Os tribunais de Justiça de todo o país precisam melhorar a gestão das varas criminais e de execução penal, já que falhas na tramitação dos processos têm prolongado prisões além do prazo e contribuído para o agravamento da superpopulação carcerária. “Esse é o diagnóstico levantado nas inspeções dos mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça”, alertou o conselheiro Guilherme Calmon (foto), supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), em entrevista.
Ao abordar o tema, ele chamou a atenção para as cerca de 220 mil pessoas que estão presas sem julgamento, o equivalente a 40% da população carcerária nacional. O conselheiro também criticou as administrações do sistema carcerário e defendeu que o Judiciário reforce a fiscalização junto às unidades prisionais, hoje dominadas por facções criminosas e sem condições de prevenir a reincidência criminal.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista concedida à Agência CNJ:
Por meio dos mutirões carcerários, o CNJ tem feito uma série de recomendações às autoridades estaduais para aprimorar a tramitação dos processos e também melhorar as condições das prisões brasileiras. Para o senhor, que atuação o Poder Judiciário, em particular, precisa ter para resolver essas mazelas?
Quanto ao Poder Judiciário, nós observamos que, nos mutirões carcerários e em outros projetos e ações que o DMF tem realizado junto aos estados, aos tribunais de Justiça, aos juízes que trabalham nas varas de execução penal e também nas varas criminais, muitas vezes há um problema de gestão. Questões de toda ordem, seja o número insuficiente de servidores, seja, muitas vezes, a falta de capacitação e treinamento adequado daquele servidor, ou seja, um problema de gestão mesmo do processo judicial, do controle de prazos. Isso é um ponto muito importante que é sempre observado em relação ao Poder Judiciário, no que tange, especialmente, às varas criminais e de execução penal, com relação ao excesso de prazos, ao alto índice de presos provisórios. Quer dizer: a pessoa já tinha de ter sido sentenciada, seja para fins de condenação ou de absolvição, para a definição da sua situação, pelo menos em primeiro grau, mas ela não tem essa definição. Nós percebemos isso em vários lugares.
Que outras deficiências o CNJ tem verificado?
Há também a questão da fiscalização junto aos estabelecimentos prisionais, determinada pela Lei de Execução Penal. Ela prevê o dever do juiz corregedor dos presídios e penitenciárias de realizar, mensalmente, uma verificação, uma inspeção, nesses estabelecimentos. E isso hoje é por nós cobrado por meio de relatórios que esses juízes têm de encaminhar ao Conselho Nacional de Justiça por via do DMF. O que se percebe é que algumas vezes esses relatórios acabam sendo meras reproduções de relatórios anteriores, sem que de fato se tenha feito a inspeção. Isso já diminuiu, é um problema não mais tão grave, como foi no passado, mas, de certa forma, temos a preocupação de fazer esse acompanhamento. E aí, não basta só ao CNJ verificar o que houve em termos de recomendação ou sugestões feitas no último mutirão carcerário em determinado estado e o que foi feito. É também preciso verificar se os juízes daquele estado, responsáveis por essa área, também cumpriram o seu papel de estar acompanhando, fiscalizando os estabelecimentos prisionais, bem como as situações prisionais, para fins de dar conta do atendimento daquelas recomendações.
Quanto ao Poder Executivo, o que os governos precisam fazer?
Nessa questão o Poder Executivo dos estados tem um papel fundamental. Porque eles são os gestores dos estabelecimentos prisionais, da própria manutenção das pessoas nos três regimes prisionais que nós temos (fechado, semiaberto e aberto), bem como de acompanhamento e fiscalização até mesmo, por exemplo, da questão das alternativas penais, como a existência do monitoramento por tornozeleira eletrônica. Então tudo isso faz parte das atribuições e responsabilidades dos executivos estaduais. Mas a gente percebe que também no Poder Executivo (e aí eu enfatizo: mais até do que em relação ao Judiciário) há na maior parte dos casos um descaso mesmo. Assim, por décadas, muitas vezes não se deu a atenção que deveria ter sido dada à situação dos estabelecimentos prisionais, e não só às construções propriamente ditas das unidades, mas tudo que faz parte do sistema de execução penal em relação à execução da pena privativa de liberdade.
O senhor poderia dar exemplos?
Por exemplo: assistência jurídica aos presos, a assistência religiosa, assistência para fins de profissionalização, para fins educacionais, até para permitir a remição (perdão) da pena. Enfim, isso tudo está previsto na Lei de Execução Penal, faz parte das atribuições dos Poderes Executivos. No âmbito federal, o atendimento à saúde dos internos, por meio do Sistema Único de Saúde. Com relação aos estados, no que tange às suas atribuições previstas na Lei de Execução Penal, a gente percebe que, de fato, são poucos os lugares em que há o funcionamento efetivo do sistema carcerário. O que há são iniciativas do próprio diretor da penitenciária. São algumas boas práticas, mas, sem dúvida, isso é minoria, uma exceção. A maioria dos estabelecimentos prisionais, em relação a tudo o que gira em torno das assistências que as pessoas encarceradas devem receber, apresenta uma situação muito ruim, muito lamentável em termos até de concretização dos direitos e das garantias previstos na Constituição quanto ao cumprimento das penas privativas de liberdade.
E qual o papel do Ministério Público nesse esforço?
O Ministério Público também tem um papel fundamental. Não só como fiscal da lei, mas também, necessariamente, garantidor dos direitos fundamentais, estabelecidos na Constituição, bem como tratados e convenções internacionais. Ele tem o papel de acompanhar, fiscalizar e até mesmo cobrar das autoridades competentes, bem como dos prepostos dessas autoridades, o cumprimento das garantias e dos direitos fundamentais, e de todo o rol de assistência que está previsto na Lei de Execução Penal. Então ele também, por força da Lei de Execução Penal, da mesma forma que a Justiça, tem o dever de, mensalmente, inspecionar os estabelecimentos prisionais, não como um juiz corregedor, mas deve fiscalizar e acompanhar e, constatando violações, tomar as medidas cabíveis, seja no âmbito de uma responsabilização penal, seja no âmbito de uma responsabilização civil e, por que não, de improbidade administrativa.
Segundo dados do Infopen, atualizados em dezembro de 2012, quase metade dos presos no país são acusados ou condenados por crimes contra o patrimônio, como furtos, receptação e roubo. Ao mesmo tempo, 25% estão presos por tráfico de drogas. Mas, em relação ao homicídio, o índice é muito baixo, de cerca de 12%. Na sua opinião, o que esses números refletem?
Esses números refletem uma questão que tem um aspecto de ordem social, ou seja, a questão dos crimes contra o patrimônio. Obviamente, há uma série de causas e origens, mas, fundamentalmente, há um aspecto de ordem social que me parece central, ou seja, o problema do desemprego, a dificuldade de acesso aos direitos sociais mais básicos e fundamentais que são garantidos na Constituição, algo que não justifica, mas que acaba propiciando, em determinadas pessoas, que elas acabem sendo conduzidas a esse tipo de delito. Mas eu gostaria de observar que nem todos os crimes contra o patrimônio, acredito que apenas uma minoria, seriam hipóteses de se estabelecer uma pena tão severa como a da privação de liberdade em regime fechado. Então isso deve ser colocado, especialmente para fins até de um esclarecimento à população, no sentido de que são pessoas que, a princípio, em razão de algumas circunstâncias da vida, lógico que eu não posso generalizar para todos, mas, como regra, acabaram por cometer aquele delito, mas que não necessariamente são pessoas que vão reiterar em um delito como esse.
Quais as alternativas para esses casos?
Deve ser dada uma resposta penal que seja mais adequada, por exemplo, uma alternativa penal, como o monitoramento por tornozeleira eletrônica. Serviria, exatamente, para dar uma resposta penal àquele ato que foi praticado e, ao mesmo tempo, evitar que essa pessoa seja colocada em um estabelecimento prisional. Infelizmente, a gente sabe, não podemos fechar os olhos e achar que não existe: as unidades prisionais são dominadas por facções criminosas. Então essa pessoa, ao entrar nesse local, necessariamente vai ser cooptada por uma ou outra facção criminosa e acabará piorando sua condição. Ao concluir o cumprimento da pena, vindo a ser libertada, ela passará a reincidir, e até com crimes piores e mais graves, gerando um círculo vicioso, de modo que ela não tenha mais como se reinserir na sociedade de modo a ter trabalho e uma vida normal.
E quanto ao tráfico de drogas?
Esse é um aspecto importante que também precisa ser revisto, porque nem todas as situações que envolvem a prática de tráfico seriam hipóteses de encarceramento. Em um recente seminário que o CNJ realizou sobre o encarceramento feminino, verificou-se com dados concretos que várias mulheres teriam sido quase constrangidas pelos seus maridos ou companheiros, enfim, até mesmo filhos, para prática daquele delito. Elas acabam sendo colocadas em um sistema prisional que é perverso, como temos hoje em dia, infelizmente. E,em vez de terem condições de sair daquela situação, ao contrário, acabam se aprofundando no problema. Então eu acho que a gente precisa repensar esse modelo, especialmente envolvendo determinados tipos de crime e determinados tipos de pessoa.
E quanto ao fato de os presos por crimes contra a vida, como homicídio, serem minoria na população carcerária brasileira?
Há algumas causas por trás disso. Ainda há um número que não é representativo da realidade, porque nós temos várias hipóteses de subnotificações, de situações que foram apresentadas como não sendo de homicídio e não estão sendo contabilizadas. Por exemplo, autos de resistência (quando a morte é atribuída a confronto com a polícia). Em alguns estados se percebe claramente a forma de, entre aspas, escamotear aquilo que seria a prática de homicídio. Em segundo lugar, há situações relativas a crimes contra a vida em que, não necessariamente, o autor seria, entre aspas, um marginal, um delinquente. Pode ser uma circunstância pontual, ou um aspecto relacionado àquele momento; ele pode ter cometido o homicídio, ou mesmo latrocínio, mas, não necessariamente, seria um criminoso contumaz. É uma visão que os magistrados em geral, da mesma forma que os promotores de Justiça, já vêm realizando, o que também justificaria esse percentual menor. E devemos considerar também os inquéritos e ações penais que foram instaurados, mas, por alguma circunstância, não houve condições de se localizar aquela pessoa. Aí nós temos um número, ainda que razoável, de mandados de prisão não cumpridos, o que também, de certa forma, contribui para o índice menor de presos por crimes contra a vida.
Quando começam os mutirões carcerários do CNJ em 2014? Quais as prioridades? Há alguma mudança na estratégia?
Nós já temos, até por força de um planejamento feito desde o ano passado, a previsão de seis mutirões carcerários estaduais durante este ano, considerando critérios objetivos, ou seja, percentual de presos provisórios (ainda não julgados) acima da média nacional. E aí nós fizemos um levantamento, excluímos desses mutirões aqueles estados que já tiveram mutirões em 2013, porque, obviamente, não tem sentido novamente haver mutirões nesses estados, e nós estamos apresentando como uma grande novidade agora para 2014 o que estamos chamando de mutirões regionais. O que são os mutirões regionais? Agora não teremos como parâmetro o estado como um todo, mas sim o complexo penitenciário existente em determinada região daquele estado. São unidades prisionais que são alvo de reclamações e denúncias ao DMF. Então, são vários complexos, e nós identificamos sete deles e estamos organizando a questão do cronograma para, nesses sete complexos, contando com a presença do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), do Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) e do Ministério da Justiça, podermos realizar mutirões nessas grandes unidades prisionais.
O senhor poderia dar mais detalhes sobre esses mutirões?
O mutirão regional não terá duração de 30 dias, como acontece nos mutirões estaduais, mas um prazo menor, a princípio de 10 dias úteis; esse também é um ponto importante. A partir da realização desses mutirões regionais, nós teremos condições de, realmente, promover uma mudança radical, de 180 graus, daquele estabelecimento prisional, para ele passar a ter como resolvidas as questões problemáticas que ele vinha apresentando até então. Estamos investindo muito nessa ideia; ela foi exposta, inclusive, a representantes do CNMP, do Ministério da Justiça, dos quais tivemos uma acolhida muito boa.
Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2014