terça-feira, 8 de abril de 2008

Apaixonado pelo júri

EUNICE NUNES - Especial para o "Tribuna"

Por quê escrever? Por impulso, decepção ou necessidade. Ou os três juntos. A resposta é de Edilson Mougenot Bonfim, promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de São Paulo que, entre outros casos, atuou no do “Maníaco do Parque”. Desde 1994, quando entrou para o mercado editorial, produziu 14 livros, entre eles O Direito Penal da Sociedade e O Julgamento de um Serial Killer. Atualmente, coordena a Coleção Curso & Concurso, lançada recentemente pela Editora Saraiva, da qual é autor de três livros.E para quem escrever? “Sobretudo para os mais jovens. Sinto necessidade de reproduzir aquilo que foi estudado e lido de uma forma decodificada.
Há uma produção maciça de obras jurídicas, mas não há necessariamente qualidade. Acho que quando burilo as idéias de quem já pensou algum assunto antes e adiciono algo do meu pensamento, tenho condição de tornar a matéria mais palatável, para que os mais jovens possam assimilá-la mais facilmente”, responde prontamente.
A preocupação com a didática foi uma das razões que o levou a aceitar a coordenação da Coleção Curso & Concurso. “São livros simples, em linguagem objetiva, direta, destinados àqueles que prestam concursos públicos, Exame da OAB e também aos estudantes de Direito. É uma obra sem grandes citações doutrinárias, com a jurisprudência adequada ao caso e focada diretamente nos pontos mais importantes que costumam ser solicitados nos concursos. O objetivo é mostrar a aplicação prática do Direito na realidade brasileira, como é vista e analisada nos tribunais do País, e como é vista nos Exames da Ordem e nos concursos públicos”, informa.
Bonfim é apaixonado pelo Direito Penal e por júri. Diz que o Direito Penal é o mais democrático dos Direitos, pois prevê circunstâncias da vida que se aplicam mais à realidade das favelas, mas que também à realidade dos chamados “colarinhos brancos”. “E o júri é o momento da maior verdade do Direito Penal, na medida em que tratamos do crime máximo, que é a eliminação de uma vida humana com vontade de matar. Ali se discute dois dos conceitos máximos do ser humano: a vida e a morte e, por extensão, a liberdade de alguém. Discutimos todo o Direito Penal e todas as ciências contributivas dele, como a Filosofia, a Psicologia, a Criminologia, Sociologia, até a Política. O júri tem amplitude muito grande, já que não circunscreve o julgador ao frio texto da lei. O jurado tem a possibilidade de julgar de acordo com a convicção e os ditames da consciência. Muitas vezes até negando o apelo ao tecnicismo ou à letra da lei”, interpreta.
Polêmico, é contra a reforma da Lei dos Crimes Hediondos, defende a prisão perpétua e considera romântica a linha de pensamento que defende a ressocialização do delinqüente pela pena.

Tribuna do Direito — O senhor tem um livro intitulado O Julgamento de um Serial Killer. Como se caracterizam esses casos?
Edílson Mougenot Bonfim — Lancei logo após o julgamento do “Maníaco do Parque”, que é um prototípico serial killer, pois produz mortes em série sem motivo aparente, mas sempre vinculado à questão sexual. Ele tinha prazer sexual com o sofrimento das vítimas. Havia uma discussão sobre a imputabilidade penal, que me levou a fazer uma análise no Direito Comparado, não somente na área jurídica, mas no que a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise poderiam dialogar com o Direito. Mostrei que, fora do Brasil, 97%, 98% dos serial killers são julgados plenamente imputáveis.

TD — A questão da imputabilidade suscita acalorados debates.
Bonfim — No caso do serial killer, os crimes têm motivos aparentes e mais submersos, num sétimo véu indevassável da individualidade de cada um. Erraríamos sempre se disséssemos que não houve motivo para cometer o delito. Não há motivo para nós, mas há para ele. Aquilo lhe dá prazer.

O Direito dá uma resposta ao consenso social, mostrando que aquilo que ele fez está errado e é crime e deve ser punido.Os estudos que existem sobre esses casos tendem a entender que serial killers podem e devem ser considerados imputáveis. Há uma corrente psiquiátrica forte que afirma que eles têm condição de entender o que fazem e também de se autodeterminarem de acordo com esse entendimento. Eles sabem o que é certo e o que é errado, porque aprenderam isso na sociedade, mas como não absorveram os valores fazem uma opção pelo outro caminho. E, ainda que podendo se controlar, optam pelo segundo caminho.

TD — Eles possuem a faculdade de controlar o impulso homicida, mas não o fazem para ter prazer?
Bonfim — No caso do “Maníaco do Parque”, uma das provas de que ele podia controlar-se era o fato de que os crimes eram sempre cometidos premeditadamente em lugares previamente preparados, o que mostrava a urdidura do crime. O autocontrole se evidencia quando uma das vítimas disse que estava com Aids e ele recuou e não a estuprou. Agrediu-a, mas não estuprou. O autocontrole se evidencia, na prática, com o testemunho de uma vítima sobrevivente, atestando que, diante do perigo, ele recuara. Como promotor de Justiça entendi que o caminho era de julgar-se esse réu como plenamente imputável, por conveniência social e até para conveniência dele, porque solto colocaria em risco outras pessoas e fatalmente acabaria perecendo em razão da senda criminosa por ele eleita.

TD — Não há tratamento para essas pessoas?
Bonfim — Não se obtém nenhuma resposta terapêutica no transtorno de personalidade anti-social. E, ainda que questionável, não está codificado como doença. Foi esse transtorno que os psiquiatras diagnosticaram num primeiro momento no “Maníaco do Parque”. É uma situação que seria intermediária entre a normalidade e a anormalidade. As fronteiras psíquicas não podem ser demarcadas com exatidão. A prisão dele é uma questão de conveniência para a sociedade.

TD — E quando ele sair da cadeia?
Bonfim — O mais conveniente para a sociedade seria a prisão perpétua, porque ele será perigoso, ainda que não tenha mais a força física e a ousadia que caracterizam a juventude. Infelizmente, a Constituição Federal proíbe a prisão perpétua. Sou absolutamente a favor da prisão perpétua para certos casos. E acho que o internamento de uma pessoa dessas em um manicômio seria uma violência desumana, porque ele não é doente e lá ele vai se tornar um louco. A prisão perpétua seria muito mais humana e preferível até do ponto de vista dele.

TD — Além do transtorno de personalidade anti-social, em que casos o senhor defende a prisão perpétua?
Bonfim — Por exemplo, no caso de réus multi-reincidentes em crimes graves. Por exemplo: alguns latrocidas e estupradores. O Estado puniu o que era possível. O Estado depois falhou porque deveria tê-los impedido de continuarem na senda criminosa após o primeiro delito cometido. A sociedade ficou desprotegida. Caberia agora ao Estado, percebendo todo o antecedente e a projeção do que viria no futuro, segregar esses indivíduos da sociedade. Aí poderia perguntar-se por que não 20 ou 30 anos? Porque existem pessoas que no critério da culpabilidade merecem uma pena mais acentuada.

TD — E onde fica o caráter ressocializador da sanção penal?
Bonfim — É uma teoria bastante romântica, que fez o encantamento da geração penal que nos antecede. Existem brilhantes penalistas no Brasil que, crédulos, ainda pregam isto. A ressocialização é o ideal, mas não pode ser o fim primeiro da pena. E não pode porque ela é uma falácia. Ressocializar pressupõe alguém socializado. Não poderíamos punir um pobre delinqüente que sempre foi excluído, porque não posso ressocializar quem nunca foi socializado. Também não poderia punir o criminoso de “colarinho branco” porque ele é hipersocializado. Uma das funções da pena é a ressocialização, mas ela tem de ter um fator de retribuição para a prevenção geral. Num primeiro momento, a função do Direito Penal é a reafirmação da norma, mediatamente a proteção de um bem jurídico e, se for possível, a ressocialização do homem será fantástico, será a confirmação do ideal. Mas se esperarmos como função primitiva do Direito Penal ressocializarmos o homem estaremos perdidos.

TD — Como tratar os crimes de “colarinho branco”, que são crimes de grande potencial ofensivo?
Bonfim — São de grande danosidade social. Numa canetada, às vezes, é possível matar muito mais gente do que pelo método ortodoxo. Antigamente, esses delitos eram sociologicamente crimes, mas não estavam previstos na legislação. Depois essas condutas passaram a ser tipificadas. Defendo para os criminosos de “colarinho branco” a pena alternativa de prisão, pois é a única pena que até hoje não foi aplicada a eles. Já foi aplicada a de execração pública, e a de perda de bens, que nestes casos não configura uma pena no meu entendimento.

TD — E a adoção de políticas de redução de danos causados pelo uso de drogas?
Bonfim — As iniciativas governamentais sempre vêm lastreadas em estatísticas. Como já foi dito, a estatística é a arte de enganar os outros com números. Aceito a idéia como experiência, mas não tenho a convicção de que vai dar certo. Quando o Estado fornece a seringa ou a sala para o usuário de drogas estaria paulatinamente atenuando a responsabilidade social do traficante, uma vez que não existe usuário sem traficante, e passa a aceitar que o usuário é um doente.

TD — Mas quando o Estado dá a sala e a seringa reduz a clientela do traficante, por conseguinte o tráfico.
Bonfim — Mas qual é o papel do Estado nesse momento? Curador ou fomentador do vício perante outros potenciais usuários? Porque estes sentir-se-ão também protegidos pelo entendimento do Estado de que não serão mais punidos, serão sempre compreendidos como doentes. Podemos testar o modelo, mas não me alinho àqueles cristãos que acreditam como quem segue a palavra bíblica “ou você segue ou não será salvo”. Tenho dúvidas. Os experimentos no estrangeiro apontam caminhos diversos. Às vezes, a Medicina precisa matar um ou dois homens para salvar a vida de milhões. Não sei nem se não é o caso.

TD — O senhor é a favor da pena de morte?
Bonfim — Tema polêmico. Entendo que pena será sempre o que for criado efetivamente pelo homem. A pena de prisão, a de multa, a de interdição, de direitos, foram criadas pelo homem. A pena de morte não é criada pelo homem. Todo o homem nasce com um atestado de óbito, só falta preencher a data. A pena poderia ser de antecipação da morte. A pena de morte não tem, na legislação brasileira, conteúdo de negação absoluta, uma vez que a Constituição a permite em tempos de guerra. Se perguntasse se seria possível a aplicação da pena de morte, ou de antecipação da morte, para quem cometeu 40 homicídios e alguém me respondesse que era absolutamente contra, perguntaria se mesmo após o quinto homicídio ela continuaria sendo contrária e a pessoa me respondesse que continuava contra, responderia que neste caso se estaria condenando à morte 35 pessoas eventualmente inocentes. A matéria é polêmica e, cientificamente, não tenho condições de dar uma resposta precisa.

TD — E a reforma da Lei dos Crimes Hediondos?
Bonfim — Acho um escândalo o Ministério da Justiça estar empenhado nisso, no que é seguido por parcela substancial do entendimento jurídico brasileiro. Falta sintonia entre o interesse social e o discurso político adotado pelo governo. Sou convictamente contrário à revogação, um dos últimos suportes legais de defesa da sociedade. Revogada esta lei, cai por terra a blindagem que a sociedade tinha. Quando se quer combater a lei pegam-se exemplos esdrúxulos, ou colhidos no laboratório da imaginação de alguém, ou um exemplo ocorrido na prática, tipo um em um milhão, para através da exceção desacreditar a regra. Não é porque exista um erro em milhões de acertos que devemos desacreditar a teoria. A Lei dos Crimes Hediondos tem prestado um relevante serviço à sociedade brasileira. Sou contra a sua revogação e acho que a maior parte do Ministério Público também.

TD — Mas o governo fala em reformar, não em revogar...
Bonfim — A noite não escurece de uma vez, escurece aos poucos. Antes era a cantilena da revogação, bastante desafinada aos ouvidos do interesse nacional. Quando a sociedade reagiu e se indignou, dizendo que não era para isso que precisava de governo, mudou-se o verbo, de revogar para reformar. Depois da reforma, já que a noite não escurece de uma vez, mas a gente sabe que o interesse talvez fosse a escuridão total, de reforma em reforma chegaríamos à revogação da lei. Se passássemos um estetoscópio na alma de quem postula hoje politicamente a reforma encontraríamos dentro o germe da revogação da lei. Não se quer a reforma. Tem que se ter a coragem de dizer que se quer a revogação e pagar o preço político da sociedade dizer não, não queremos a revogação. A reforma, se for no periférico e não no substancial, não chego nem a perceber grandes danos. Mas se for para reformar no periférico para quê reforma, se temos outras coisas importantes a serem modificadas.

TD — O que inibe o crime é a quantidade da pena ou a certeza da punição?
Bonfim — Aqueles que dizem que não é a quantidade da pena que inibe o crime, mas a certeza da punição, estão com uma parcial verdade. Digo que a quantidade da pena influencia e muito. Também formamos a nossa moral através do contingente de informações que nos advém do Estado. E quando o Estado passa a tratar com penas menores, penas anãs, crimes maiores, podemos, sobretudo as almas mais fracas, sentirem-se autorizadas a praticar crimes. Se a quantidade da pena não ajudasse na inibição do crime, também poderíamos, em vez de ficar com essa complicação toda que tem o cardápio penal, pasteurizar tudo e criar uma pena só para todos os crimes. Mas não. A pena é dada em razão da culpabilidade, em razão do crime praticado. A quantidade da pena é importante. E também a certeza da punição. A quantidade da pena ajuda a inibir o crime na certeza da punição.



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http://www.emougenotbonfim.com/portuguese/entrevistas/apaixonado_juri_tribunadodireito.htm

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