriano Guzzoni.

A questão, porém, não parece ser tão simples. Dar ou não dar esmola é algo relacionado a uma série de valores morais, religiosos, sociais e econômicos. Por isso há tanta controvérsia nas ruas e entre quem se dedica a estudar o assunto. “A esmola é uma prática ancestral da humanidade e é, inclusive, valorizada nas principais religiões do mundo ocidental e oriental”, diz o filósofo, teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Luiz Felipe Pondé.

No entendimento do professor, dar aos necessitados por caridade ou filantropia aproxima a pessoa de seus semelhantes, fazendo com que ela própria se sinta mais humana. Para o psicólogo, mestre em filosofia e professor Rejinaldo José Chiaradia, o ato de dar esmola envolve um complicado jogo de relações entre quem dá e quem recebe. “Dar esmola faz bem a quem exatamente?”, questiona Chiaradia, co-autor de um trabalho de graduação que acabou virando artigo acadêmico na revista Psicologia Argumento, da PUCPR. “As pesssoas falam em necessidade, piedade, caridade e obrigação para com os pobres ao comentar seu ato”, diz o professor. O resultado do estudo de Chiaradia, nesse sentido, é semelhante ao do levantamento da Paraná Pesquisa. A pesquisa mostra que praticamente metade dos entrevistados (49,43%) diz “ter vontade de ajudar” ou “ter sentido pena ao ser abordado por pedintes”. “Mas aí vale discutir se trata-se de um altruísmo puro ou se esse ato traz um prazer ou exorciza uma culpa na pessoa.”

Assim como Pondé, o psicólogo também analisa a esmola sob a ótica da história humana, mas entende que a doação por caridade vive um momento próprio. “A miséria se tornou um espetáculo e a esmola também”, diz o professor, que dá um exemplo pessoal dessa espetacularização. “Dia desses, no sinal, um pediente contou sua história de vida em 30 segundos. Disse que tinha perdido a família, estava sem emprego, sentia fome e tinha aids. Geralmente o ser humano, que pinta sua imagem para outro, esconde suas imperfeições. Nesse caso, é o contrário. As mazelas do pedinte são suas próprias armas pela sobrevivência.”

A perna que dói

Na luta pelo trocado de quem passa, as armas de Luiz Augusto Boguchiszk, de 26 anos, são os machucados na perna. São cicatrizes, feridas por vezes abertas e um osso visivelmente fora do lugar. Boguchiszk afirma ter segundo grau completo, ex-esposa e filho de seis anos. Tudo, segundo ele, teria ficado para trás depois de um acidente em Paranaguá, onde trabalhava. “O carro passou em cima da minha perna”, conta. Por um ano, o motorista que o atropelou ajudou. Depois, diz Boguchiszk, deixou o problema por conta da seguradora. “Não o culpo. Ele tem de cuidar das coisas dele. Mas até agora não veio nem o dinheiro do DPVAT e nem o da seguradora”, explica.

A algumas quadras das pernas machucadas de Luiz está Janete Martins. Em meio a cobertores e trapos, ela protege o corpo do frio e pede trocados, geralmente nas imediações da Praça Rui Barbosa. O gesto de Janete é mínimo. Ela estende as mãos, não fala com quem passa e responde pouco e baixo a quem lhe faz perguntas. Entre as ruas e os abrigos da prefeitura, ela prefere a rua. “Faço o que quiser aqui”. Entre a rua e a família, porém, não há opção. “Não tenho ninguém. Sou sozinha nesse mundo”, diz.

O sistema

Assim como outros pedintes, Boguchiszk dorme nas ruas, ou no abrigo da FAS quando faz muito frio. “Lá é mais seguro, mas tem gente que acha que te faz um favor. Não gosto disso.” Não é só do tratamento recebido que o ex-pedreiro reclama. “Preciso de uns documentos pro seguro. Nasci em Irati, não tenho dinheiro para ir pra lá. O outro documento está em Matinhos. É muita complicação. O governo não ajuda. Os advogados só querem dinheiro. Tudo joga contra”, desabafa.

O “sistema”, que, segundo o pedinte não ajuda, também é apontado pelos especialistas como ponto de origem da mendicância nas grandes cidades brasileiras. “Não dá para dissociar a questão da esmola do mundo capitalista e individualista em que vivemos”, define Chiaradia.

“Não adianta querer resolver o problema de imediato. Alimenta-se uma rede de exploração pelos familiares e uma indústria da esmola”, afirma o sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Centro de Estudos em Segurança e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Segundo ele, é importante que a população cobre das autoridades e de todo o sistema estatal a assistência necessária aos moradores de rua e pedintes. “É necessário que se crie condições. A idéia do imposto é essa. Financiamos um serviço público para aquele que paga e também para aquele que não pode pagar”, analisa Bodê. Para o professor Pondé, no entanto, a “cobrança” do poder público muitas vezes serve como uma espécie de terceirização de responsabilidade do cidadão comum. “A pessoa pensa: estou sendo cidadão e confiante porque cobro do estado. Não sei se é assim que funciona. É interessante que o Estado faça, que a sociedade civil faça, que as ONGs façam, mas ajudar os outros é algo de foro íntimo também.”



Cada um com a sua consciência

A advogada Daiana Allessi Nicoletti Alves, 27 anos, tem definida sua posição sobre a esmola. Por isso, ela separa e deixa no console do carro algumas moedas que serão dadas nos sinaleiros. Seu alvo principal são as crianças, mas não nega dinheiro a quem pede, salvo uma única exceção: quando sente sua segurança ameaçada.

“Eu não me sinto bem, pensando que vou almoçar e aquela criança está descalça. Se eu puder ajudar alguém a comer um dia, deixar a vida dela melhor, o dia melhor, eu fico feliz. O que eu puder minimizar aquela situação, eu faço. Não tem nada a ver com religião. É uma questão de consciência”, comenta.

Segundo a advogada, ela gasta cerca de R$ 20 por mês em esmolas. “Sozinha eu não tenho condições de mudar alguma coisa, mas é uma forma de retribuir à sociedade, amenizar aquela situação”, afirma. De acordo com Daiana, ela não se importa com o fim dado ao dinheiro da esmola.

O operador de comércio exterior Ulisses Alfredo Santos Lima também tem sua própria postura sobre a questão da esmola. Ele está entre os 12% dos curitibanos que não dão esmola em nenhuma circunstância. “Jamais dou”, diz. Para Lima, independente das boas intenções das pessoas, a esmola faz mais mal do que bem para toda a sociedade. “Com a esmola a pessoa vai ficar no mesmo lugar, não vai evoluir.”

O operador afirma que sequer dá comida para pedintes que batem em sua casa. “Eu sempre pergunto se a pessoa quer cortar a grama, lavar meu carro em troca de dinheiro. Mas a resposta é quase sempre negativa”, diz.

Ex- morador de rua e ex-viciado em drogas, Adilson Pereira de Souza, 29 anos, sabe na prática o que é pedir esmolas na rua. Hoje, estudante de Serviço Social, é contra dar esmolas, com uma única exceção. “Quando eu percebo que a pessoa está querendo o dinheiro para comprar drogas, eu prefiro dar. É melhor do que ela cometer um furto ou um roubo e pôr a vida dela e de outra pessoa em risco”, opina. (GV e TC)

Religiões têm entendimento semelhante

Qual a opinião dos religiosos sobre as esmolas? Católicos, muçulmanos e judeus têm visões semelhantes. É bom e necessário ajudar o próximo, principalmente se o dinheiro for direcionado para alguma medida ou instituição social que consiga promover a inserção social das pessoas.

De acordo com o coordenador da Ação Social da Igreja Católica da Arquidiocese de Curitiba, padre José Aparecido Pinto, a primeira luta é contra o assistencialismo. “Queremos assegurar o direito da pessoa. Somos contra o assistencialismo que não promove ninguém. Temos o trabalho emergencial, mas depois temos de promover a pessoa, com um trabalho estruturante, para que ela possa gerar a própria sustentabilidade”, diz. Segundo o padre, entretanto, isto não significa que não se deve atender quando alguém bate à sua porta pedindo um prato de comida.

O presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná, Jamil Iskandar, tem uma postura parecida. “No mundo islâmico, a questão da esmola existe, mas é organizada. Nos países islâmicos, há um caráter institucional. Não se usa a palavra ‘esmola’, fala-se em ‘auxílio’. Há um provérbio que diz ‘como posso dormir, se meu vizinho está com fome’”, diz.

De acordo com Iskandar, entretanto, se a esmola for dada aleatoriamente, corre-se o risco de ajudar a pessoa errada. “Pode ser que eu não ajude quem realmente precisa. Evitamos também que o sujeito se torne profissional em pedir esmola”, explica.

Segundo Saadia Cohen, da comunidade judaica do Paraná, o mais correto é ajudar a uma instituição, que saberá destinar mais corretamente os recursos. Contudo, segundo ele, os judeus não devem negar ajuda, quando são interpelados na rua. “Temos obrigação de dar, sem muito alarde, senão não tem validade. Não importa a destinação que a pessoa vai dar ao dinheiro. Estamos fazendo justiça a nós mesmos assim”, afirma. (TC)

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