Em levantamento inédito feito em março pela Secretaria da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, verificou-se que, nos últimos dois anos, cerca de 32% dos casos que são julgados, toda terça-feira, por aquele colegiado, referem-se às drogas. No ano de 2015, dos 526 julgamentos de méritos de habeas corpus, 167 diziam respeito ao tema. Em 2016, do total de 513, foram 171 writs com algum pedido relacionado à mesma questão.
Isso significa que um terço da turma é ocupado com feitos que tratam em alguma medida do tráfico de entorpecentes. Ainda não há dados análogos quanto à 1ª Turma, mas basta acompanhar o dia a dia daquele órgão fracionário para que se chegue à conclusão estatística semelhante.
E a pergunta que parece óbvia é: por que a suprema corte do país, vocacionada aos temas tipicamente constitucionais, está abarrotada de processos que demandam seu minucioso exame acerca da (in)correta tipificação da conduta, dosimetria das penas, etc?
A nova Lei de Drogas, a 11.343/2006, completou 10 anos em agosto do ano passado. Digno de registro que a sua ementa, a parte que sintetiza seu conteúdo, tem um escopo bem mais ampliado do que as das Leis 6.368/1976 e 10.409/2002. Veja-se, a propósito, o que nela está disposto:
“Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências”.
As anteriores assim estavam redigidas, respectivamente:
“Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências”.
“Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências”.
Da leitura dos excertos acima, claramente se verifica um novo olhar social para a temática. Observe-se que, inicialmente, o foco legal limitava-se ao genérico endurecimento do tráfico, sem preocupar-se com a figura do delinquente e muito menos com a do usuário.
A novel legislação, ao contrário, diferencia o pequeno e eventual traficante daquele outro considerado grande e contumaz, o que se extrai do contido na minorante do seu artigo 33, § 4º. Houve ineditismo regratório quanto à pena mínima de reclusão para o traficante, que subiu de três para cinco anos, mas, em contrapartida, a inovação na criação dessa minorante, a corroborar a tese de que a conduta a ser punida mais severamente é a do verdadeiro traficante, e não as periféricas[1]. Para o usuário, as penas limitam-se à advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo[2].
Além da virtude da nova mens lege na abordagem da questão como política pública nacional, buscando promover várias plataformas de atuação, bem como a integração entre os Poderes Executivo e Judiciário, permaneceu um louvável desejo de recrudescimento do grande tráfico, o que ficava claro na leitura da sua redação original.
Entretanto, tal política criminal mais drástica contrastava, em certos pontos, com direitos e garantias fundamentais, o que ensejou intervenções do STF com o fim de “lapidar” o texto inicial bruto da recente lei, em muitos pontos ainda dura e repetitiva dos modelos anteriores tipicamente repressores.
Por exemplo, com relação à proibição da conversão em penas restritivas de direitos, presente na parte final do artigo 44, assim como no § 4º do artigo 33, o Plenário, em 1º/9/2010, declarou incidentalmente a sua inconstitucionalidade no julgamento do HC 97.256, relatado pelo ministro Ayres Britto, por ofensa à garantia constitucional da individualização da pena (artigo 5º, XLVI).
Ademais, no tocante ao mesmo artigo 44, que vedava a concessão de liberdade provisória de forma apriorística e genérica, o STF, no HC 104.339, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, em 10/5/2012, declarou, incidenter tantum, a sua inconstitucionalidade, por incompatibilidade “com o princípio constitucional da presunção de inocência, do devido processo legal, entre outros”.
Corrigidas essas distorções, esperava-se que agora sim se pudesse seguir o transcurso natural da correta aplicação da lei aos casos concretos e que, paulatinamente, se pudesse obter êxitos palpáveis na guerra contra a narcotraficância.
O espírito do legislador, no entanto, parece que não foi assimilado pelos aplicadores da lei. Com efeito, os juízes e tribunais prendem provisoriamente com justificativa para a segregação cautelar calcada em fórmulas abstratas e genéricas da garantia da ordem pública ou do perigo abstrato do delito; adotam a mesma fundamentação da quantidade e natureza das drogas para valorar negativamente a primeira e a terceira fases da dosimetria e exasperar penas (o que caracteriza indevido bis in idem); valem-se de circunstâncias inerentes à conduta criminosa do tráfico — tais como a propagação do mal e busca de lucro fácil, para motivarem o aumento da reprimenda.
Alimentam, com essa postura, a velha cultura do encarceramento como solução. Exemplo típico e gritante foi julgado no dia 18 de abril, pela 2ª Turma. Trata-se do HC 138.565, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
Na espécie, o paciente, a partir de uma revista ilegal em seu domicílio em Americana (motivada por sua filmagem de ação policial, que teria desencadeado a ira do agente), sem mandado de busca e apreensão ou situação de flagrante delito, foi enquadrado pelo crime de tráfico porque lá foram encontrados 8 gramas de crack e 0,3 gramas de cocaína, sem qualquer outro indicativo de narcotraficância (apreensão de dinheiro ou de petrechos utilizados para o comércio, tais como balanças e afins). O réu encontrava-se encarcerado provisoriamente desde 12/7/2016, momento da referida operação. A turma acompanhou o voto do Relator no sentido do trancamento da ação penal.
A cultura do encarceramento
A supressão da liberdade, como sanção aplicada à prática de delitos, parece ser “tão antiga como a memória do homem”[3]. Durante a Antiguidade e boa parte da Idade Média, ela não era concebida como sanção penal. Assumiam esse papel a pena de morte, as penas corporais (o açoite, as mutilações, o furar de olhos e o cortar da língua), o trabalho forçado, e outras formas de penas “infamantes”.
Todavia, embora com papel secundário, não deixou de existir ao longo daquele período da história. Cumpria uma dupla função. De um lado, acabava sendo realizada como uma necessária forma de garantia para a aplicação de outras penalidades. De outro, também existia como meio de viabilizar a aplicação de diferentes modos de tortura sobre acusados na busca da revelação da “verdade” sobre os fatos apurados.
A partir do século XVI, porém, os métodos punitivos, de forma gradual e lenta, sofreram profundas mudanças. As penas físicas foram substituídas por outras de modo a que, ao final, a “prisão-sanção” viesse a assumir papel predominante. As razões históricas que teriam determinado, no último período da Idade Média, esta alteração do modus punitivo, têm sido controversas.
De fato, muitos afirmam que uma crescente compreensão valorativa e humanista do caráter bárbaro e excessivo de algumas penas teriam contribuído para a busca de modelos mais brandos. O nascimento do encarceramento como pena, assim, teria se dado nesse contexto, ou seja, como evolução natural do pensamento humanista.
Aliás, nessa perspectiva, tem sido comum e acertada a referência à clássica obra de Cesare Bonesana Beccaria, Dei Delitti e Delle Pene, datada de 1764, como um grande marco do registro evolutivo desta mudança do pensamento em relação a como devem ser aplicadas e executadas as sanções penais.
Contudo, outras causas também são apontadas para esta mudança. Segundo alguns estudiosos, o fator decisivo para a intensificação da aplicação do aprisionamento como sanção não teria sido exclusivamente o nascimento de nova compreensão ética ou humanista, mas teriam clara origem econômica e política.
Não se pode desconhecer que a escassez de mão de obra e a necessidade de trabalho, notadamente nos séculos XVI e XVII, causada pelas guerras, pelo desenvolvimento da vida urbana, pela crise do sistema feudal e pelo florescimento da forma capitalista de produção, eram uma realidade histórica. E essa nova realidade apontava a impropriedade da manutenção de sistemas que estabeleciam a aplicação de sanções físicas ou da pena capital. Nada que pudesse inviabilizar a boa execução ou o livre curso da utilização da força de trabalho ou de guerra em favor dos que detinham os meios de produção ou o poder do Estado absolutista.
A (in)eficiência do modelo
É evidente que qualquer sanção penal deve visar a algo maior que a simples retribuição a uma conduta indevida. Na verdade, ela não deve ser compreendida apenas como uma “vingança social” a quem ofende a sociedade, com o único objetivo de aplacar a ira da coletividade. Ao revés, ela deve ser compreendida como uma medida que existe para impedir que atos delituosos se repitam. Ela deve visar a reeducação ou ressocialização do delinquente, e, com isso, a neutralização da sua periculosidade.
O que se verifica com dados empíricos, no entanto, é que, na grande maioria dos casos, aqueles que adentram aos cárceres como simples delinquentes individuais, neles se transformam em perigosos delinquentes organizados, com maior periculosidade e potencial destrutivo muito maior dos valores sociais e da própria segurança pública.
Estudos demonstram que “quem não reincide depois da prisão é porque não reincidiria sem ela”[4], da mesma forma que muitos que voltam a delinquir “somente o fazem por terem passado pela prisão”. Por outro lado, investigações sérias e profundas, como noticia a professora Lola Aniyar[5], dão conta de que “nos regimes abertos de execução da pena as taxas de reincidência são insignificantes”.
Cresce, por tudo isso, a descrença na sanção restritiva da liberdade. Com efeito, ressalvados alguns casos extremos, em que se tem por induvidoso que o afastamento de alguém do convívio social é imprescindível e estritamente necessário, a aplicação de penas restritivas da liberdade a autores de práticas delituosas revela-se como medida penal inteiramente desaconselhável. De fato, se não aplicada dentro de uma dimensão absolutamente excepcional, ela pode trazer mais prejuízos do que benefícios à vida social.
Os indicadores desastrosos do sistema penitenciário brasileiro
Em dezembro de 2014, o Brasil havia ultrapassado a marca de 622 mil pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos penais, chegando a uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa mundial situa-se no patamar de 144/100 mil. Nosso país é, assim, o quarto do mundo em número absoluto de presos (situa-se atrás dos Estados Unidos, China e Rússia)[6].
Enquanto os Estados Unidos, a China e a Rússia estão reduzindo as suas respectivas taxas de encarceramento nos últimos anos, o Brasil segue em trajetória diametralmente oposta, aumentando a sua população prisional em torno de 7% ao ano. O ritmo de crescimento desta taxa para mulheres é ainda maior, chegando à ordem de 10,7% ao ano.
Se na década de noventa o país tinha 90 mil presos[7], em um intervalo de menos de 25 anos, o país multiplicou esse número em 6 vezes. O crescimento da população prisional brasileira nas últimas décadas é fruto, fundamentalmente, da elevação de taxas de presos provisórios e de prisões relacionadas ao tráfico de drogas.
Os crimes de roubo e tráfico de entorpecentes, somados, respondem por mais de 50% das sentenças das pessoas condenadas à prisão. A prisão por tráfico de drogas é reputada como “muito provavelmente a principal responsável pelo aumento das taxas de encarceramento do país e que compõe o maior número de pessoas presas”[8]. Note-se ainda que a população prisional feminina é “notoriamente marcada por condenações por crimes de drogas, categoria composta por tráfico de drogas e associação para o tráfico. Responsáveis por 64% das penas das mulheres presas, essa parcela é bem maior que entre o total de pessoas presas, de 28%.
Aproximadamente 40% da população carcerária do País encontra-se nesta condição (cerca de 250 mil pessoas). E o mais estarrecedor: mais ou menos 37% dos réus que respondem a processos presos provisoriamente acabam não sendo condenados a penas privativas de liberdade.
Para o mencionado total de mais de 622 mil presos, a disponibilidade é de apenas 371.884 vagas, o que qualifica um déficit da ordem de 250.318 vagas, e uma taxa de ocupação de 167%. Essa defasagem praticamente equivale ao número de presos provisórios existente no País. Para atender à demanda, o Brasil necessita aumentar em 50% o número de vagas hoje existentes em todo o sistema penitenciário nacional.
Conclusões
O Supremo, distante do equivocado clamor social por vingança, tem tomado decisões importantes que enfrentam o problema direta ou indiretamente e, por meio delas, nos tem convidado a prementes reflexões. Além do exposto na introdução, é preciso lembrar que o Tribunal reconheceu o Estado de coisas inconstitucional da estrutura prisional brasileira (julgamento da ADPF 347 – MC/DF, Rel. Min Marco Aurélio, e do RE 592.581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski) e determinou o descontingenciamento de recursos para a área prisional, visto que seu bloqueio impede a formulação de novas políticas públicas ou a melhoria das existentes e contribui para o agravamento do quadro.
Outro ponto de grande relevância refere-se às audiências de custódia. O STF reconheceu a necessidade de sua observância, a fim de que o preso compareça perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão. Essa iniciativa foi abraçada pelo CNJ na gestão do ministro Ricardo Lewandowski, que teve o objetivo de dar efetividade às normas internacionais das quais o Brasil se obrigou desde 1992 (percorreu todas as Unidades da Federação para implementá-las).
Como visto no trágico caso citado no começo deste artigo, há ainda, infelizmente, os que por absoluta incompreensão do problema ou ignorância extremada, propõem que usuários de drogas sejam levados ao cárcere. Se a lei não o permite, criam-se interpretações para que sejam tipificados como traficantes e sofram o peso da sanção penal restritiva da liberdade.
Todos sabem que muitos dos “jovens traficantes” que estão nos cárceres brasileiros não passam de meros usuários e dependentes químicos. Nesse sentido, então, é importante observar a tendência do tribunal em descriminalizar esse tipo[9] (repise-se que a Lei 11.343 trata o uso como crime, embora com sanções diversas da prisão, o que traz uma série de outras consequências, como perder a condição de réu primário, por exemplo).
Quem lida diariamente com a enxurrada de habeas corpus sobre o tema, advindos de todos os recantos do país, percebe que os verdadeiros sujeitos clementes pela aplicação da teleologia normativa são justamente aqueles cujos direitos fundamentais violados causam repercussão além das respectivas situações subjetivas, a produzir mais violência contra a própria sociedade. Os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização dos presos, fomentam o aumento da criminalidade, pois atuam como escolas do crime.
A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública está, como visto, nas altas taxas de reincidência. Crucificar os que incorrem nesses delitos e deixá-los à mercê do próprio sistema é o mesmo que admitir a nossa falência total enquanto sociedade. E a responsabilidade por essa situação não pode ser atribuída exclusivamente aos Poderes da Federação: é um dever de todos. Em suma, urge que nos conscientizemos da necessidade de nos despirmos de velhas ideologias dominantes, de preconceitos, e pensemos com seriedade e responsabilidade sobre o assunto, para que o mal seja finalmente “fagocitado” por um paradigma libertador, capaz de nos proteger de nós mesmos.
[1] A respeito, leiam-se os acórdãos do HC 106.155, Rel. para o acórdão o Min. Luiz Fux, Primeira Turma, e do RE 596.152, Rel. para o acórdão o Min. Ayres Britto.
[2] Em questão de ordem no RE 430.105, julgado pela primeira Turma em fevereiro de 2007, o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, esclareceu, no ponto, que a lei ordinária superveniente optou por adotar “pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/1988, art. 5º, XLVI e XLVII). (...) Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade”.
[3] Gilberto Giacoia e Denise Hammerschimidt, La Cárcel en España, Portugal e Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 27.
[4] Gilberto Giacoia e Denise Hammerschmidt, op. cit., p. 103.
[5] A obra citada de Lola Aniyar de Castro é Penas Alternativas a la prisión: hacia un Derecho penal sin fronteras. Madrid: Codex, 2000, p. 90.
[6] Cf. dados da ICPS- International Centre for Prision Studies (citado pela publicação referida MJ/DEPEN).
[7] Todos os dados citados nesse item constam da publicação oficial feita pelo Ministério da Justiça do Brasil (Departamento Penitenciário Nacional), a partir do sistema Infopen, em dezembro de 2014.
[8] Cf. afirmação contida à p. 33 da publicação oficial feita pelo Ministério da Justiça do Brasil, acima mencionada.
[9] Trata-se do RE 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes. Três dos onze ministros do Supremo já votaram a favor da descriminalização do uso e porte da maconha (Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso). O julgamento foi suspenso em 10/9/2015 em razão de pedido de vista do falecido Ministro Teori Zavascki.
Fabiane Pereira de Oliveira Duarte é ex-secretária geral da Presidência do Supremo Tribunal Federal.
José Eduardo Cardozo é ex-ministro da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2017.
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