A pessoa que transporta drogas ilícitas, conhecida como mula, nem sempre integra a organização criminosa, de acordo com recente decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Por unanimidade, o colegiado mudou o entendimento que prevalecia entre os seus integrantes para entender que é possível reconhecer o tráfico privilegiado ao agente que transporta as drogas.
A decisão, embora não encerre as discussões que vinham sendo travadas nas duas turmas do STJ e nos tribunais de segunda instância, dá um importante norte e se alinha com a jurisprudência formada no Supremo Tribunal Federal sobre a condição do transportador de drogas (mula) em uma organização criminosa.
O relator do Habeas Corpus na 5ª Turma, ministro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas disse que, embora haja diversos julgados de ambas as turmas do STJ nos quais se afirme não ser possível o reconhecimento do tráfico privilegiado ao agente transportador de drogas na qualidade de "mula", “acolho o entendimento uníssono do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, no sentido de que a simples atuação nessa condição não induz, automaticamente, à conclusão de que o sentenciado integre organização criminosa, sendo imprescindível, para tanto, prova inequívoca do seu envolvimento, estável e permanente, com o grupo criminoso, para autorizar a redução da pena em sua totalidade”. Em seu voto citou precedentes dos ministros do STF Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.
Ribeiro Dantas decidiu também reduzir a pena da condenada, uma mulher de origem africana, na fração mínima legal de um sexto, resultando na pena de 5 anos de reclusão e 500 dias-multa. “O conhecimento pela paciente de estar a serviço do crime organizado no tráfico internacional constitui fundamento concreto e idôneo para se valorar negativamente na terceira fase da dosimetria, razão pela qual o percentual de redução, pela incidência da minorante do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006, deve ser estabelecido no mínimo legal, atento a especial gravidade da conduta praticada.” A ré foi presa em flagrante dentro de um táxi com pacotes de cocaína colados ao corpo, quando ia para o aeroporto.
A decisão é importante por registrar que é papel da acusação apresentar provas de que a “mula” tem ligação estável com a organização criminosa para ser reconhecida a associação do artigo 35, e não o contrário.
Discussão antiga
Conforme veio registrando nos últimos anos, o Anuário da Justiça publicou decisões de desembargadores tanto reconhecendo a mula como cooptada pela organização criminosa como também partícipe dela, recebendo então penas mais duras previstas na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
Na 1ª Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), em 2016, dos sete desembargadores que a compõe apenas dois, Cotrim Guimarães e Wilson Zauhy, entendiam que, nas acusações de transporte de drogas, as “mulas” não fazem, necessariamente, parte da organização criminosa e podem ter suas penas reduzidas. Os demais integrantes da seção pensavam que o ato é feito de forma consciente e os réus já sabem que estão se envolvendo em atividades ilícitas. Nesses casos, embargos infringentes que pedem redução de pena vinham sendo negados, por maioria de votos.
Na 5ª Turma do mesmo tribunal, especializada em matéria penal, os desembargadores avaliavam caso a caso se réus que atuaram no tráfico de drogas como “mulas” integram a organização criminosa ou se agiram de modo ocasional, na função de meros transportadores. Neste caso, votavam pela manutenção da aplicação da causa de diminuição do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006, no mínimo de 1/6 da pena-base.
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A matéria era divergente até na Procuradoria da República da 3ª Região, responsável pela proposição das denúncias. Segundo o procurador-chefe nos anos de 2013 a 2015, Pedro Barbosa, em declaração ao Anuário da Justiça Federal 2015, a Lei de Drogas deu liberdade muito grande ao julgador. O traficante que não integra organização criminosa e não tem antecedentes criminais pode ter a pena de 5 a 15 anos de reclusão diminuída de um a dois terços. Com isso, diz, há quem entenda que o mero fato de o “mula” existir já faz dele integrante da organização criminosa. Outros entendem que o “mula”, por ser contratado pela organização criminosa, não a integra. “É uma situação que cria muita insegurança jurídica para essas pessoas”, afirmou o procurador-chefe na ocasião.
No Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a questão também gerou discussão. Era comum as turmas assumirem posições bem diferentes, gerando debates quando se reuniam nos julgamentos da 4ª Seção. Em 2013, a juíza convocada para a 7ª Turma Salise Monteiro Sanchotene admitiu ser rigorosa na questão do “mula”, mas no crime de contrabando. “Quem traz um caminhão de cigarros do Paraguai não pode ser confundido com um simples sacoleiro”, exemplifica.
Na 8ª Turma do TRF-4, desde 2012 não havia consenso se a pena deveria ser diminuída ou aumentada, já que o “mula” traficou sob promessa de pagamento, o que seria um agravante.
Em 2015, o desembargador Hélio Nogueira entendeu que a conduta não caracteriza baixo potencial lesivo e que, no caso analisado, não havia provas da coação moral ou do estado da necessidade alegados pela defesa. “Tanto a coação moral irresistível como o estado de necessidade devem ser comprovados por meios seguros, que demonstrem a presença de todos os seus elementos caracterizadores, não podendo ser reconhecidos com fundamento em meras alegações da defesa, como é a hipótese dos autos”, explicou o magistrado.
Dessa forma, Nogueira não atenuou a pena e confirmou a condenação de duas mulheres acusadas de tráfico internacional de drogas a 8 anos e 7 anos e 6 meses de reclusão além de multa. Elas foram presas em flagrante com 9,6 kg de cocaína escondidas no forro de suas malas logo após cruzarem a fronteira Bolívia-Brasil.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2017.
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