O Superior Tribunal de Justiça tem recebido pedidos para criar uma súmula contra a manutenção de custódia cautelar baseada apenas na falta de pagamento de fiança. Desde fevereiro, a Defensoria Pública de São Paulo passou a sugerir a tese no meio de requerimentos de Habeas Corpus, relatando a dificuldade de alguns presos juntarem o valor necessário para conseguir a liberdade.
Um homem suspeito de furtar quatro desodorantes, por exemplo, ficou quatro meses atrás das grades por ter deixado de pagar um salário mínimo (hoje em R$ 937). O juízo de primeiro grau fixou essa fiança em outubro de 2016, mas ele só conseguiu HC em fevereiro deste ano, com liminar do ministro Felix Fischer. Outro homem enquadrado por furto simples e porte de drogas poderia deixar a prisão se pagasse R$ 468,50. Sem dinheiro, aguardou dois meses encarcerado até decisão favorável do ministro Jorge Mussi, em abril passado.
Apesar das liminares, a Defensoria afirma que a súmula é necessária porque os casos não são isolados. Também considera manifesto constrangimento ilegal manter uma série de pessoas presas apenas por não desembolsarem o valor estipulado.
“Para fixar fiança, o juiz concede a liberdade provisória, mas condiciona esse exercício ao recolhimento. Isso significa que não estão presentes os requisitos da prisão preventiva. Não faz sentido adiar o alvará de soltura, até porque as demais medidas cautelares substituem a prisão”, afirma o defensor público João Henrique Imperia Martini, coordenador do Núcleo Especializado de Segunda Instância e Tribunais Superiores, que assina as propostas enviadas ao STJ.
Mais eficiente, segundo ele, é reconhecer a liberdade e fixar um prazo para o suspeito pagar a dívida ou se explicar quando não conseguir juntar o dinheiro. Para a soltura, Martini considera desnecessário inclusive exigir demonstração de impossibilidade financeira.
Mudança de rotina
Outra estratégia do núcleo é pedir que, ao editar súmula sobre o assunto, o STJ presuma a incapacidade econômica de quem é representado pela Defensoria Pública.
Martini diz que o Tribunal de Justiça de São Paulo já tem corrente majoritária afastando fiança para hipossuficientes, mas avalia que ainda é grande o volume de pessoas que ficam presas pelo fato de não terem dinheiro para recolhê-la, principalmente por meio de decisões durante plantões judiciários. “Estamos chegando à conclusão de que elas continuam presas por opção?”, questiona.
O cenário, afirma, contraria o artigo 350 do Código de Processo Penal, que trata da liberdade provisória dependendo da situação econômica do preso. O STJ, aliás, já tem precedentes afastando prisões quando o dispositivo não é seguido.
“A fiança, para o rico, é a salvação. Recolhe e é solto. Para o pobre é a desgraça, porque representa a manutenção da prisão se não conseguir pagar”, diz o defensor. Em muitos casos, segundo ele, familiares é que são punidos ao serem obrigados a fazer empréstimos e organizar “vaquinhas” para cumprirem a decisão.
Tese proposta:(i) As pessoas representadas pela Defensoria Pública gozam de presunção da incapacidade econômica para fins da isenção da fiança nos termos do art. 325, parágrafo 1º, inciso I cc. art. 350 do Código de Processo Penal;(ii) ou, ainda, (...) não ser possível a manutenção da custódia cautelar tão somente em razão do não pagamento do valor arbitrado a título de fiança, mázime quando se tratar de réu pobre, ex vi do art. 350 do CPP”.
Efeito colateral
O advogado e professor Roberto Delmanto Jr. afirma que a Lei 12.403/2011, criada com o objetivo de disciplinar medidas cautelares do CPP, acabou gerando uma espécie de comodismo em autoridades policiais e juízes, como se fosse possível manter pessoas presas sem necessidade de fundamentar a medida. Ele diz que nem só pobres vivem essa situação: o empresário Eike Batista deveria pagar R$ 52 milhões para continuar em prisão domiciliar, por exemplo.
Delmanto sente que já existe uma mudança de consciência em julgadores, mais atentos ao artigo 350 do CPP: “O juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória”. Sobre as propostas da Defensoria, o advogado entende que liberar a soltura de quem ainda não pagou fiança acabaria com o uso do instrumento, na prática.
O delegado e professor Ruchester Marreiros Barbosa, colunista da ConJur, relata ainda que um problema de redação na lei de 2011 acabou deixando mais pessoas atrás das grades: como o mesmo artigo 350 cita expressamente “o juiz”, a controvérsia é se a autoridade policial pode ou não aplicar o dispositivo para dispensar fiança.
Delegados que seguem o texto de forma literal, segundo Barbosa, podem fazer presos aguardarem mais de 15 dias por uma decisão favorável — tempo mínimo no qual o inquérito vai para o cartório judicial, segue para o Ministério Público e vira denúncia.
Ele é contra uma posição tão restritiva. “Não ignoro o artigo, mas aplico de forma isonômica. Nosso papel é de reproduzir o modelo econômico ou garantir direitos fundamentais?”
O delegado considera “interessante” a proposta de súmula da Defensoria, mas entende que presumir a hipossuficiência de todo representado pela instituição também pode ser um equívoco. O melhor caminho, para ele, seria agilizar a análise de cada caso.
Abuso de autoridade
Em 2013, a Defensoria Pública de São Paulo aprovou tese institucional declarando que a fixação de fiança deveria gerar imediata expedição de alvará de soltura. Segundo o texto, “condicionar a soltura ao pagamento da fiança é ilegal e, a rigor, constitui crime de abuso de autoridade”.
O defensor Bruno Martinelli Scrignoli, de Campinas (SP), usou o argumento ao solicitar HC a um homem desempregado suspeito de receptação, sem condições de pagar um salário mínimo. “Apenas duas são as hipóteses de prisão legal: i) prisão em flagrante e ii) prisão por ordem judicial fundamentada. No caso da pessoa presa pelo não pagamento da fiança, não há nem uma coisa, nem outra”, afirmou. O ministro Antonio Saldanha Palheiro concordou com o argumento, ainda em 2016.
Já o ministro Joel Ilan Paciornik, no dia 19 de maio, rejeitou liminar a um homem preso por furto tentado em abril, com fiança estipulada em R$ 940. Sem ver constrangimento ilegal “manifesto e detectável de plano”, o relator seguiu a Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal, que coloca barreiras à análise de pedidos ainda não julgados por órgão colegiado nos tribunais inferiores.
Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário