domingo, 13 de abril de 2008

Agressão faz parte da rotina de 10 milhões de crianças por ano

A cada dia, três menores são vítimas de maus-tratos ou abuso sexual em Curitiba. Tabu em abordar adultos agressores perpetua cultura da surra e impunidade.

Dia desses, Roseli Muraski, coordenadora da Central de Resgate da Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), achou graça de uma história contada por uma das educadoras da casa. Uma denúncia no telefone 156 dava conta de que havia uma criança vítima de maus-tratos num bairro da capital. Ela gritava “pára, mãe” tão alto que levou os vizinhos a procurarem socorro. Ao chegar no suposto local do crime, descobriu-se que a carrasca nada mais fazia do que arrancar bichos-de-pé do garoto.

Infelizmente, episódios como esse – perfeitos para descontrair a tropa na hora do cafezinho – são raros na central. A equipe é formada por oito assistentes sociais, atende 24 horas, e se debate de sol a sol com fatos que congestionariam os cadernos policiais. Só nos dois primeiros meses deste ano, foram 434 chamadas – entre 6 e 12 por dia – quase metade de 2007 inteiro, fechado com 925 atendimentos. O que os profissionais da Ação Social encontram nos domicílios que visitam não é agradável para os olhos.

São comuns os casos em que a criança tem de ser retirada da casa na hora do atendimento. Há situações que podem ser resolvidas em uma hora ou consumir dois dias inteiros. Ser um trote ou uma tragédia. Por essas e outras, os técnicos e especialistas do setor são unânimes em afirmar: é impossível se acostumar com a violência a crianças e adolescentes, mesmo quando ela já faz parte da rotina de trabalho.

Proteção integral

O Brasil, mobilizado pelo caso Isabella como se estivesse diante de uma novela ou de uma edição do Big Brother, parece não se dar conta de mais essa verdade inconveniente: a proteção integral à criança e ao adolescente avançou, mas ainda patina entre ser uma carta de intenções e um índice social positivo. Estima-se – com base na Pesquisa Nacional de Atendimento em Domicílio (Pnad) – em 10 milhões o número de crianças agredidas a cada ano no país.

No Paraná, registros preliminares da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude, apontam entre 54 mil e 47 mil os casos de violência que afetaram a população com menos de 18 anos, em 2006 e 2007, respectivamente. Maus-tratos e a violência sexual – situações que em mais de 60% das vezes acontecem em casa – correspondem a 15% e 17% desses números, fazendo soar o alerta.

Numa cidade como Curitiba, as estatísticas são tão sombrias como no restante da nação. Ano passado, o Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Exploração Sexual e Maus-tratos (Nucria) registrou 950 casos de agressões na capital – de pancadaria doméstica a abuso. Nos três primeiros meses de 2008 foram 220. É como se houvesse três maus-tratos ou crime sexual a cada dia na capital.

Detalhe: os números atuais são três vezes maiores do que os de 2005, primeiro ano efetivo de funcionamento do serviço. Se os gráficos parecerem pouco católicos, basta olhar para as filas. Há nada menos do que 60 a 70 famílias esperando pelo primeiro atendimento dos psicólogos da Polícia Civil. A explicação mais comum para o boom estatístico é que o Nucria é praticamente um recém-nascido, o que impede afirmar que os crimes contra os pequenos tenham aumentado. Mas ninguém nega que os dados do setor são frágeis como uma cristaleira. “Não posso dizer que os números dão conta de toda a realidade. São os pobres os que mais nos procuram. A classe média tem medo, por isso nossas informações não espelham toda a violência contra a criança”, diz a delegada titular do Nucria, Eunice Vieira Bonome. 45 anos, no cargo desde o início do ano, depois de serviços prestados à Delegacia da Mulher.

O assunto gera paixões. “Meu lema é indignação sempre. Fico arrepiada até hoje quando me lembro de certos episódios que chegaram até mim”, confessa a psicóloga Daniela Carla Prestes, chefe do Serviço de Psicologia do Hospital Pequeno Príncipe. Ela trabalha há 12 anos com crianças vitimizadas e atende em média três pacientes por dia. Nenhum deles tem a ver com bichos-de-pé. Para a promotora de Justiça da recém-instalada Vara Especializada de Crimes contra a Criança e do Adolescente, Carla Maccarini, não se sabe mais sobre a violência que atinge a infância porque os delegados continuam dando flagrantes e fazendo as vezes da polícia especializada – uma prática comum nas delegacias genéricas, aquelas que fazem de tudo um pouco. A advogada Márcia Caldas, presidente da Comissão da Criança e o Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) prefere pensar num mal de raiz. “A violência contra a criança acontece entre quatro paredes. É assunto íntimo. Só se torna pública quando alguém rompe o silêncio, geralmente um filho mais velho. Há muitas mães com medo”, afirma, com o dedo na ferida.

Garimpagem

O cruzamento de informações vindas de diversas fontes comprova o dignóstico: não há consenso sobre a violência que massacra os pequenos, o que aumenta a fragilidade. Uma boa prova dos nove está num dos melhores bancos de dados disponíveis – o do Hospital Pequeno Príncipe –, referência no atendimento a crianças vítimas de violência. No ano passado foram 305 vítimas, o que equivale a 30% do total de boletins de ocorrência do Nucria.

Tudo indica que muitas vítimas não passam sequer pelo atendimento médico ou que suas fichas se confundem a outras, sem especificações, em unidades de saúde e clínicas, impedindo avaliar o tamanho do estrago. Um dos fossos diz respeito à classe média. Os casos de violência nessa faixa dificilmente chegam ao Nucria e à rede pública de saúde. Mas que existem, existem.

À revelia dos números, contudo, sabe-se muito sobre o terror que se abate sobre aqueles que deveriam ser protegidos pelos adultos. A reportagem conversou com psicólogos, assistentes sociais, promotores de Justiça, representantes de classe – entre outros representantes da rede de proteção à infância, entidade que desde 2002 organiza o setor. Novamente, o que eles têm a dizer não é nenhum mar-de-rosas.

“A agressão ocorre no ambiente familiar e tende a vir de pessoas que gozam da confiança dos pais, que sabem da rotina”, explica Daniela Prestes. Não é tudo. A violência sexual desponta nas estatísticas, sempre na casa dos 60% dos casos, mas ninguém tem dúvidas de que os maus-tratos são um escândalo sem tamanho. Gritos, ofensas. surras constantes fazem parte dessa história.

A diferença na quantidade de denúncias entre uma situação e outra tem uma explicação cultural. Não se tolera um adulto em situação libidinosa com criança ou adolescente. O mesmo não vale para pais que espancam seus filhos. A atitude comumente é tomada como direito, medida educativa e algo no qual não se deve interferir. “Os índices devem ser muito maiores do que imaginamos”, diz a promotora Carla Maccarini. Roseli Muraski, da Fundação de Ação Social, por sua vez, lembra de que não foi nem uma nem duas vezes que viu surras domésticas ganharem proporções incalculáveis.

Outro saber adquirido pela turma da rede diz respeito ao nível sociocultural e socioeconômico do agressor: simplesmente anos de estudo e conta bancária não são tão determinantes quanto se imagina. Situações de pobreza e baixa instrução, assim como a drogadição e históricos de violência na família, podem potencializar, mas não são determinantes. Embora apareçam menos nas estatísticas, as classes A e B são visitadas com freqüência pela turma do Resgate Social da prefeitura, recebem denúncia no Nucria e arrumam versões fantasiosas quando se explicam aos médicos do Pequeno Príncipe.

“O nível econômico pode determinar, mas nada se compara ao estrago causado por famílias desestruturadas. É aí que mora o problema”, opina a delegada titular do Nucria, Eunice Vieira Bonome. “É reflexo dos tempos”, diz a representante do Ministério Público, Carla Maccarini. “Uma sociedade que agride crianças está muito doente.”

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Memória do cárcere

Fomos chamados para um atendimento às 7h30 da manhã. A ligação era de vizinhos. Tivemos de chamar um chaveiro para abrir a porta do apartamento e resgatar uma criança de cerca de 3 anos de idade. A casa era de classe média e o garoto estava no chão, com uma sacolinha ao seu lado. Ali havia um pacote de bolacha – provavelmente o que iria comer ao longo do dia. O menino falava assustado que tinha medo de fogo.

Pegamos a criança, deixamos um bilhete e o chaveiro trancou a porta. A mãe só nos procurou às 9h30 da noite. Ela mesma confirmou que o filho ficou 15 dias naquela situação – das 7h30 às 21h30 sozinho. Disse ser do interior, que precisava trabalhar e não tinha com quem deixar o filho. Soubemos que depois disso a criança foi enviada para a casa da avó, em outro estado.

Apesar de tantos anos de resgate, a gente se surpreende com a quantidade de casos de cárcere privado – principalmente quando a criança é especial. A tática é comum: os pais deixam o rádio bem alto, para ninguém ouvir os gritos dos filhos, e saem. Hoje mesmo fizemos o resgate de um adolescente que passou um ano trancado num apartamento.”

Maria Elisabeth Kopachinski Biela, 42 anos, educadora da Fundação de Ação Social, ex-conselheira tutelar.

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Serviço

Disque 181 (Nucria) e 156 (SAV Criança).



Gazeta do Povo, 13/04/2008.

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