domingo, 19 de janeiro de 2014

Filósofo analisa formação do sistema penal brasileiro, no século XIX


ma pergunta feita por Mário de Andrade em 1922 em “Pauliceia desvairada” — “Será necessária prisão para que haja civilização?” — aparece como provocação no começo e no fim do recém-lançado “Crítica da razão punitiva: nascimento da prisão no Brasil” (Editora Forense Universitária), do filósofo Manoel Barros da Motta. Resultado de pesquisas feitas pelo autor desde os anos 1970, o livro discute a formação do sistema penal brasileiro no século XIX, quando surgem no país o primeiro Código Criminal, promulgado em 1830, e a primeira prisão, a Casa de Correção da Corte, inaugurada em 1850 (posteriormente transformada no Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do Rio, demolido em março do ano passado). 

Analisando documentos oficiais e pronunciamentos de ministros da Justiça e autoridades penitenciárias da época, Barros da Motta mostra que o novo sistema penal foi recebido como um marco civilizatório numa sociedade em que os crimes eram até então punidos com castigos corporais. As Ordenações Filipinas de 1603, que regulavam a penalidade no país até o Código de 1830, previam punições como “morte natural”, “morte natural cruelmente”, açoite, mutilação, trabalhos forçados e degredo, entre outras. 

Escravidão influenciou estrutura da primeira prisão

No entanto, o marco civilizatório que bania a tortura logo revelou suas limitações, afirma Barros da Motta. Apoiado em relatórios de observadores brasileiros enviados para estudar o modelo carcerário de outros países, o autor argumenta que, no momento em que esse modelo chega ao Brasil, suas deficiências já eram discutidas na Europa e nos Estados Unidos. Entre elas, estavam problemas recorrentes até hoje, como o alto índice de reincidência, a degradação e o que o autor chama de “a contradição essencial da penitenciária: reunir muitos criminosos no mesmo lugar”. 

— A prisão já era muito criticada quando começou a ser implantada no Brasil. A Casa de Correção foi o modelo do sistema carcerário que se irradiou para todo o país, mas essa prisão-modelo logo se tornou um lugar insalubre, onde nenhum preso sobrevivia por mais de dez anos. O que surgiu como solução virou problema — diz Barros da Motta, em entrevista por telefone, lembrando também o caso do presídio de Fernando de Noronha, mantido pelo Império apesar das experiências negativas com colônias penais insulares em outras partes do mundo, como na Austrália.

A influência estrangeira estava presente também no modelo arquitetônico da Casa de Correção, projetada como um pan-óptico, construção circular idealizada pelo filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham no século XVIII, na qual os prisioneiros podiam ser observados a todo momento a partir de uma torre central. O efeito, porém, não foi obtido na prisão brasileira, por problemas na construção. 

Mesmo com a preocupação em estudar e importar modelos estrangeiros, o sistema penal brasileiro foi moldado por uma característica definidora daquele momento da história nacional, a escravidão. “Crítica da razão punitiva” ressalta os vínculos entre as prisões e a sociedade escravagista: criada como um centro de recuperação de prisioneiros, a Casa de Correção abrigava um calabouço onde escravos eram castigados.

— A escravidão supõe o castigo. Uma sociedade fundada na escravidão admite a violência corporal na vida cotidiana. Mas a prisão, por princípio, supõe apenas a privação da liberdade, não a violência sobre o corpo do condenado. O que existia no Império era um sistema misto, uma transição da punição corporal pura da Colônia para o sistema prisional que passou a existir na República. E isso deixou marcas que existem ainda hoje — afirma o autor.

Tradutor de Foucault, autor discutiu livro com filósofo

Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Barros da Motta é tradutor de Michel Foucault e responsável pela edição brasileira da série “Ditos e escritos”, com textos do filósofo francês (publicados pela Forense Universitária e já em seu sétimo volume). Em 1977, discutiu com o próprio Foucault a pesquisa que resultaria no livro agora publicado — e que, segundo o autor, poderá render mais livros.

É a uma ideia de Foucault que o autor recorre para ilustrar a dificuldade de reformar o modelo prisional. A Casa de Correção, aponta Barros da Motta, começou como um projeto de recuperação através do trabalho, método defendido por muitos analistas ainda hoje como solução para a crise penitenciária. Mas logo o acúmulo de prisioneiros, as más condições estruturais e a falta de um projeto nacional claro e coerente fizeram com que, apenas duas décadas depois da inauguração da Casa, uma inspeção oficial constatasse que “muito se despendeu; e pode-se dizer não se ter ensaiado sistema algum”.

— Foucault diz que a prisão é, inevitavelmente, um lugar de passagem, com inúmeros canais de entrada e saída. A cadeia não é a instituição fechada que o poder deseja, ela tem mil laços com o resto da sociedade. No livro, mostro que muitas propostas atuais para melhorar as prisões já foram tentadas antes e não deram certo. Acredito que esse não é um problema exclusivamente penitenciário. Sua solução depende da organização de toda a sociedade, não só da prisão.


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