Denúncias anônimas podem ser úteis para a polícia combater o crime. Mas também podem ser ilegais, por violar direitos constitucionais do cidadão. Utilidade à parte, é difícil estabelecer uma linha divisória entre a legalidade e a ilegalidade da delação anônima. Não há consenso entre os juízes. Por isso, a Suprema Corte dos Estados Unidos vai entrar no assunto.
O problema da denúncia anônima, um recurso frequentemente utilizado pela polícia e outros órgãos de segurança nos EUA como instrumento de investigações, é que ela pode ser inconstitucional. Pode violar a Quarta Emenda da Constituição, que “proíbe buscas e apreensões não razoáveis, sem mandado judicial, apoiado por causa provável”.
A questão do mandado judicial é uma discussão, também bastante controversa, que corre paralelamente. Argumenta-se que, muitas vezes, a polícia não tem tempo para obter um mandado, porque não pode perder uma oportunidade de combater o crime. Por isso, a Justiça americana tenta implementar métodos eletrônicos, que possibilitaria a um policial obter um mandado em questão de minutos pelo smartphone.
A questão da vez, perante a Suprema Corte, é a da “causa provável”, dificilmente sustentável na maioria dos casos. Em muitas situações, nem mesmo o policial tem indícios razoáveis de “causa provável” para, por exemplo, parar um carro em uma estrada, a fim de fazer investigações. Tecnicamente, ele não pode fazer isso, apenas porque alguém fez uma denúncia anônima, sem oferecer fatos ou provas suficientes de que um crime está em andamento.
O caso que será discutido pela Suprema Corte em 21 de janeiro — Navarette versus California — é bem específico, mas servirá como um norte para todos os casos de denúncias anônimas. É um caso de um motorista parado na estrada, porque alguém ligou para a Polícia para fazer a denúncia: o motorista à frente dele fez uma manobra perigosa, que quase o jogou fora da estrada; parecia embriagado ou drogado.
A polícia localizou a camionete de Lorenzo Navarette, que estava acompanhado de Jose Navarette, e seguiu o carro por cinco minutos. Não percebeu nada de anormal na condução do carro, muito menos direção perigosa. Mesmo assim, ordenou ao motorista que parasse o veículo à margem da estrada.
Não havia sinais de que o motorista ou passageiro estivessem embriagados ou drogados. Mas, aproveitando a oportunidade, os policiais ordenaram que saíssem do carro e fizeram uma busca. Encontraram pouco mais de 13 quilos de maconha.
No julgamento, em primeiro grau, a defesa tentou suprimir a prova — a apresentação da maconha apreendida — porque os policiais não tinham o direito de parar o carro, em primeiro lugar. Muito menos de fazer uma busca e apreensão, sem conhecimento de “causa provável” de um crime em andamento.
O juiz negou o pedido e os Navarettes, para evitar uma pena maior, fizeram um acordo com a Promotoria e se declararam culpados de transporte de maconha. Mas o caso subiu para instâncias superiores, até chegar à Suprema Corte, que aceitou julgá-lo.
Algumas instituições de peso, como a Clínica de Contencioso na Suprema Corte da Faculdade de Direito da Universidade de Virgínia, a Associação Nacional dos Advogados de Defesa Criminal e Associação Nacional de Defensores, protocolaram petições de amicus curiae, em favor dos Navarettes — ou, mais precisamente, contra a denúncia anônima sem provas ou mesmo sem causa provável.
Para a Clínica de Virgínia, esse tipo de denúncia anônima é inconstitucional. O denunciante anônimo tem de conhecer fatos ou provas que deem à denúncia um caráter de causa provável. E a polícia tem de se certificar de que a denúncia realmente produz uma suspeita razoável de que um crime está em andamento, para parar um carro.
“O denunciante anônimo, tipicamente, não tem ideia porque o carro à frente fez uma manobra perigosa. Poderia ser por cansaço ou sono do motorista, por um momento de desatenção, por uma distração inconveniente mas inofensiva, por um susto que o levou a se desviar de alguma coisa ou por inúmeras outras razões não criminosas”, escreveu o diretor da Clínica Daniel Ortiz.
As associações dos advogados argumentaram mais ou menos na mesma linha. Disseram que, nesse caso específico, os policiais teriam de confirmar por eles mesmos o problema denunciado de direção perigosa, antes de parar o carro. Há um precedente já estabelecido pela Suprema Corte, em 2000. Nesse caso, a corte decidiu que o denunciante tem de ter conhecimento de que alguma atividade criminal está em andamento”, ao fazer uma denúncia anônima ou não.
Na outra ponta do caso, o Departamento de Justiça dos EUA e procuradores-gerais de 30 estados protocolaram petições de “amigos da corte”, em favor da acusação. De uma maneira geral, argumentam que fazer os policiais esperarem até que observem, por eles mesmos, a direção perigosa ou avaliem a denúncia de alguma outra forma, coloca outras pessoas em risco.
Muitos estados americanos operam serviços de “hotline”, com um número de telefone dedicado a denúncias anônimas. Porém, os estudantes de Direito da Universidade de Virgínia levantaram vários casos de delação anônima, em que a denúncia foi motivada, na verdade, por raiva, vingança ou intenção de prejudicar o denunciado, por alguma razão pessoal.
Em sua petição, Daniel Ortiz citou, especificamente, o caso conhecido de uma denúncia anônima sobre um prefeito de Montana, que estaria dirigindo embriagado. Investigações posteriores revelaram que o denunciante era um policial determinado a difamar o prefeito.
Visão nacional
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já julgou que a denúncia anônima pode levar a investigações informais, sem instauração de inquérito nem medidas constritivas — como busca e apreensão, quebra de sigilos ou prisão. Se as investigações informais encontrarem algum elemento concreto, ele deverá ser o fundamento para a abertura do inquérito, julgaram os ministros, ao afirmar que a denúncia anônima não pode ser autuada por ser “um desvalor”.
Revista Consultor Jurídico, 16 de janeiro de 201
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